A Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA) emitiu, na semana passada, um alerta sobre um surto de gripe das aves numa exploração de galinhas poedeiras em Sintra, no distrito de Lisboa, que, segundo os dados mais recentes, vitimou cerca de 55 mil animais.
O Notícias ao Minuto entrevistou Lisa Kohnle, responsável científica da Unidade BIOHAW da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), que explicou a evolução do vírus da gripe aviária e os impactos que o mesmo tem nos animais e na saúde alimentar.
A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) deu conta que, entre outubro de 2024 e janeiro de 2025, foram registados mais de 840 focos de gripe das aves na Europa. Aliás, na quarta-feira, o mesmo órgão indicou que as aves de capoeira e em cativeiro, localizadas em Portugal continental, devem permanecer confinadas nos respetivos alojamentos, evitando o contacto com aves selvagens.
No entanto, a perita adiantou que, apesar de a gripe aviária representar "uma ameaça contínua", a "situação não é mais grave na Europa" e "o número global de casos de gripe aviária continua a ser baixo em comparação com anos anteriores".
Lisa Kohnle considerou, contudo, que é "preocupante a infeção de espécies que estão em contacto próximo com os seres humanos e que servem de recipientes de mistura para diferentes vírus da gripe A".
O ressurgimento do vírus da Gripe Aviária de Alta Patogenicidade (GAAP) a nível mundial deve-se principalmente a uma combinação de fatores
De acordo com a Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA), mais de 300 milhões de aves em todo o mundo morreram devido ao vírus H5N1. Consegue identificar uma razão para o ressurgimento deste vírus?
O vírus da gripe aviária A (H5N1) surgiu em 1996 e foi identificado pela primeira vez no sul da China e em Hong Kong. Para além da sua primeira introdução na Europa em 2005 e de uma grande epidemia em 2016, até 2021 só foi detetado esporadicamente em aves de capoeira ou aves selvagens europeias.
O ressurgimento do vírus da Gripe Aviária de Alta Patogenicidade (GAAP) a nível mundial deve-se principalmente a uma combinação de fatores. As aves selvagens, em especial as migratórias, podem transportar o vírus quando se deslocam entre países e continentes e transmiti-lo às populações de aves locais quando entram em contacto com elas, incluindo as aves de capoeira.
Quando o vírus encontra populações de aves ou de outros animais sem memória imunológica em novas localizações geográficas, por exemplo, ou afeta novas espécies, pode causar uma mortalidade elevada e perdas significativas. Além disso, certas condições de criação que colocam as aves de capoeira sob stress, como a manutenção de aves domésticas em altas densidades, mas também o acesso ao exterior que permite que as aves domésticas entrem em contacto com aves selvagens, podem contribuir para a transmissão e a infeção. Por exemplo, de acordo com o nosso último relatório de monitorização publicado em dezembro de 2024, o grande número de explorações em determinadas zonas e o tipo de produção avícola são fatores que podem contribuir para a propagação da doença entre explorações.Não diria que a situação é mais grave na Europa. (...) Atualmente, a atenção centra-se nas Américas, em especial na América do Norte
O vírus está a sofrer mutações e a transformar-se em estirpes mais perigosas?
Os vírus da gripe aviária A (H5N1) estão em constante mutação. Muitas estirpes diferentes estão a circular simultaneamente e podem ter um impacto diferente nas populações de aves e de outros animais. É preocupante a infeção de espécies que estão em contacto próximo com os seres humanos e que servem de recipientes de mistura para diferentes vírus da gripe A, como os suínos que foram recentemente afetados numa exploração mista de gado e aves de capoeira nos Estados Unidos da América.
Este aumento é mais grave na Europa?
A gripe aviária representa uma ameaça contínua para a saúde pública e animal, bem como para a biodiversidade, a nível mundial, mas não diria que a situação é mais grave na Europa. De facto, a nossa região situa-se ao longo de importantes rotas migratórias de aves selvagens e o vírus é regularmente introduzido. No entanto, no nosso último relatório, o número global de casos de gripe aviária continua a ser baixo em comparação com anos anteriores. Atualmente, a atenção centra-se nas Américas, em especial na América do Norte, onde o vírus se propagou recentemente a muitas espécies diferentes de mamíferos.
Just published |🦢 #AvianFlu monitoring report with @ECDC_EU & EURL:
— EFSA (@EFSA_EU) December 18, 2024
Rise in cases in wild/domestic birds (mainly South-Central Europe)
No human-to-human transmission detected
Surge in US dairy cattle cases
🟢 Public risk remains low
→ https://t.co/urSB9EQGU6 pic.twitter.com/tliQiNJs8p
No ambiente das explorações, o vírus pode também propagar-se indiretamente pelos seres humanos, por exemplo, se estes transportarem o vírus nas suas botas sem o saberem
Como é que o vírus é transmitido?
Geralmente, o vírus propaga-se através do contacto direto entre aves infetadas e saudáveis, ou indiretamente através de ambientes contaminados, como a água, alimentos e equipamentos. As aves selvagens, especialmente as aves aquáticas, são os principais portadores e podem libertar o vírus através dos seus excrementos e secreções respiratórias, contaminando as áreas que visitam.
Além disso, os nossos peritos, em conjunto com os colegas do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), identificaram algumas espécies de animais de criação para produção de peles com pelo - por exemplo, martas e raposas, que são altamente suscetíveis aos vírus da gripe - como possíveis motores de propagação. Os mamíferos selvagens poderiam atuar como hospedeiros-ponte entre as aves selvagens, os animais domésticos e os seres humanos.
