Caso Rubiales. "Não há mulher que não tenha vivido algo desta natureza"
A presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos Das Mulheres (PpDM), Ana Sofia Fernandes, é a convidada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.
© Joana César
País Violência de género
Um momento de festa para Espanha tornou-se no pior pesadelo para o presidente da Real Federação Espanhola (RFEF) de Futebol quando, no rescaldo da vitória no Mundial Feminino, beijou Jenni Hermoso.
O comportamento do responsável, que foi suspenso pela FIFA por 90 dias, tem gerado indignação e levou a uma mobilização a nível mundial em defesa dos direitos das mulheres.
A este propósito, o Notícias ao Minuto falou com a presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos Das Mulheres (PpDM), Ana Sofia Fernandes, que defende que esta situação já "ultrapassa a jogadora" e tem que ver com "todas as mulheres".
Não há uma única mulher ou rapariga que não tenha vivenciado algum tipo de violência desta naturezaNo decorrer desta situação, vimos um discurso de Luis Rubiales um pouco inconsistente. Apesar do pedido de desculpa, – mesmo quando o primeiro-ministro de Espanha, jogadores e jogadoras, e mesmo a RFEF já lhe ‘apontaram o dedo’ – mostra resistência em admitir que o que fez está errado. Podemos considerar que Rubiales tentou ‘gerir’ a situação da forma que lhe foi mais conveniente e que ‘agarrar-se ao poder’ é um sinal de que não tem consciência – ou não quer admitir – que fez algo errado?
Sabemos que o poder é masculino em todas as esferas da sociedade. Todos os cargos mais elevados - os mais bem pagos - são masculinos e, portanto, há aqui uma cultura que se perpetua por haver constantemente homens em determinadas posições - e, neste caso, no futebol. O futebol é, por tradição, um desporto que gere multidões e é um desporto que é apreciado pelos homens e que, geralmente, é jogado pelos homens.
O presidente da Federação Espanhola terá uma certa personalidade que já não é muito compatível com os dias de hoje, designadamente, quando estamos a falar de um desporto que cada vez mais é jogado por mulheres e onde os homens costumavam dominar e em que agora elas começam a entrar. Teve uma reação que nós consideramos abusiva. De todo não percebeu que estar numa posição de tomada decisão como é a dele tem impacto em toda a sociedade - não só ao nível do desporto.
Sentia-se à vontade para ter os hábitos que geralmente teria sem ter em consideração que hoje em dia já não são aceites determinados comportamentos e, portanto, terá ficado espantado com isso e reagido, na nossa perspetiva, da pior forma possível. A forma digna de gerir a situação era reconhecer que o ato era incorreto - aliás, vários atos que ele cometeu ao longo do tempo - e, portanto, ter a noção de que na sua posição não os pode ter. Na nossa perspetiva, teria de se demitir.
Podemos falar em falta de consciencialização?
É muita resistência. Ou seja, há cada vez mais consciência social, mas para quem está naquelas posições de poder há muita resistência. Porque sempre foi da mesma maneira, sempre foi normalizado, sempre foi desconsiderado, desculpado e, portanto, acham que vão continuar a poder agir da mesma forma - e isso já não é aceite
E isto acontece tanto em cargos de poder como no dia a dia...
Todas as mulheres, todas as crianças, todas as raparigas têm processos de crescimento em que vivenciam este tipo de violências. Não há uma única mulher ou rapariga que não tenha vivenciado algum tipo de violência desta natureza. Desde os apalpões a toda uma série de violências que acontecem em todos os espaços. E nós sabemos que todas as formas de violência estão ligadas - desde aquelas que são mais subtis àquelas que são mais evidentes - até ao femicídio.
Desde o piropo de rua até ao femicídio, estamos a falar do continuum da violência. Esse contínuo da violência está presente quando ele a agarra, como se ela fosse propriedade. Não é mais do que a manifestação de um ato sexista sem ele ter essa consciência. Agora, neste momento, já terá alguma consciência, mas ainda não foi punido devidamente.
De alguma forma foi também o apagar da visibilidade do ganhar o Mundial. Foi apagar aquelas mulheres da vitória
Acha que se vai fazer justiça neste caso?
Acho que é fundamental que haja justiça. Este caso ultrapassa a jogadora, ultrapassa todas as jogadoras, já tem a ver com todas as mulheres. Não só as espanholas, mas todas as mulheres de todas as sociedades de todos os países. Tem que haver algum tipo de justiça para este tipo de situações. E não podemos esquecer também que o sexismo, enquanto conceito jurídico, é muito recente nas organizações internacionais. Designadamente, o Conselho da Europa, só o definiu em 2019.
