"Do ponto de vista do planeamento, a grande questão aqui passa mais pela fronteira, a meu ver, entre o espaço privado e o espaço público", afirmou a socióloga, para quem o desafio será encontrar a fórmula para "fazer a ponte" entre o habitual espaço da casa e da família, com a multifuncionalidade associada ao teletrabalho e as consequências que daí poderão advir.
"Aquilo que mudou bastante e que realmente também impactou muito a vida das pessoas é a forma que elas têm de fazer atividades que antes faziam fora de casa", sublinhou a investigadora, acrescentando a esta equação as compras, as horas de lazer e o desporto: "Tudo, ficou muito condicionado ao espaço da casa".
"Hoje fala-se muito em especialização de espaços, em construir espaços adaptados a essas múltiplas valências, uma casa que serve para trabalhar, para fazer desporto, para estar com a família, para fazer de escola para os filhos, enfim, uma série de coisas que antes talvez não se pensasse com tanta acuidade", reconheceu.
Docente no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Sofia Aboim questiona-se: "Será que vamos passar a usufruir do espaço da mesma maneira?".
Aqui entram igualmente eventuais novos hábitos como visitas virtuais a museus e todo o tipo de consumos que com a pandemia se tornaram mais comuns online.
"Certamente vamos ter de aguardar para perceber as mudanças e vamos ter de partir de um cenário de retorno completo ao espaço público e ao seu usufruto, em que a pandemia já não sirva de constrangimento, em que esteja completamente ultrapassada", defendeu.
"As tendências e os estudos apontam para que as coisas retomem uma normalidade, a questão é que há tendências que ficam. Uma delas, por exemplo, é o teletrabalho, outra tem a ver com a educação a distância, com a possibilidade de utilizar estas tecnologias e também os consumos de visitas de museu a distância, as compras via 'online'. Certamente poderão sofrer oscilação, mas foram criadas muitas ferramentas para que isso pudesse acontecer exatamente desta maneira", frisou a socióloga.
Habituada a estudar o comportamento humano, Sofia Aboim considera que várias alterações poderão ter impacto nos diferentes espaços e na forma como a cidade é gerida.
"Por exemplo, vamos continuar a ter teatros e cinemas ou será que já há demasiados para aquilo que vamos usufruir? A questão do turismo em cidades como Lisboa, como o Porto, em regiões como o Algarve, é absolutamente central. Até que ponto é que o turismo recuperará e recuperará no mesmo sentido em que era antes?", questionou.
A confirmação das alterações vai depender muito das famílias, do comportamento privado, mas também de fatores externos como os "grandes eventos" e da forma como se organizarão reuniões de negócios, reuniões académicas, congressos e outros eventos públicos.
"Não digo que passe a ser tudo 'online', porque também tem pouca viabilidade, mas muita coisa poderá vir a ser ajustada", considerou.
Para Sofia Aboim, há fatores que vão necessariamente alterar a forma como se planeiam os espaços, desde as casas ao espaço comum.
"Não sabemos exatamente em que é que vamos ficar. Agora, sabemos, desde já, que este usufruto do espaço e estas transformações não são nem igualitárias, nem democráticas; as casas adaptadas, os meios 'online', mesmo o teletrabalho, com tudo o que tem de bom ou de mau, o acesso à educação, o acesso a tudo não é necessariamente igualitário", advertiu.
Considerou, por isso, importante envolver sociólogos no debate em curso sobre novas formas de habitar, de construir e de usufruto do espaço pós-pandemia.
"As pessoas não têm a mesma possibilidade económica de terem casas adaptadas a toda essa multifuncionalidade, não têm as mesmas possibilidades de terem espaços para o trabalho, espaços para a família, enfim, de conjugarem tudo. Mesmo os melhores planeamentos não deixam de se notar a braços com uma enorme desigualdade, que aumentou durante este período de pandemia. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres, mais pobres. Isso nós sabemos", sustentou.
"Que isso também terá impacto no espaço, sem dúvida. Que novas guetizações, que novos espaços e divisões entre ricos e pobres é que vamos assistir -- e chamo a atenção que a sociedade portuguesa é particularmente desigual. Historicamente, nunca conseguiu realmente debelar elevados índices de desigualdade e de exposição a pobreza. Do ponto de vista do espaço, isto também é uma questão importante", frisou Sofia Aboim quando desafiada pela Lusa a responder a questões sobre o impacto da pandemia no espaços privado e público e nas alterações que poderão vingar no pós-pandemia.
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