"O mundo inteiro ficou surpreendido com o que aconteceu [na Síria]. Nós não somos exceção", reconheceu hoje o porta-voz do Kremlin (presidência russa), Dmitri Peskov.
A chegada de Bashar al-Assad no domingo à Rússia, onde obteve asilo político, é o sinal de um desastre que poderá ser ainda maior se Moscovo perder as bases militares que tem no noroeste do país árabe.
Trata-se da base aérea em Hmeimim e da base naval em Tartus, porta de entrada para o Mar Mediterrâneo.
Ambas são consideradas estratégicas para as operações militares russas no Médio Oriente e nos países do Sahel, uma faixa entre o Atlântico, a oeste, e o Mar Vermelho, a leste, e entre o deserto do Sara, a norte, e o Sudão, a sul.
Numa cerimónia de entrega de medalhas a soldados que combatem na Ucrânia, hoje, no Kremlin, os rostos estavam carregados, segundo a agência espanhola EFE: os altos funcionários russos não sabem como digerir o revés na Síria, pelo que se mantêm em silêncio.
Eis alguns dos aspetos importantes para a Rússia da queda do regime de Bashar al-Assad, numa análise da EFE:
Fraqueza aos olhos dos aliados e dos inimigos
Se o chefe do Grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, expôs a fragilidade do regime russo ao encenar uma revolta armada em junho de 2023, a queda de Bashar al-Assad em menos de duas semanas expõe a fraqueza da política externa russa.
Putin parece escolher mal os parceiros: o seu "inimigo íntimo" Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia, levou a melhor na Síria, enquanto o Irão perde cada vez mais terreno no Médio Oriente.
Os serviços secretos russos confirmaram a sua incapacidade ao não avisarem Moscovo dos rápidos desenvolvimentos no país árabe, tal como em 2022 informaram erradamente Putin de que os ucranianos não resistiriam à ofensiva russa.
A Rússia apresenta-se como porta-estandarte de uma nova ordem multipolar face ao monopólio ocidental, mas é incapaz de enfrentar a ameaça islamista, quer na Síria, quer no próprio país.
A cruzada lançada por Putin há 10 anos teve como resposta, em março, a morte de 145 pessoas no ataque a uma sala de concertos perto de Moscovo, o maior atentado terrorista no país nos últimos 20 anos.
Duas frentes, demasiadas para o Kremlin
Putin não só salvou o regime sírio em 2015, como também impediu, dois anos antes, que os Estados Unidos usassem o argumento das armas químicas sírias para invadir o país.
Moscovo pensou que os bombardeamentos dos aviões russos e a presença ameaçadora da sua frota no Mediterrâneo Oriental eram suficientes para manter as fações rebeldes à distância.
Na hora da verdade, o contingente russo revelou-se um "tigre de papel": sem forças regulares no terreno, recorreu a mercenários, que perderam claramente o fôlego desde a morte de Prigozhin.
As ilusões de grandeza de Putin custaram muito caro à Rússia: a guerra na Ucrânia já se arrasta há quase três anos e o exército russo, sobrecarregado pela corrupção, mostrou que não consegue combater em duas frentes ao mesmo tempo.
Nem o lançamento de mísseis hipersónicos dissuadiu Kiev, que atacou o território russo com mísseis ocidentais de longo alcance.
E se os russos estão a avançar no Donbass (leste da Ucrânia), ainda não expulsaram os ucranianos da região russa de Kursk.
A manifesta fraqueza pode tornar-se um problema para o Kremlin antes das esperadas negociações entre Putin e o futuro Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
O futuro das bases está no ar
Numa tentativa desesperada, Moscovo estabeleceu, nos últimos dias, contactos com os rebeldes para evitar ataques às suas bases militares. No entanto, tudo o que conseguiu foram tímidas garantias de segurança.
"É prematuro falar sobre isso. Em todo o caso, será objeto de discussão com os detentores do poder na Síria", disse hoje o porta-voz do Kremlin.
Peskov admitiu que a situação na Síria era "extraordinariamente instável", mas acrescentou que os militares russos tomaram as "medidas de precaução" necessárias.
O aeródromo russo de Khmeimim recebeu dezenas de caças, caças-bombardeiros e helicópteros de assalto desde 2015, que também descolaram de aeródromos em Homs e Palmira.
A base de Tartus, a única base naval fora das fronteiras da Rússia e na qual Moscovo investiu enormes quantias de dinheiro desde 2012, acolheu vários navios de guerra, incluindo fragatas.
O encerramento de ambas as instalações seria um golpe para a Rússia, cuja frota mediterrânica não teria onde atracar, uma vez que o Tratado de Montreux impede o seu trânsito através do Estreito de Bósforo para as bases no Mar Negro.
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