"Uma habitação existe para cumprir um propósito: ser uma habitação de alguém", destaca a especialista do CITUA (Center for Innovation in Territory, Urbanism, and Architecture), centro do Instituto Superior Técnico, comentando uma das medidas do Programa Mais Habitação que mais críticas tem gerado.
A medida -- que integra o pacote apresentado pelo Governo em 16 de fevereiro e que será aprovado em Conselho de Ministros, por partes, na quinta-feira e no dia 30 -- consiste na possibilidade de o Estado, por motivos de interesse público, arrendar casas devolutas, pagando, para tal, uma renda aos proprietários.
"A propriedade não deixa de ser de quem é, do proprietário. O que o Estado faz é recorrer a esse património que não está a cumprir a sua função e colocá-lo no mercado", explicita Sílvia Jorge, recordando que a medida não é nova.
"Não é nada que já não existisse para áreas específicas, mas os municípios não têm recorrido a esta medida", comenta.
Porém, de todas as medidas que integram o Programa Mais Habitação "é aquela que terá menos impacto", estima a investigadora, que trabalha há anos sobre política de habitação pública e, atualmente, participa num projeto de investigação sobre o programa de apoio ao acesso à habitação 1.º Direito, que tem a maior fatia do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
Sublinhando que "nem todo" o património do Estado são casas, existindo edifícios de toda a natureza, Sílvia Jorge acredita que "parte dele poderia servir para ser adaptado para fins habitacionais".
Para se saber isso e outras coisas, é necessário "um inventário do património do Estado", de que "já há muito se fala", mas que só produziu "informações muito dispersas, pouco sistemáticas" até agora.
"O Estado tem de dar o exemplo, não só em termos de transparência, dizer o património que tem, mas também colocar em uso esse mesmo património", defende.
Algum do património "pode servir para aumentar o parque habitacional público, outra parte não", mas "não servirá, todo ele, para habitação, e será sempre insuficiente", salienta.
Além disso, "o facto de este património do Estado estar disperso em vários ministérios possivelmente pode também não ajudar" ao trabalho de inventariação.
A dispersão ministerial -- que salta à vista quando se consulta a lista atualizada, publicada em março de 2022, de 717 imóveis "em inatividade, devolutos ou abandonados", pertencentes ao Estado, no quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais -- faz desses imóveis "um ativo financeiro", dado que "os ministérios podem alienar esse património para suprir alguma necessidade que tenham", acrescenta a investigadora.
Daí que "alguns ministérios possam ter mais interesse do que outros em abdicar desse património que têm", antecipa.
Porém, salienta, "esse património do Estado também não serviria, por si só, para resolver o problema" da habitação, já que o parque público "é manifestamente insuficiente" (e o mais baixo da Europa).
O parque habitacional público está nas mãos do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e dos municípios, concentrando-se sobretudo em Lisboa e Porto.
"Grande parte deste património não teve qualquer tipo de manutenção ao longo do tempo", assinala Sílvia Jorge.
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