Em março de 2020, a vida dos portugueses mudava para sempre. Após meses a adiar o inevitável, decretava-se no país o Estado de Emergência e o confinamento tornava-se obrigatório. Milhões de pessoas foram obrigadas a ficar em casa e entre eles muitos casais que, provavelmente, jamais pensaram que os meses que se seguiriam iriam pôr à prova a sua união.
De um dia para o outro, passaram a estar sob o mesmo teto 24 sob 24 horas, uma nova realidade que veio alterar as suas vidas, tornando muitas relações num autêntico desafio. Para muitos, a experiência veio fortalecê-los e provar que unidos o amor pode vencer, outros admitem que foram tempos difíceis. Já algumas relações… não sobreviveram.
Porém, “não foi o confinamento que acabou com as relações”. O amor muitas vezes não é suficiente para tornar uma relação bem sucedida e para isso são necessários outros “ingredientes” que ajudem a manter viva a paixão. São precisamente esses ingredientes que Rute Agulhas, Sílvia Samora, Márcia Pinhal e Filipe Gil pretendem indicar-lhe na obra conjunta ‘S.O.S. Casais’, um trabalho que resulta da experiência de vários casais em tempos de pandemia.
A obra reúne as suas experiências e oferece uma série de exercícios práticos para que cada casal consiga respeitar o espaço um do outro, sem perder a cumplicidade e manter acesa a paixão.
Como respeitar a fórmula 1+1=3 de uma relação?
“Numa relação positiva e saudável espera-se que os casais consigam estar 24 horas juntos. No entanto, se as 24h se transformarem em semanas ou meses e, em particular, num período de elevado stresse, podem surgir inúmeros desafios”. A afirmação é de Sílvia Samora e reflete bem aquele que terá sido um dos principais obstáculos das relações durante o confinamento: a falta de espaço.
Para a psicóloga, especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Justiça e Psicologia Comunitária, “o nascimento do casal é como uma fórmula matemática, embora incorreta. 1 + 1 = 3”. Segundo explica, “cada algarismo (1), diz respeito a um dos elementos do casal, com a sua individualidade e especificidade, com a sua história e passado, as suas vivências e aprendizagens”. Contudo, “para que surja o casal, é necessário que se crie uma identidade conjunta, um ‘nós’. Este será o terceiro elemento. E isto quer dizer, que, para além da relação de casal, há a dimensão individual que deve ser preservada, consoante as necessidades e interesses de cada indivíduo”.
“Numa relação positiva e saudável espera-se que os casais consigam estar 24 horas juntos. No entanto, se as 24h se transformarem em semanas ou meses e, em particular, num período de elevado stresse, podem surgir inúmeros desafios”Querer ter privacidade e não conseguir pode ter um impacto negativo numa relação. De tal forma que, como conta Rute Agulhas, houve pessoas que “chegavam a sair de casa e a ir para dentro do carro, apenas para poderem ter uns minutos de paz e silêncio”.
Confinamento e o viver juntos: o bicho papão de uma relação?
Estar sob o mesmo teto durante 24 horas, durante dias e semanas consecutivas foi assim um desafio para muitos casais que estavam provavelmente habituados a estar juntos só de manhã ou à noite. Pô-los juntos durante mais tempo veio pôr em cima da mesa a questão sobre se estariam definitivamente prontos para assumir uma relação séria.
“Se não estamos confiantes para viver debaixo do mesmo teto com a outra pessoa é porque não estamos confiantes com aquele compromisso”, afirma Márcia Pinhal, para quem “as dificuldades prévias no relacionamento” estão na origem do fim dos relacionamentos que não sobreviveram. “Agravaram-se os problemas que já existiam”, acrescenta Filipe Gil.
Assim, aconselha a psicóloga, se duas pessoas “quiserem e decidirem viver juntos, importa o conhecimento que têm sobre o outro, as competências de comunicação e também clarificar e negociar o que se pretende para aquela relação”.
A profissional fala mesmo num ‘contrato da relação’ em que se fale “de forma clara e se defina o significado que cada um atribui à relação, quais são os seus sonhos, desejos, fantasias e expectativas”.
Confinamento pôs “a nu” fragilidades e dificuldades
Assim, “se para uns, o tempo em confinamento serviu para perceberem que estavam no local certo e na relação certa, para outros trouxe a certeza de que era já insuportável a convivência com o parceiro”, acrescenta Márcia Pinhal
Segundo um questionário levado a cabo pelos autores da obra, 40% dos casais afirmam que viver a dois em confinamento foi sobretudo um desafio, que os aproximou ainda mais do ponto de vista afetivo. Esta percentagem refere-se, sobretudo, a casais que são tendencialmente mais velhos, têm uma relação mais longa e filhos mais crescidos e associam o confinamento a maior cumplicidade, tolerância, amizade e conhecimento mútuo".
Outros 32%, e sobretudo casais mais jovens com relações de menor duração, sentiram que o confinamento acabou por ser uma ameaça e deixou mais expostas as fragilidades e dificuldades prévias. “Aquilo que a rotina do dia a dia ia escondendo, acabou por ficar a nu com o aumento de tempo de convívio”, diz Rute Agulhas.
