As queixas sobre tais casos foram recebidas pela hierarquia da Igreja Católica quase sempre com ceticismo e desvalorização dos testemunhos, tendo mesmo, em alguns países, bispos e cardeais a quem foram comunicados casos -- muitos dos quais em contexto escolar - argumentado que, não sendo o abuso sexual de menores um crime público, não eram obrigados a denunciá-los às autoridades civis, pelo que acabavam por ser, em vez disso, ignorados pelas autoridades canónicas.
Números fidedignos não há, apesar dos relatórios ao longo dos anos elaborados sobre o flagelo, que estarão muito longe dos reais, precisamente por causa dessa tendência perpetuada de geração em geração pela Igreja de proteger os seus, apenas quebrada pelo atual líder da instituição religiosa, o Papa Francisco, que já declarou que "um caso de abuso sexual de menores na Igreja Católica já é um caso a mais" e tem prestado atenção às denúncias e afastado os respetivos autores, independentemente de quão alto seja o lugar que ocupam na hierarquia eclesiástica.
Antes do argentino Jorge Bergoglio ocupar a chefia da Igreja Católica, em 2013, houve alguns escândalos com ecos à escala mundial, o primeiro dos quais talvez tenha sido o resultante da investigação, em 2001, do diário Boston Globe, que valeu à equipa "Spotlight", que a realizou, um prémio Pulitzer, pela denúncia de que a hierarquia católica encobrira crimes sexuais cometidos por cerca de 90 padres só naquela cidade norte-americana.
Nessa altura, o antecessor do Papa Francisco, Bento XVI, chegou a ser acusado pelo diário The New York Times de ter diretamente participado no encobrimento de casos de pedofilia ocorridos não só nos Estados Unidos mas também na Alemanha, na década de 1980.
A partir daí, sucederam-se denúncias de proporções gigantescas um pouco por todo o mundo, de França (onde um relatório de 2021 sobre pedofilia responsabiliza diretamente clérigos e religiosos católicos pelo abuso de 216 mil menores entre 1950 e 2020) à Polónia (um dos países mais católicos), passando pelo Canadá (nos 130 internatos para crianças indígenas geridos pela Igreja Católica), Áustria, Bélgica, Irlanda, Países Baixos, México, Chile e Austrália -, que obrigaram a Igreja a reagir.
Logo em 2013, quando Francisco iniciou o seu papado, o Vaticano criou uma comissão especial destinada a proteger menores vítimas de abusos sexuais e combater os casos de pedofilia no clero.
Em fevereiro de 2019, o Papa convocou a Roma os responsáveis pelas conferências episcopais de todo o mundo para um encontro sem precedentes destinado a debater e encontrar soluções para o flagelo do abuso de menores, já designado como "o 11 de Setembro da Igreja Católica".
Em maio desse ano, anunciou legislação mais rigorosa, impondo a obrigatoriedade de os sacerdotes e religiosos denunciarem suspeitas de abusos na Igreja, assim como qualquer encobrimento por parte da hierarquia.
Mais tarde, em dezembro, adotou uma das medidas consideradas mais relevantes nesta matéria: pôs fim ao segredo pontifício para denúncias de abusos sexuais, determinando que os processos canónicos conservados nos arquivos das dioceses e do Vaticano relativos a abusos sexuais cometidos por membros do clero fossem facultados às autoridades civis.
Apesar de tudo isso, em junho de 2021, uma equipa de relatores especiais do Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos criticou o Vaticano por continuarem as acusações de obstrução e não-cooperação da Igreja Católica com processos judiciais internos, para impedir a responsabilização dos abusadores e a indemnização das vítimas.
A nível internacional, prossegue a polémica em torno dos abusos sexuais na Igreja Católica, envolvendo o mais recente escândalo um clérigo distinguido em 1996 com o prémio Nobel da Paz: o bispo timorense Ximenes Belo, ex-administrador apostólico de Díli, capital de Timor-Leste.
A denúncia foi feita pelo jornal holandês De Groene Amsterdammer, que divulgou não só depoimentos de alegadas vítimas de abusos do bispo emérito desde 2002, quando eram menores, como também relatos de cerca de 20 pessoas com conhecimento dos casos, entre as quais "figuras públicas, membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil e elementos da Igreja".
Tais abusos terão ocorrido entre as décadas de 1980 e 1990 em Timor-Leste, e eram, segundo algumas testemunhas, "do conhecimento comum: toda a gente sabia", incluindo, segundo o diário português Observador, "a Igreja portuguesa, pelo menos desde 2010".
O Vaticano anunciou ter imposto nos últimos dois anos sanções disciplinares a Ximenes Belo, entre as quais limitações à sua liberdade de movimentos e ao exercício do seu ministério. Após a publicação da notícia do jornal De Groene Amsterdammer, o bispo timorense, que morava numa residência dos Salesianos em Lisboa, abandonou-a, encontrando-se incontactável e em paradeiro incerto.
Leia Também: Comissão admite aumento do prazo de prescrição dos crimes contra crianças