Independentemente da idade a da geração a que se pertença, já todos ouvimos o “Levei muita palmada e não morri”. Mal ou bem, sobrevivemos. Mas com que traumas e a que custo?
A opinião dos especialistas é linear: usar castigos corporais nas crianças compromete o seu desenvolvimento.
Por ocasião do Dia Internacional das Crianças Inocentes Vítimas de Agressão, o Instituto de Apoio à Criança (IAC) lançou nas redes sociais um spot de sensibilização desenvolvido em parceria com o Movimento Cívico “Nem Mais uma Palmada” e realizado pela Produtora Many Takes.
O impacto que teve nas redes sociais e as opiniões que desencadeou - tanto de defensores da palmada como de uma parentalidade mais consciente - mostra que muito há a fazer, mas também que há muita gente disponível a mudar mentalidades.
O IAC lembra que este não é um problema atual, mas que muito se acentuou com a pandemia, que veio tornar visível muitas situações limite camufladas até então.
Fui educado assim e é-me difícil mudar. O que fazer?
Apesar da mudança que se faz sentir nos métodos educativos em Portugal, num estudo nacional recente, três em cada dez participantes consideram aceitável usar castigos corporais em crianças - sobretudo quando desobedecem aos pais, são "malcriadas" ou não cumprem com as regras da família.
Para Nuno Pinto Martins, fundador do Projeto Educar Pela Positiva, estes números espelham a cultura e a forma como a punição é usada “talvez desde sempre”.
“Olhando para trás, muitos dos nossos pais, avós, bisavós e por aí em diante já utilizavam a punição. Assim, o que nós estamos a fazer é repetir o padrão”, afirma.
Para mudar, indica, é preciso que cada um de nós observe os resultados que está a ter com o ‘método tradicional, com a palmada ou com o castigo".
“Se eu disser aos meus filhos para arrumarem o quarto e eles não o fizerem, eu posso ameaçar retirar-lhes algo que gostem e assim arrumam o quarto. Portanto, muitas vezes o castigo dá-nos um resultado imediato, ou a sensação dele”, assevera.
Mas no médio longo prazo, assinala, o normal é a criança continuar a “desafiar” e a relação não melhorar. É até possível que a criança comece a ter medo do adulto. E o medo, recorda, “é diferente do respeito”.
Para o especialista, o primeiro passo para mudar o método educativo deve ser a reflexão e a consciência de que se quer, efetivamente, mudar. Contudo, “por vezes nem temos tempo para fazer esse processo”. O dia a dia leva-nos de afazer em afazer até que, já pais, nos deparamos com a vontade de querer educar de outra forma.
A especialista Mikaela Övén, mãe de três filhos e defensora da parentalidade consciente, assina por baixo e lembra que a primeira coisa a fazer é "refletir sobre a tua própria história e criar uma narrativa coerente".
O adulto deve assim "reconhecer os aspectos negativos e os danos causados, mas também identificar os momentos em que se aprendeu lições valiosas e desenvolveu resiliência".
Ao criar uma narrativa coerente e significativa, está mais preparado para adotar um estilo de parentalidade diferente e mais saudável, assegura.
"Ao entender a própria jornada e encontrar significado nela, podemos transformar as dificuldades em oportunidades de crescimento e desenvolvimento pessoal", revela Mikaela Övén.
A perita em parentalidade consciente aconselha ainda o adulto a cultivar autocompaixão e autoempatia e trabalhar a regulação emocional. Por fim, deve definir intenções bem claras e aprender mais sobre alternativas ao que já conhece sobre parentalidade.
Como quebrar o padrão com exemplos concretos:
Nuno Pinto Martins exemplifica como agir, em situações concretas, frisando que devemos mostrar à criança como ser útil.
- Imagine-se no supermercado e o seu filho faz uma birra pois quer um brinquedo novo. Em vez de aplicar castigo ou ralhar, peça ajuda com as compras. Peça para ajudar com a fruta, com a lista… redirecione a atenção da criança e faça-a sentir-se útil;
- Oriente a criança para comportamentos aceitáveis. Dê-lhe duas opções relativamente a um comportamento. Se ela desviar para um comportamento pouco correto, dê-lhe a escolha: “Não podes fazer isso, mas tens estas duas escolhas”.
- Mostre à criança como compensar o comportamento. Por exemplo, se gritou com o irmão. "Em vez de colocar a criança de castigo, questione e indique o que esta deve fazer para compensar a atitude. Um abraço, um pedido de desculpas… Mas não obrigue. Converse e mostre que o irmão ficou magoado", explica o educador.
- Por último, a consequência. Por último, propositadamente, "porque deve ser o último recurso", diz o especialista. "Embora se possam confundir, castigo e consequência são coisas diferentes", lembra. Imagine uma criança que anda no futebol e que devido ao cansaço ou obsessão, descura as notas. Mostre que sair da atividade será uma consequência se as notas não melhorarem, ao invés de fazer a ameaça de retirar o seu filho da atividade.
É importante frisar que, decidir-se por um tipo de parentalidade que não se revê em castigos ou gritos, não quer dizer, necessariamente, que tal seja fácil de implementar. É nos dias de maior cansaço e em que o dia a dia toma conta de nós que pode sair um grito ou uma palmada. Depois, vem a "culpa e o sentimento de que está a falhar enquanto pai".