Para uns, o tempo em confinamento serviu para perceberem que estavam no local certo e na relação certa, para outros trouxe a certeza de que era já insuportável a convivência com o parceiro”Para muitos casais o confinamento foi, assim, o início do fim. Para esta profissional “em todas as relações de casal existem situações de desacordo que podem tornar-se adaptativas, caso permitam que a relação evolua, cresça e se fortifique”. Contudo, quando isso não acontece, e os “problemas se acumulam e permanecem sem uma verdadeira resolução, trazem uma outra dimensão ao conflito relacional”.
A opinião é corroborada pelo único autor masculino desta obra que defende que “quando as dificuldades existem ou se trabalha junto para as vencer, ou não vale a pena”.
“As pessoas hoje são pouco altruístas, no meu entender, à primeira má resposta, ou ao primeiro 'dia não' começam logo a pensar em divórcios. É bom haver essa liberdade mas hoje vive-se o casamento como uma t-shirt que se compra numa loja de moda barata, usa-se até gostarmos, depois deita-se fora e compra-se outra”, defende o jornalista.
A importância da comunicação… mesmo da não falada
A primeira regra desta receita é perceber que o amor sozinho não faz uma relação. “Tem necessariamente de estar rodeado de outros ingredientes, como o respeito, a amizade, a confiança, a lealdade e a admiração”, afirma Rute Agulhas, acrescentando que o amor “tem de ser mimado e cuidado diariamente e nos mais pequenos detalhes”, sendo “potenciados por competências de escuta e de comunicação clara e coerente, por uma expressão afetiva positiva e uma gestão saudável e assertiva dos conflitos”.
A comunicação é ingrediente essencial. “Quando um casal não está bem tendem a erguer-se muros de silêncio e de defesa, que nos permitem identificar um processo de comunicação ineficaz. Aqui, falamos não do silêncio como tempo individual de introspeção (importante para o nosso bem estar), mas sim do silêncio que nos isola e afasta do outro, muitas vezes num claro evitar do confronto”, explica Márcia Pinhal, para quem “não existe não comunicação”.
“Os casais não leem pensamentos nem existem bolas de cristal”, por isso, é “importante que o casal a clarifique sempre que necessário, evitando as típicas leituras de pensamento e inferências arbitrárias”.“O silêncio, o tom de voz, o sorriso, o olhar, o toque… são formas muito ricas de comunicarmos algo ao outro”, diz, acrescentando que “é fundamental que a comunicação verbal e a não-verbal sejam coerentes entre si”.
“Os casais não leem pensamentos nem existem bolas de cristal”, por isso, é “importante que o casal a clarifique sempre que necessário, evitando as típicas leituras de pensamento e inferências arbitrárias”.
No meio de tudo isto, também a intimidade fica afetada. “Dizemos que o fogo precisa de ar, que é como quem diz, precisa de espaço. O desejo nasce no espaço entre eu e o outro”, diz Sílvia Samora, que defende ainda que “a intimidade pode sofrer um enorme abalo, não só com a monotonia da relação, as rotinas diárias ou o cuidado com os filhos, mas também com a ansiedade, o stress e a frustração que foram sentidos por muitos casais”.
O amor não tem livro de instruções, mas um S.O.S pode sempre ajudar
E foi assim que nasceu o ‘SOS Casais’. Um livro que não pretende (nem poderia) ser um livro de instruções, até porque “não existem receitas mágicas” para o amor, refere Rute Agulhas, mas que pretende dar-lhe os ingredientes necessários para que esta receita resulte num prato que 'encha a barriga' (e o coração) dos dois elementos do casal.
Os autores acreditam que “este livro destina-se a todos os casais. Aos que têm uma relação saudável e satisfatória e, que ainda assim, desejam promover competências de comunicação e de relação com o outro, apimentar a relação ou aprofundar o conhecimento que têm de si e do outro” e destina-se também “aos casais que se sentem mais insatisfeitos, numa área em particular ou de uma forma mais geral, e que podem aqui encontrar um caminho de reflexão, crescimento e mudança”.
S.O.S. Casais foi apresentado no passado dia 8 de julho© D.R.
Segundo a terapeuta Familiar e de Casal Rute Agulhas, este livro “não é um ‘terapeuta de bolso’ que resolve todos os problemas e substitui uma ajuda especializada. É, sim, um caminho de reflexão e conhecimento, de si e do outro, com vista a melhorar a forma como cada elemento do casal se sente na sua relação, (…) ajudando o casal a pensar sobre a forma como comunicam, expressam afetos, resolvem divergências ou alimentam a sua intimidade, emocional e sexual”.
É assim, uma obra que, segundo Filipe Gil, compila uma “espécie de boas práticas para que, dentro dos problemas e dificuldades da vida em casal - com ou sem filhos -, podem ajudar a que as relações consigam ser mais estáveis e duradouras, e sobretudo felizes para ambos”.
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