As combinações de aves de capoeira e animais para produção de peles ou de aves de capoeira e suínos podem aumentar ainda mais o risco de introdução do vírus nas explorações agrícolas. No ambiente das explorações, o vírus pode também propagar-se indiretamente pelos seres humanos, por exemplo, se estes transportarem o vírus nas suas botas sem o saberem. Em zonas ricas em aves aquáticas com produção ao ar livre e/ou com uma biossegurança deficiente, a introdução do vírus nas explorações e a sua posterior propagação são facilitadas.
Por último, os fenómenos meteorológicos extremos e as alterações climáticas desempenham um papel adicional na evolução da situação, uma vez que podem afetar a ecologia e a demografia das aves selvagens, influenciando, assim, a forma como a doença se desenvolve ao longo do tempo, segundo concluíram os peritos.
As aves aquáticas selvagens, como os patos e os gansos, atuam frequentemente como portadores assintomáticos e podem propagar o vírus sem mostrar sinais de doença
O risco varia consoante os diferentes tipos de aves ou aves de capoeira?
As aves aquáticas selvagens, como os patos e os gansos, atuam frequentemente como portadores assintomáticos e podem propagar o vírus sem mostrar sinais de doença. Por outro lado, as aves domésticas, como as galinhas e os perus, são geralmente muito suscetíveis e desenvolvem frequentemente sinais clínicos graves, levando a elevadas taxas de mortalidade. A gravidade dos sinais clínicos e a mortalidade dependem geralmente do estado imunitário das aves, se já estiveram em contacto com o vírus ou se foram vacinadas.
O que deve ser feito para evitar um surto de gripe aviária?
Mais do que evitar um simples surto, os nossos peritos, em conjunto com o ECDC, emitiram recomendações para reduzir o risco de propagação, bem como para evitar a evolução do vírus e o aparecimento de novas estirpes. Mais importante ainda, as autoridades de diferentes domínios devem trabalhar em conjunto, numa perspetiva de 'Uma Só Saúde', para limitar a exposição dos animais, especialmente dos mamíferos (incluindo os seres humanos), à gripe aviária.
Embora afete principalmente aves domésticas e selvagens, o vírus também pode afetar outros animais, incluindo mamíferos. Como é que se manifesta nestes casos?
Nos mamíferos, o vírus causa frequentemente problemas respiratórios graves, como dificuldade em respirar. Também podem ocorrer problemas neurológicos, como convulsões e desorientação, especialmente em espécies carnívoras. A maioria dos casos em mamíferos ocorre no meio selvagem, onde os animais são encontrados mortos e mais tarde testam positivo para o vírus.
Juntamente com o ECDC, recomendámos que se reforçasse a vigilância dos mamíferos, em especial em zonas com grande propagação do vírus da GAAP na população de aves selvagens, que podem levar a eventos de mortalidade em massa, e em estabelecimentos de aves de capoeira afetados pela GAAP ou nas suas imediações, bem como que se evitasse a exposição a mamíferos e aves mortos ou doentes.
Dada a atual circulação do vírus H5N1 em bovinos leiteiros nos Estados Unidos da América, quando o vírus da GAAP circula em áreas com ruminantes, também recomendámos que se considere a GAAP como um possível diagnóstico para sinais clínicos inexplicáveis ou persistentes. Também concluímos que se deve dar prioridade à vigilância em explorações de espécies mistas para detetar potenciais casos.
Nos bovinos leiteiros, o vírus tem mostrado um quadro clínico muito particular, com a infeção a concentrar-se na glândula mamária, incluindo uma diminuição drástica da produção de leite e leite espesso ou coagulado.
O comércio global e a circulação de pessoas influenciam a saúde humana e animal, proporcionando muitas oportunidades para a propagação de doenças infeciosas
Que desafios relacionados com a saúde animal, ambiental e humana é que o mundo pode enfrentar num futuro próximo?
Os desafios que o mundo enfrenta incluem as alterações climáticas, que agravam as vulnerabilidades dos sistemas alimentares devido ao aumento das temperaturas, às condições meteorológicas extremas e às alterações dos ecossistemas que alteram a distribuição dos agentes patogénicos e dos contaminantes no espaço e no tempo. O comércio global e a circulação de pessoas influenciam a saúde humana e animal, proporcionando muitas oportunidades para a propagação de doenças infeciosas, como vimos com a rápida propagação da Covid-19 em todo o mundo. Dizemos que os riscos sanitários e alimentares não têm fronteiras e, por isso, é fundamental que a comunidade científica colabore e partilhe dados e conhecimentos num contexto de 'Uma Só Saúde' para abordar estas questões interligadas.
Sabemos que, para enfrentar os desafios futuros em matéria de segurança alimentar com base nos conhecimentos científicos mais recentes e apoiar a transição para sistemas alimentares sustentáveis, temos de continuar a criar parcerias sólidas na UE e fora dela.
Recentemente, os cientistas da EFSA alertaram também para um aumento das "bactérias carnívoras" devido às alterações climáticas. Que outros desafios se colocam à alimentação mundial?
A EFSA opera num mundo em rápida mudança e precisa de garantir que pode continuar a cumprir a sua missão. Do nosso ponto de vista, vemos dois conjuntos de desafios para os próximos anos.
O primeiro diz respeito aos desafios da avaliação dos riscos relacionados com os riscos ambientais e emergentes, a avaliação da segurança de novos produtos, o desenvolvimento de novos métodos de avaliação, as misturas químicas, a toxicidade combinada de substâncias nos alimentos e a resistência antimicrobiana.
Existem também desafios societais, como as expectativas do público em relação à transparência e ao envolvimento, a evolução do conhecimento científico, que cria a necessidade de abordagens inovadoras e colaborativas, o impacto da globalização e das alterações climáticas, a disponibilidade de conhecimentos especializados para as necessidades multidisciplinares da EFSA, a democratização da informação e a proliferação dos meios de comunicação social e da inteligência artificial.
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