Foi a primeira definição internacional jurídica de sexismo. Foi há poucos anos. E, portanto, as pessoas têm de começar a apropriar-se disto e as instituições têm de começar a aplicar internamente um conjunto de regras, de práticas e de procedimentos para prevenir e para punir este tipo de situações quando ocorrem.
As manifestações e mobilização que tem havido com este caso demonstram isso mesmo? Que a situação "ultrapassa a jogadora"?
Sim, e a área do desporto é uma das oito áreas críticas considerada pelo Conselho da Europa para a prevenção e o combate ao sexismo. Não é por acaso que este tipo de situações vai continuar a gerar indignação enquanto o setor do desporto não tiver devidamente esta perspetiva enquadrada.
Dado ser um meio abundantemente dominado por homens, estes casos ainda são mais fáceis de ocultar?
Exatamente. De alguma forma foi também o apagar da visibilidade do ganhar o Mundial. Foi apagar aquelas mulheres da vitória. E esse apagar do espaço público, que se viu agora com este caso em termos do desporto, é um apagar do espaço público que acontece em muitos outros domínios.
Há aqui um apagar sistemático das mulheres no espaço público
Tais como?
As mulheres, por exemplo, no setor da música foram muito apagadas ao longo dos séculos. Ou as mulheres na área das informáticas ou das engenharias, que hoje em dia se diz que cada vez menos as mulheres estão a escolher essas áreas de estudo e de carreira. Houve muitas que foram extremamente importantes nessas áreas e que foram apagadas ao longo do tempo. Há aqui um apagar sistemático das mulheres no espaço público. Estes casos intimidam a participação, inclusive, das mulheres no espaço público. Quando olhamos para os números da participação das mulheres no espaço público e vemos que eles ainda estão muito aquém daquilo que é metade da sociedade, isto está muito relacionado também com este tipo de situações. Por isso, este debate é essencial - no setor do desporto, mas também em todos os domínios da sociedade - porque está tudo ligado.
Em que medida?
A desigualdade entre mulheres e homens é causa e consequência da violência masculina contra as mulheres e raparigas. Os fenómenos estão todos absolutamente ligados e o sexismo é a base desses fenómenos. É fundamental que haja a desconstrução destes fenómenos e que eles sejam abordados com medidas efetivas. A indignação social e a visibilidade das matérias são fundamentais. Quem tem responsabilidades políticas e quem tem responsabilidades organizacionais - locais de trabalho, federações desportivas, clubes - também tem de as implementar. Isto remete para um papel que todas e todos têm de desempenhar nas suas várias funções para podermos chegar a uma situação de igualdade.
Estatisticamente, uma em cada três mulheres é vítima de violência em algum momento da sua vida - em termos mundiais.
Desconsiderar o ato como menor não é aceitável porque está ligado ao contínuo da violência. E o limite da violência é o facto de haver tantas mulheres mortas por homens em Portugal - e nos restantes países
E em Portugal?
Se olharmos para os números da violência em Portugal, por trás dos crimes de femicídio - que são as situações-limite - houve inúmeras violências de outra natureza. Também similares, muitas vezes, certamente, a este tipo de violências. Desconsiderar o ato como menor não é aceitável porque está ligado ao contínuo da violência. E o limite da violência é o facto de haver tantas mulheres mortas por homens em Portugal - e nos restantes países.
Esta semana, o Presidente da República falou sobre o caso. Marcelo Rebelo de Sousa reconhece que "uma questão de investigação de um crime de assédio sexual, é uma questão grave, mas há questões mais graves". Marcelo falava do Caso Rubiales - e a atenção dada ao caso - em comparação com as mortes da guerra na Ucrânia. Poderíamos estar a falar de qualquer outro responsável político, mas este discurso por parte de figuras de poder, neste caso, do Presidente da República, também contribui para menorizar a situação aos olhos da sociedade?
Não é comparável. Não faz sentido comparar a situação da guerra e esta. Até pelo que eu dizia há pouco sobre em muitas das situações que ocorrem como esta elas fazerem parte do contínuo da violência e acabarem na morte das mulheres. Ora, se há morte de pessoas em situações de guerra, mulheres a serem mortas neste país por companheiros e ex-companheiros homens, configura uma situação de guerra contra as mulheres.
