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"Não sou um herói, isso é horrível. Fui apenas um instrumento"

Recordando o período difícil da luta pela independência, Xanana Gusmão admite que Timor é hoje um país diferente, apesar de ainda haver muito a fazer para o seu desenvolvimento. Contudo, o caminho está a fazer-se passo a passo e a mensagem que deixa agora ao seu povo é de "esperança, esforço, determinação".

"Não sou um herói, isso é horrível. Fui apenas um instrumento"
Notícias ao Minuto

12:10 - 19/05/17 por Andrea Pinto

Mundo Xanana Gusmão

Após anos de luta, Timor-Leste conseguiu finalmente o “direito” pelo qual lutou durante anos: a independência. Estávamos a 20 de maio de 2002, há precisamente 15 anos. 

Assolado pelas milícias armadas pró-indonésias desde 1975, Timor votou em agosto de 1999 pela sua independência e em 2002 viu a ONU a transferir os poderes para as novas autoridades eleitas.

José Alexandre Kay Rala Xanana Gusmão foi o rosto dessa luta e, mais tarde, o primeiro presidente do país. Viu companheiros de guerra morrer, esteve preso, e garante que a morte era para ele “uma certeza”. Apesar disso, desistir nunca foi uma opção até porque “a morte naquele período era o cumprimento do dever”. 

Este sábado, Timor une-se para empossar o novo presidente Francisco Guterres Lu-Olo e assinalar o 15.º aniversário da restauração da Independência timorense, um dia que nos é hoje recordado pela voz do próprio ‘Comandante’ Xanana Gusmão, numa entrevista exclusiva ao Notícias ao Minuto.

Comemoram-se os 15 anos da Restauração da Independência de Timor Leste. Que recordações guarda desta luta?

Recordações muitas, demasiadas. Boas e más, claro. Do lado das boas, posso dizer que aprendi muito. Aprendi a persistência deste povo que fez todos os sacrifícios para ser independente. Por outro lado, recordo-me de ter morrido muita gente como produto de uma guerra. É nesse sentido que estamos a incutir em todos os países que haja paz. A guerra é a pior tragédia que pode existir no mundo.

Foram tempos difíceis. Em algum momento achou que os sacrifícios seriam em vão?

Nunca. Nunca na medida em que estávamos convencidos do nosso direito. Durante os 500 anos de ocupação do processo colonial português os nosso ancestrais pediram sempre esforços por aquilo a que tínhamos direito. A nossa história contada pelos velhos foi sempre a lembrar-nos que a terra é nossa. Então, todo o sacrifício é pouco quando se quer alcançar a liberdade, a independência.

Todo o sacrifício é pouco quando se quer alcançar a liberdade, a independênciaFalando em sacrifício houve muitas pessoas que morreram durante esta jornada, incluindo companheiros seus. Foi por eles que nunca desistiu?

Quer que lhe conte uma história? Quando comecei a pegar na luta, a viver a luta, houve tempos de muita tristeza porque eramos poucos guerrilheiros e quando chegavam notícias de que estavam a morrer eu não aguentava e chorava. E os outros guerrilheiros que me viam a chorar chegavam ao pé de mim e diziam: ‘Comandante, pare de chorar! Eles já cumpriram o dever, agora tome conta de nós’. Agradeci-lhes porque estavam a lembrar-me de que a morte naquele período era o cumprimento do dever.

Chorava porque tinha perdido amigos e companheiros ou porque também tinha medo de morrer? Alguma vez receou que isso pudesse acontecer?

Todo e qualquer guerrilheiro [pensou isso]. Nenhum de nós estava convencido de que ia sobreviver até ao fim da guerra. Estávamos preparados para morrer logo no dia seguinte. Estávamos em guerra, o inimigo era poderoso e superior em número e equipamento. Estávamos preparados para morrer a qualquer momento. De forma que não havia aquele pensamento ‘E pá, um dia vou morrer’. Não se tratava de ‘um dia vou morrer,’ tratava-se de estar preparado porque a qualquer momento podíamos morrer.

'Comandante, pare de chorar! Eles já cumpriram o dever, agora tome conta de nós'Mas se assim era, significa que não tinham esperança de que conseguiriam vencer esta luta?

Não… Eu estava a comandar 1.500 guerrilheiros, com mais de 500 armas, sem munições, claro, e estávamos a morrer em operações. Depois fomos melhorando as nossas táticas e fomos recuperando alguma coisa mas mais para sobrevivência da luta armada. Enquanto isso, íamos reforçando a frente política que era conhecida por ser uma organização clandestina, pela participação das populações na Frente Clandestina.

Após, um certo tempo reparámos que a guerra não ia ser vencida pelo poderio militar, pela força das armas. A guerra seria vencida pelo aspeto político de resistência de toda a população e, claro está, indubitavelmente, pelo aspeto diplomático em termos de reconhecimento dos nossos esforços por parte da comunidade internacional. E foi o que aconteceu.

A vitória soube ainda melhor, tendo em conta que não esperava que fosse possível?

Eu não diria que não estávamos à espera que não acontecesse. A questão era, apenas, de tempo.

Foi quem liderou esta luta e um dos seus principais protagonistas. Considera-se um herói nacional?

Essa é a coisa mais horrível que poderia escolher. Apenas tive uma oportunidade de orientar o esforço e esta intenção do nosso povo de se libertar. Fui apenas um instrumento. Se é uma condutora, sabe que o que leva os passageiros é o carro, não é a condutora.

Aliança com Portugal é eterna, estratégica e sublime Na altura, gerou-se uma onda de solidariedade, em que Portugal desempenhou um papel relevante na obtenção deste estatuto por parte dos timorenses. Essa aliança é ainda patente nos dias de hoje?

