Um ano depois da eleição, em 13 de março de 2013, Francisco, que hoje morreu aos 88 anos, assistiu ao início da ocupação russa do leste da Ucrânia, onde vive a maior comunidade católica da ex-União Soviética, e, ao longo dos anos, viu a consolidação de líderes autocráticos e populistas, como o húngaro Victor Orbán ou o russo Vladimir Putin, mas também a chegada ao poder de nomes como o brasileiro Jair Bolsonaro, o norte-americano Donald Trump ou o filipino Rodrigo Duterte.
Todos estes nomes utilizam os valores cristãos como justificação para a sua ação política, mas o líder da Igreja Católica tem demarcado a doutrina católica dos populismos e extremismos.
Na encíclica "Fratelli Tutti" (Todos Irmãos), dedicada à fraternidade e amizade social, Francisco criticou o reacendimento de populismos, racismo e discursos de ódio, lamentando a perda de "sentido social" e o retrocesso histórico que o mundo está a viver.
"A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos", escreveu.
Identificou, então, o surgimento de "novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais" e associou discursos de ódio a regimes políticos populistas e a "abordagens económico-liberais", que defendem a necessidade de "evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes".
Sobre o racismo, Francisco disse ser um "vírus que muda facilmente" e "está sempre à espreita", em "formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos".
A invasão russa em larga escala da Ucrânia, há três anos, ocupou o discurso político recente.
"No início de 2022, a teia da terceira guerra mundial em fragmentos alargou-se a um novo cenário tremendo, transformando-se cada vez mais em conflito global", escreveu na sua autobiografia, "Esperança".
"A guerra atingiu o coração da Europa e varreu as últimas ilusões acerca do 'fim da história' que (...) haviam acompanhado a queda do Muro de Berlim" e "o mundo voltou a refletir-se no espetro da destruição nuclear, sob a ameaça concreta de artefactos cuja posse deve ser considerada imoral", recordou.
Horas depois da invasão, "não era tempo para preocupações com protocolos ou formalidades" e Francisco cancelou todas as audiências, dirigindo-se pessoalmente à embaixada russa junto da Santa Sé.
"Era a primeira vez que um Papa o fazia. O joelho não havia deixado de fazer das suas e, por isso, foi um Papa claudicante que se apresentou ao embaixador Avdeev para exprimir toda a preocupação", refere Francisco.
"Implorei o fim dos bombardeamentos, augurei o diálogo, propus uma mediação do Vaticano entre as partes, dizendo estar disposto a ir a Moscovo o mais depressa possível, assim que Putin (...) tivesse deixado aberta uma janelinha para negociar", refere Francisco.
Na resposta, o ministro dos Negócios Estrangeiros iria escrever-lhe para "dizer, com cortesia institucional, que não era o momento", recorda o pontífice.
Em paralelo, manifestou ao Presidente ucraniano - que receberia em outubro de 2024 - a sua solidariedade: "Estava e continuo à disposição, como um operário, disposto a fazer tudo o que servir o objetivo da paz; também por isso, única entre todas, a representação diplomática do Vaticano nunca deixou a sua sede na capital ucraniana, nem durante os mais brutais bombardeamentos".
"O povo ucraniano não é apenas um povo invadido, é um povo mártir, perseguido já nos tempos de Estaline com um genocídio por fome, o Holodomor, que causou milhões de vítimas", considerou o Papa.
"Qualquer guerra é uma capitulação vergonhosa", "Quem faz a guerra esquece a humanidade, não se preocupa com a vida das pessoas", "Rios de sangue e lágrimas correm na Ucrânia" ou "Em nome de Deus... parem este massacre", foram algumas frases por si proferidas, em audiências, no Ângelus ou em homilias.
Um dos momentos significativos em relação à guerra na Ucrânia ocorreu no dia 25 de março do ano passado, quando o Papa Francisco consagrou a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, em Roma, enquanto em Fátima, como Legado Pontifício, o cardeal Konrad Krajewski fez o mesmo ato na Capelinha das Aparições.
Na ocasião, Francisco considerou que os homens esqueceram "a lição das tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos nas guerras mundiais".
Uma III Guerra Mundial "aos bocadinhos" foi como Francisco classificou a situação mundial numa entrevista em julho de 2022, e em outubro pediu que se aprenda com a História e que não se esqueça que o perigo da guerra nuclear já ameaçou o mundo há 60 anos, quando se iniciou o Concílio Vaticano II.
Sobre os ataques ao Estado de direito, Francisco tem sido muito vocal: "Também a democracia, aquela democracia pela qual os nossos avós lutaram em tantas partes do mundo, não parece gozar de ótima saúde, exposta também ela ao risco de uma virtualização que substitui a participação ou o vazio de significado", escreveu.
Para Francisco, "a democracia não é um televoto, nem um supermercado", pelo que se deve "voltar a pensar com criatividade em formas de participação real, que não sejam a adesão a personalizações populistas ou à idolatria do candidato atual", mas sim "ao envolvimento ideal e concreto num projeto de comunidade, num sonho coletivo".
O pontífice argentino defendeu ainda que o "desprezo pelos vulneráveis" pode esconder-se em formas populistas que, "demagogicamente, se servem deles para os seus fins", ou em formas liberais "ao serviço dos interesses económicos dos poderosos", e alertou para a diferença entre populismo e popular.
"Que os jovens saibam de que maneira começam os populismos. E como podem acabar", porque "as promessas que se baseiam no medo, acima de tudo, o medo do outro, são a censura habitual dos populismos e o início das ditaduras e das guerras. Pois para o outro, o outro és tu", escreveu.
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