A conclusão é de António Fernando Cascais, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa e investigador em estudos do género e teoria 'Queer'.
Em entrevista à agência Lusa, o investigador, possuidor de base de dados sobre a história das pessoas homossexuais em Portugal, descreveu a vivência da homossexualidade durante o período do Estado Novo como "clandestina", "culpabilizada", "marginal", uma parte da vida das pessoas que "as sujeitava a grandes perigos".
"Eram vidas secretas, esmagadas pelo peso da culpabilidade, pelo peso da perseguição social, o que significa que o que nós sabemos dessas vivências era sobretudo o que acontecia às pessoas e não a maneira como elas faziam a própria experiência da relação consigo próprias ou com os seus parceiros", explicou Cascais.
Como consequência, o que se sabe sobre esta vivência chega aos dias de hoje através de "notas de rodapé", informação escassa, sobretudo nos arquivos médicos e policiais, da qual se procurou "inferir conclusões mais vastas".
"Se não há tantos registos, mesmo policiais e médicos é porque antes de haver intervenção da polícia ou da medicina, o meio social e as famílias encarregavam-se de fazer isso, o que significa que é uma sociedade particularmente poderosa nesse aspeto", adiantou António Cascais.
No entender do investigador, era a família que cumpria o papel da polícia e da medicina -- já que a homossexualidade era entendida como uma doença psiquiátrica -- antes de recorrer a esses meios extremos.
De acordo com Cascais, esta era uma situação transversal a toda a sociedade, mas ocorria com mais frequência quanto mais alto era o nível socioeconómico das pessoas.
Nos arquivos da polícia, o investigador encontrou registos de detenção de pessoas de nível social inferior, o que o leva a concluir que a polícia intervinha porque "a vidas das pessoas era muito mais pública do que privada".
"O que nós chamamos hoje de engate de rua, era muito mais comum entre pessoas de nível socioeconómico inferior. Eram essas pessoas que eram apanhadas pela polícia", disse o professor.
António Serzedelo, conhecido como o mais antigo militante ativo da causa homossexual em Portugal, lembra-se que a repressão sexual durante o período do Estado Novo vinha não só por parte do regime, como da Igreja, da "burguesia fascizante" e do Partido Comunista.
Em Lisboa apareciam os primeiros bares conhecidos como pontos de encontro 'gay', como o Bar Z ou o Bric A Brac, o primeiro, segundo Serzedelo, restrito à classe média e média alta, o segundo mais democrático, mais ainda muito "burguês".
"As pessoas culpabilizavam-se bastante, tinham um sentido de anonimato e de segredo muitíssimo grande. Mas achavam que ser homossexual era desculpável nas classes altas, sendo que se serviam das classes baixas para ter sexo", contou o ativista.
Segundo António Serzedelo, o engate também acontecia nos urinóis da cidade ou em cafés como o Monumental ou o Montecarlo, no Parque Eduardo VII ou nas praias da Costa da Caparica.
"Na rua, havia duas maneiras de meter conversa: perguntando as horas, porque naquela altura nem toda a gente tinha relógio, e a propósito de tabaco para depois meter uma conversa qualquer", lembrou.
Recordou um bar na Rua das Pretas, onde se comiam "uns bitoques a dois e quinhentos" e havia "um convívio alegre e divertido com os soldados, marinheiros e com os chulos de Lisboa".
A Revolução dos Cravos trouxe-lhe "uma grande liberdade e libertação sexual", mas admitiu que esse seu sentir "não foi o sentir dos outros" e que ainda hoje a autorrepressão permanece, mesmo sem haver leis que criminalizem a homossexualidade.