Com certeza. Eu diria que uma aliança deste género é eterna, estratégica e sublime porque não se colocam aqui questões de interesse, mas sim questões de solidariedade humana entre povos. Isso deve permanecer. Claro que a situação atual no mundo tem os seus reflexos, mas este apoio, esta solidariedade veio mesmo em horas mais difíceis. Em 1999, 2000, 2001, 2002 houve portugueses que deixaram as suas casas e vieram com um espírito missionário, um espírito em que não se colocava a questão de ‘quanto vamos ganhar’ mas para sofrer connosco. Vieram para aqui para sentir connosco as dificuldades posteriores, ou seja, a destruição total do país. Agora, [essa aliança] continua num grau já muito mais organizado em termos institucionais. Cada um dos povos tem os seus próprios problemas, mas eu acredito que em momentos difíceis o povo vai comportar-se da mesma forma e com a mesma convicção.

Muita dessa atenção internacional foi conseguida após o massacre de Santa Cruz. Este massacre é uma ferida coletiva que nunca vai sarar?

Se quer que compare, essa ferida é como uma pequena navalha. As feridas maiores aconteceram nos primeiros três anos de guerra, quando se chegou a morrer de bombardeamentos - bombardeamentos de aviões que foram utilizados no Vietname -, de fome, de massacres em maior grau em termos de número, e de aprisionamentos. O Massacre de Santa Cruz teve reflexo especial na medida em que foi denunciado e visto por todo o mundo. Como ferida, houve feridas maiores e nós conseguimos sará-las.

Ferida do massacre de Santa Cruz é como uma pequena navalha. As feridas maiores aconteceram nos primeiros três anos de guerraEm 2002, foi eleito o primeiro presidente de Timor Leste. Como encontrou o país na altura, após tantos anos de luta?

Não encontrei um país. O país estava fisicamente destruído, economicamente estávamos a zero e socialmente estava bastante despedaçado, por causa das consequências pós-conflito. Os primeiros cinco anos – de 2002 a 2007 – foram uma aprendizagem. Uma aprendizagem que é costume, é sempre assim em todos os processos políticos e nós conseguimos ultrapassá-lo, mesmo apesar da nossa situação monetária e de não termos experiência de governação, de nada... Nós estávamos a lutar pela independência mas não nos estávamos a preparar para essa independência. Foi uma situação difícil em que se exigiu muito da nossa parte, para acalmar os ânimos, reduzir as expetativas. Custou mas ultrapassámos.

Ainda hoje se sentem dificuldades e ainda há muito por fazer por Timor-Leste?

Claro, em 15 anos não se pode esperar que fizéssemos milagres. Roma e Pavia não se fizeram num dia. Já fui a países, sobretudo em África, com já 40, 50 e 60 anos de existência e estão em piores condições do que nós. O que estamos a fazer aqui não é algo de especial, mas nós temos um plano para um crescimento gradual até 2030. Claro que estamos a cumprir cada compêndio das prioridades traçadas e é óbvio que tudo merece ser depois revisto, mas estamos a andar.

Agora definimos como prioridades do país a construção de infra-estruturas básicas: pontes, portos, aeroportos, a água… Eletricidade já temos em todo o país. Só que ainda estamos no processo de ver que tipo de prioridades podem ser realizadas nestes anos para que criemos condições para ativarmos outros assuntos. No início toda a gente esperava que fizéssemos milagres mas hoje, claro que há muito que fazer, mas estamos a trabalhar com muito orgulho e posso dizer, com um certo realismo, que estamos num bom caminho.

O apoio internacional que Timor Leste recebeu na altura desvaneceu depressa demais após a declaração da independência ou continuam a receber essa ajuda?

Esta é uma questão muito difícil. Em termos comparativos, desde fins de 1999 até agora, a ajuda internacional foi de mais de 8 mil milhões de dólares. Metade desse valor foi usado para pagar às pessoas das instituições internacionais, como das operações de paz, que vieram aqui para ajudar. Portanto, não teve muito efeito.

Nós, por capacidade de decisão do nosso primeiro governo, criámos a nossa própria reserva petrolífera, que, não sendo grande, nos tem permitido colmatar as nossas necessidades anuais. Estamos mais dependentes de nós mesmos.

Toma posse, este fim de semana, o novo presidente timorense, Francisco Guterres Lu-Olo. O que é que Timor pode esperar desta nova liderança?

O sistema é idêntico ao sistema português. O presidente da República é o presidente da República. Em junho vão começar as campanhas, a 22 de julho começam as eleições [legislativas] para um mandato de cinco anos. E esta pergunta talvez se aplique mais para o novo governo, pergunta à qual só poderemos responder depois.

O problema é que toda a gente aqui me chama de ‘Avô Xanana’, mesmo os mais velhos. Ou seja, a minha família é grandeEm 2016, foi acusado de estar a usar o poder em proveito próprio e da sua família [acusações são de Matan Ruak, presidente timorense]. Como reage a estas acusações?

Estou aberto a qualquer investigação. O problema é que toda a gente aqui me chama de ‘Avô Xanana’, mesmo os mais velhos. Ou seja, a minha família é grande.

Acha que estas acusações são mais o resultado de um conflito político?

Como jurista, as acusações fundamentadas devem seguir um procedimento normal e ser levadas ao Ministério Público e posteriormente ao tribunal, dizendo se vai ou não para a prisão.

A poesia tem sido uma das suas paixões e escreveu vários poemas sobre a luta de Timor e do seu povo. Se fosse hoje, sobre o que escreveria?

Esperança, esforço, determinação. Coisas mais positivas, a pedir um maior compromisso por parte de cada cidadão, sobretudo dos jovens, e incutir a esperança no coração e nas mentes porque é preciso perceber-se que processos assim - sociais, económicos, políticos - levam o seu tempo.

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