Acho que não fez sentido este comentário do Presidente da República. Recordo também o porta-voz do secretário-geral da Organização das Nações Unidas que, há dias, quando foi questionado sobre esta situação, disse: "Quão difícil é não beijar alguém nos lábios"? A questão é essa, não é? É assim tão difícil para os homens não dar um beijo?
[Estes comentários] não me fazem sentido absolutamente nenhum. Não faz sentido comparar o que não é comparável, mas se o Presidente quer comparar, então digamos os números das mulheres mortas em Portugal às mãos dos companheiros. E as formas de violência até ao feminicídio, sendo que muitas delas estão relacionadas com abuso sexual e de outra natureza. É uma forma de guerra também.
Todos viram como é que aconteceu aquele beijo. Foi ele que a agarrou e foi ele que a beijou. Isso entrou pelas televisões de todas as pessoas dentro [...]. Até a tentativa de ele usar o vídeo é sintomática do desconhecimento do que acontece às mulheres e às vítimas em situações de violência
Houve um pedido de desculpa e depois uma declaração de Rubiales bem vincada – e aplaudida – sobre não se demitir. Nessa conferência de imprensa, Rubiales deixou um recado para as filhas, presentes: “Filhas, aprendam, é uma lição de vida. Vocês, sim, são feministas de verdade e não o falso feminismo que há por aí. O falso feminismo não procura a justiça, não procura a verdade, não lhe importam as pessoas”. Neste caso, o Ministério Público espanhol já está envolvido, está a ser pedida a versão de Jenni Hermoso e vários setores da sociedade – e diferentes países – pedem justiça. Tendo em conta que o que está a a acontecer é mesmo a procura da verdade, justiça e há várias pessoas que se têm vindo a mobilizar, isto é uma tentativa de Rubiales jogar ao ataque, na medida em que, de facto, o que temos é o feminismo a atuar?
Para começar, Rubiales não tem legitimidade nenhuma para falar sobre o feminismo porque os seus atos mostram que de feminista não tem absolutamente nada. Aliás, a tentativa de vitimização dele próprio é sintomática de muitas das situações de violência perpetradas por agressores homens em que fazem precisamente isso. As mulheres vítimas de violência reportam muitas vezes isso. Elas são as vítimas, mas são eles que se tentam apresentar como os vitimizados. Portanto, isso é perfeitamente coerente com a atitude abusiva de Rubiales.
Ele não tem a legitimidade absolutamente nenhuma de falar sobre o que é feminismo ou não é feminismo, porque os seus atos mostram que não tem consciência absolutamente nenhuma daquilo que são direitos que estão na Constituição e que estão nos tratados internacionais.
E, por outro lado, ele faz precisamente isso - tenta fazer um ataque. Tenta jogar com as resistências da sociedade ao avanço dos direitos das mulheres [utilização da expressão "falsas feministas"]. À medida que avançamos e que a consciência social aumenta, verificamos que há de facto franjas da sociedade de muita resistência. Utilizam esse tipo de argumentação - que não tem fundo absolutamente nenhum nos dados objetivos da desigualdade entre mulheres e homens. Se olharmos para todos os indicadores de desenvolvimento humano vemos precisamente isso. Penso que esse comentário só lhe ficou ainda pior - assim como essa instrumentalização que ele faz das próprias filhas. Aliás, como com esta situação em torno da sua mãe. Não é mais do que instrumentalização das figuras das mulheres para o seu próprio benefício. Tal como ele fez com a Jenny Hermoso - elas é que ganharam e ele é que quis aparecer como o homem que permitiu, no fundo, que elas ganhassem. É de um abuso e de uma arrogância que não faz sentido absolutamente nenhum e que só contribui para ele ser desacreditado entre todas as pessoas que defendem a dignidade e a autonomia das mulheres e a igualdade.
Tentar usar esse esse vídeo contra ela, após um jogo de futebol, em que elas se tornaram campeãs, penso que só vem reversar o conjunto de atitudes que ele tem tido ao longo do tempo (...) Não é desculpável. Ponto. Não foi ela que o agarrou, foi ele
Quanto a essa questão da vitimização por parte de Rubiales. Foi recentemente divulgado um vídeo de Jenni Hermoso no rescaldo da conquista do Campeonato do Mundo, onde aparece a rir do momento do beijo. Também as colegas se manifestam, e gritam ‘beijo, beijo’. Este momento poderá representar um ‘problema’ de incongruência face às declarações de Hermoso, que negou que o beijo foi consentido, sublinhando que não gostou? Ou pode mesmo ser usado como culpabilização da vítima?
