"Ainda estamos a digerir um bocadinho [o que aconteceu]. Foi um susto, foi como se uma tragédia se abatesse sobre a cidade", diz à agência Lusa Susana Ramalho, 35 anos, natural do concelho de Elvas (Portalegre), mas a morar em Reguengos de Monsaraz há 14 anos.
Passados mais de dois meses sobre o início do surto no lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS), Susana recorda que, "durante semanas, a cidade ficou deserta".
"Mal tínhamos saído do confinamento, as pessoas aqui voltaram logo a casa, tudo parou", incluindo comércio e restaurantes, conta a moradora.
E, quando as mortes de doentes com covid-19 começaram a acontecer, deixaram "marcas" na população: "Havia um sentimento de perda enorme. Numa comunidade pequena como esta, viveu-se muito a dor dos outros, afetou bastante".
Agora, depois do surto resolvido, com "todos os cuidados", os habitantes "já começam a tentar ter um bocadinho mais de vida normal". Susana exemplifica, referindo que "já se vê pessoas da terra num ou outro restaurante, em algumas esplanadas".
O surto de Reguengos de Monsaraz, detetado em 18 de junho, provocou 162 casos de infeção, a maior parte no lar da FMIVPS (80 utentes e 26 profissionais), mas também 56 pessoas da comunidade, tendo morrido, até finais de julho, 18 pessoas (16 utentes e uma funcionária do lar e um homem da comunidade).
O padre Manuel José Marques, de 60 anos e pároco local há quase 23, foi quem celebrou a maioria dos funerais, com novas regras ditadas pelo coronavírus SARS-CoV-2.
"Fazer um funeral é sempre duro. Para mim também, nunca vou de ânimo leve, mas chegar ali e ainda por cima não ver quase ninguém foi muito complicado", lembra.
"Com tão pouca gente, dar um abraço à família era uma reação que me apetecia ter", acrescenta. Como não o podia fazer, restava-lhe dizer aos familiares que gostava de abraçá-los. "E ali ficávamos, os poucos que ali estávamos, na emoção do não posso", relata.
Houve dias de vários funerais: "Num deles, chegou a haver um de alguém não católico, um católico celebrado por mim e ainda me cruzei com um sacerdote ortodoxo que veio celebrar o de uma pessoa estrangeira", indica, referindo-se à funcionária do lar, com 42 anos.
"Foi um embate muito grande para a comunidade", admite o padre, responsável por dois centros sociais no concelho (S. Pedro do Corval e Campinho) e até diretor do jornal local Palavra.
No centro social de Campinho houve, "logo no início, em março, duas funcionárias infetadas", num surto que atingiu oito pessoas na aldeia, mas a doença ficou por aí.
Por isso, quando a covid-19 'invadiu' o lar da FMIVPS, numa altura em que o Alentejo quase não tinha casos ou mortes, foi "uma surpresa".
A comunidade só começou a serenar quando viu que a situação estava confinada, mas até lá não se avistava o fim: "Eu, que nem sou de me assustar, nem de fazer grandes filmes, cheguei a pensar que iria ser muito pior", relata Manuel Marques.
A par dos efeitos diretos da pandemia da covid-19, o padre diz ter visto surgir outros problemas na cidade: "a pandemia do medo e, depois, a pandemia económica".
"Reguengos estava às moscas. Cheguei a desafiar as pessoas para não terem medo, para irem beber um café, não tínhamos era de andar todos juntos, mas que podiam sair e viver", assinala.
Deparou-se com "pessoas a chorar porque não tinham negócio, estava tudo parado, ninguém lá ia".
E era esse o panorama: "Havia as pessoas doentes, as que estavam com medo e as que tinham o problema dos negócios parados e não sabiam o que fazer à vida. E quem tem contas para pagar perde o medo do vírus, é obrigado a isso".
Dona uma loja de material elétrico, Liliana Barrambana, de 37 anos, fechou ao público, mas manteve os fornecimentos para a construção civil.
"Os fornecedores é que não queriam vir, diziam mesmo 'eu nem passo ao pé de Reguengos'. Estou a falar de fornecedores de tudo, chegou a este ponto", recorda.
Em 'dois dedos' de conversa na pequena pastelaria da mãe, Francisca, mesmo ao lado da Praça da Liberdade, em obras, sem trânsito, mas onde a Lusa observou diversos moradores a circularem, quase todos com máscara na cara, Liliana assegura que as pessoas já saem à rua, com cuidados redobrados.
"É 'coração à larga' porque se tem de continuar a trabalhar, a viver, a fazer as coisas. Senão, as pessoas não morrem do vírus, morrem à fome", afiança.
Sobre a polémica em torno do surto, que levou à abertura de um inquérito judicial e a uma auditoria da Ordem dos Médicos (esta concluiu que o lar não cumpria as orientações da Direção-Geral da Saúde), ninguém se alonga em comentários, mas todos querem respostas.
"Não conheço o lar a fundo, não sei o que lá se passou. Acho que se deve apurar a verdade dos factos, mas não sei se há razões para isso. Eu próprio me questiono sobre como é que isto aconteceu aqui, de repente e tão rápido", afirma o pároco.