Segundo Mikaela, "a primeira coisa a fazer é praticar autocompaixão e autoempatia".
Deve identificar quais as suas necessidades em causa e os gatilhos mais comuns. "Devemos lembrar que existe sempre o momento seguinte e podemos aproveitar esse momento para pedir desculpa, reconectar" e privilegiar aprendizagens.
Que tipo de danos podem perdurar
Aqui a palavra “trauma” é repetida. “Ai, não se pode dizer nem fazer nada às crianças porque ficam logo traumatizadas”, é costume ouvir-se, lembra Nuno. Contudo, o trauma é real.
“Pode haver uma criança que de facto com uma simples palmada fica traumatizada e pode haver outra criança que ao longo do seu crescimento levou algumas e encontrou um mecanismo para superar. Nunca sabemos como é que aquela criança vai integrar essa informação e se no futuro a vai reproduzir ou não", afirma Nuno Pinto Martins.
Castigos corporais e psicológicos causam dor e sofrimento emocional imediato na criança, resultando em medo, ansiedade, tristeza e raiva
Na ótica da educadora parental Mikaela Övén, há que considerar danos a curto e a longo prazo.
Quando há um castigo corporal, há um "sofrimento emocional imediato", afirma. "Castigos corporais e psicológicos causam dor e sofrimento emocional imediato na criança, resultando em medo, ansiedade, tristeza e raiva", segundo Mikaela.
Depois, considerem-se os problemas comportamentais. As crianças podem "desenvolver comportamentos agressivos, rebeldes e desafiadores como resposta aos castigos". Como consequência, podem ainda desenvolver aprendizagens problemáticas sobre relacionamentos. A criança "aprende que bater é aceitável em relações de amor". A curto prazo há ainda a considerar o risco de lesões físicas.
A exposição contínua a castigos físicos e psicológicos está associada a um maior risco de desenvolvimento de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade, transtornos comportamentais e stress pós-traumático
Ainda segundo a especialista, nos danos a longo prazo, no topo da lista estão os problemas de saúde mental. "A exposição contínua a castigos físicos e psicológicos está associada a um maior risco de desenvolvimento de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade, transtornos comportamentais e stress pós-traumático", revela ao Notícias ao Minuto.
Mikaela defende que castigos frequentes podem "afetar negativamente a autoestima e a autoconfiança da criança", levando a uma visão negativa de si mesma e à falta de confiança nas suas habilidades e competências. Podem ainda afetar a qualidade do relacionamento entre adulto e criança, e no futuro "a criança pode ter dificuldade em estabelecer relacionamentos saudáveis e duradouros, e em expressar emoções de forma adequada".
Os castigos físicos e psicológicos, refere a especialista em parentalidade consciente, "interferem no processo de aprendizagem da criança, pois podem causar ansiedade, distração e dificuldades de concentração na escola".
"As crianças que crescem expostas a castigos físicos têm maior probabilidade de reproduzir esse comportamento no futuro, perpetuando um ciclo de violência", assevera ainda.
Quando os familiares normalizam a palmada
Entrar em processo de mudança pode, por vezes, significar que abrimos caminho e fazemos os primeiros quilómetros sozinhos.
Muitas são as famílias onde um pai quer seguir o caminho da parentalidade consciente e o outro ainda normaliza a palmada. Também é comum os pais definirem uma linha de educação e deixarem os filhos ao cuidado dos avós (ou outros familiares) e estes não estarem alinhados.
Ambos os casos, assegura Mikaela Övén, são "muitos comuns".
"Para enfrentar essa situação, é essencial manter uma comunicação aberta e respeitosa com os avós, explicando as preocupações e pedidos que temos", declara.
Estabelecer limites claros sobre os valores e formas de educar desejadas é importante, bem como "liderar pelo exemplo e mostrar aos avós as consequências positivas de uma abordagem não violenta", destacando os benefícios diretos para a criança e, "muito importante, praticar parentalidade consciente com o adulto em questão".
Nuno Pinto Martins afiança que é normal um pai ser mais autoritário do que o outro e que apesar de o caminho não ser fácil, é importante "manter sempre o diálogo". Aconselha, no entanto, a desafiar para a leitura de um livro ou para a inscrição numa formação.
O que diz a lei
O castigo corporal é definido segundo o Comité dos Direitos da Criança, no Comentário Geral n. 8, de 2006, como “qualquer castigo “corporal” ou “físico” em que a força física é usada e com a intenção de causar algum grau de dor ou desconforto, ainda que de forma ligeira.
A maior parte dos castigos corporais envolve bater (“palmadas “, “bofetadas”, “sovas”) numa criança, com a mão ou com um objeto – um chicote ou cinto, por exemplo.
Segundo o IAC, também pode envolver, por exemplo, pontapear, abanar ou projetar uma criança, arranhando, beliscar, morder, puxar cabelos, puxar as orelhas, forçar as crianças a ficar em posições incómodas, queimar, escaldar ou forçar a ingestão (por exemplo, lavar a boca das crianças com sabão ou forçando-os a engolir especiarias picantes).
Desde 1977 que o poder de castigar moderadamente os filhos deixou de fazer parte do que o Código Civil enumera como responsabilidades parentais. Mais ainda, há 16 anos que o Código Penal prevê o crime de maus tratos a menores.
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