"Aprendemos muito sobre o vírus, mas explicaram-nos mal qual era a luta"

Médico intensivista faz um retrato deste ano de pandemia em Portugal: "A sorte de não ir à frente, levou-nos a ter tempo de deixar o medo funcionar. Somos um povo emotivo, e o sofrimento de Itália salvou-nos".

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© Global Imagens | Artur Machado

Notícias ao Minuto
02/03/2021 20:04 ‧ 02/03/2021 por Notícias ao Minuto

País

Gustavo Carona

O médico intensivista Gustavo Carona partilhou, através do Facebook, um texto em que faz um 'sumário' do que foi este ano de pandemia. Exatamente a 2 de março de 2020, Portugal teve o seu primeiro caso positivo. "Há um ano começámos a contar os casos. E depois fomos contar as camas e os ventiladores. E só depois é que compreendemos que tínhamos que contar as pessoas com quem podemos contar para tratar de pessoas", começou por adiantar o especialista.

Para este, "a sorte de não ir à frente, levou-nos a ter tempo de deixar o medo funcionar. Somos um povo emotivo, e o sofrimento de Itália salvou-nos". A partir daí, descreve Gustavo Carona, "fomos construindo a leitura de que o desafio era um pouco mais duro e mais longo do que uma quarentena de 14 dias".

"Quem teve o cuidado de olhar, para mais do que para si próprio, foi percebendo que, para além da contagem de mortos, e dum olhar para o mundo comparativo, era preciso encarar de frente as terríveis fragilidades dos que sofriam dos danos colaterais do combate à pandemia", acrescenta.

O "embate nos hospitais" que fizeram 'das tripas coração' "transformou-se num 'não foi assim tão mau'", advoga, sublinhando que "a vontade de viver com o sol a bater, levou-nos a querer esquecer que não somos ninguém perante a natureza e a vontade que o vírus tem de encontrar corpos para se fazer multiplicar".

Os turistas "foram entrando e saindo, as esplanadas encheram-se, e parecia estar terminado o pesadelo que entristecia o mundo". "Mas as crianças têm de ir à escola, e o país tem que voltar a trabalhar, e a luta da economia destronava o que foi uma visão outrora centrada na saúde", com setembro e a outubro a serem "os meses de confirmação de que não podemos fugir da natureza, de que qualquer preparação seria sempre insuficiente".

"Portugal foi chorando a velocidades diferentes, entre os que perdiam a vida e os que perdiam emprego e a capacidade de alimentar a sua família"

E "como continuámos a achar que a luta era entre a saúde e a economia", frisa Gustavo Carona no mesmo texto, "esquecemo-nos de lutar contra o vírus, a sua compreensão e a imperiosa compensação económica dos que tinham que fechar portas para que se salvasse vidas, e controlasse a pandemia". "Portugal foi chorando a velocidades diferentes, entre os que perdiam a vida e os que perdiam emprego e a capacidade de alimentar a sua família".

Assim, continua o intensivista, "enquanto nos tentavam explicar que o Natal tinha que existir, não conseguiram perceber que os únicos países que conseguiram mitigar as perdas da economia foram os que controlaram agressivamente a pandemia".

Contudo, a "selva de opiniões da Democracia que tanto gostamos prejudicou-nos o discernimento" e o "ruído tirou-nos o foco". Tentamos "aumentar o armamento da guerra da saúde contra a economia, a cultura e a educação, mas até hoje ainda não percebemos que a luta não é essa. A luta é de todos pela cidadania."

"Não haveria forma de ganhar, mas podíamos ter perdido por menos esta clivagem entre o 'Eu' e o 'Nós', se tivéssemos sido mais agressivos na compreensão. Os bombeiros não descansam enquanto não se apaga o fogo, e se não compreendermos isso, arde-nos o país todo, porque na luta contra os incêndios não há empates nem meias vitórias. Para os profissionais de saúde deixar as pessoas morrer sem ir à luta, não é um empate, é uma derrota", partilhou.

"A luta é por um mal menor, é para que se salvem vidas, é pelo bem-comum"

De acordo com Gustavo Carona, "aprendemos muito sobre o vírus, a doença e sobre saúde, mas explicaram-nos mal qual era a luta". "A luta é por um mal menor, é para que se salvem vidas, é pelo bem-comum que foi para isso que construímos Democracias, e teríamos que ter feito melhor para compreender que o tecido que compõe a nossa sociedade tem a força das suas fibras mais fracas, que nós são soubemos proteger, porque ainda não tiraram do meu ordenado".

"Pandemia, impostos, bem-comum e cidadania... acho que deveríamos ter sabido conjugar estas palavras na mesma frase há um ano, até aos dias de hoje", aponta, acrescentando que "a luta dos hospitais só terá valido a pena, se soubermos segurar e compensar os que salvaram vidas, perdendo o seu negócio ou o seu emprego".

"O tema é saúde, mas o desafio é cidadania. Um ano e nem isso aprendemos. Até que a vacine nos liberte, ainda é tempo. E será sempre tempo de fazermos melhor", termina.

Leia Também: "Números estão a destruir vidas a uma velocidade nunca antes vista"

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