É uma tentativa de o fazer. O que é evidente, porque as câmaras estavam lá, é que todos viram como é que aconteceu aquele beijo. Foi ele que a agarrou e foi ele que a beijou. Isso entrou pelas televisões de todas as pessoas dentro. Somos pessoas de direito. Não estamos à espera de ser agarradas. Esse tipo de gestos, quando ocorrem, são um espanto imenso. E são um espanto em frente às câmaras. Até a tentativa de ele usar isso é sintomática do desconhecimento do que acontece às mulheres e às vítimas em situações de violência. Há todo um processo de socialização que leva muitas vezes as vítimas ou a não falarem ou falarem até muitos anos mais tarde - como é com os casos da violação. E por isso é que uma das nossas batalhas é aumentar os prazos da prescrição do crime. Porque nestes casos o trauma é tão intenso que leva muito tempo até às vítimas poderem falar nele.
Por outro lado, há situações também de algumas mulheres em que, por via de experiências mais negativas na infância, a noção das fronteiras no corpo foi esbatida por situações de violência na infância. E, portanto, não reagem imediatamente. Ou seja, há aqui uma série de questões que quem trabalha na área da violência contra as mulheres consegue identificar claramente. Quase todas nós fomos educadas, pelo menos as da minha geração, a dizer: "Está quietinha, não faças ondas, isso passa e por aí fora. Não ocupes o espaço, não sejas demasiado vocal, não levantes ondas que isso depois passa".
Tentar usar esse esse vídeo contra ela, após um jogo de futebol, em que elas se tornaram campeãs, penso que só vem reversar o conjunto de atitudes que ele tem tido ao longo do tempo de, por um lado, atacar -que também é uma estratégia muito masculina nestes contextos - e, por outro, de reforçar a sua tentativa de vitimização dele próprio. Não é desculpável. Ponto. Não foi ela que o agarrou, foi ele.
Vários estudos mostram que em determinadas situações as mulheres até paralisam. Em situações de violação, por exemplo. É sintomático do sexismo, é sintomático da violência, do meio ambiente onde ele se move, das pessoas com quem ele se dá, certamente, e portanto, não creio que seja de todo uma desculpa. Muito pelo contrário. Só vai reforçar o conjunto de atos desagradáveis e violentos que ele tem tido ao longo do tempo.
Esta questão também poderá estar relacionada com o medo de: "O que virá a seguir"?
Claro. E o medo é aquele mecanismo que depois impede a participação no espaço público. E implicações para o resto da vida. E outra questão também acontece muitas vezes, que é duvidar da palavra das vítimas. Verificamos muitas vezes - desde os tribunais à sociedade em geral - que a primeira tendência é: "De certeza que não foi culpa dela? Como é que ia vestida"? Porque são vítimas mulheres - e aí é que está o detalhe da questão.
Vemos isto agora, por exemplo, com as declarações polémicas do companheiro da primeira-ministra de Itália, que comentou uma situação de violação em grupo de uma jovem em Palermo. "Se vais dançar, tens todo o direito de te embebedar - não deve haver mal-entendidos nem reservas - mas se evitares embebedar-te e desmaiar, provavelmente também evitas certos problemas e o risco, de facto, de te atirares para a cova dos leões", referiu Andrea Giambruno. Neste caso, a vítima descreveu a forma como os seus agressores a obrigaram a beber e imagens de videovigilância mostraram-na a cambalear enquanto sete jovens a levavam.
Esse tipo de frase é sintomático de alguém muito sexista, que vive numa sociedade patriarcal e a reproduz. Ele poderia ter dito outra coisa, por exemplo: "Eduquem os homens e os rapazes para respeitar a autonomia física e psicológica das mulheres". Tão simples quanto isso. Seria um discurso que desmontava o sexismo, que punha o ónus sobre o agressor - porque a maioria dos agressores estatisticamente são homens e rapazes. Agora, a maioria dos homens e dos rapazes de determinada idade ainda foi educada com todos estes parâmetros sexistas e patriarcais - isso é evidente. Mas estes parâmetros têm de ser desconstruídos e não podem ser aceites nem normalizados. Têm de ser chamados à atenção da importância da desconstrução sempre - e figuras públicas, então, ainda têm mais responsabilidades, porque são extremamente mediáticas e influenciam a sociedade como um todo. A desconstrução, a colocação do ónus sobre o agressor e o acreditar nas vítimas, já que estatisticamente a maioria das vítimas são mulheres.
Temos o caso da mãe de Rubiales que se fechou em greve de fome numa igreja esta semana vs. jogadoras que renunciaram à seleção. Podemos olhar para isto como um choque geracional em ternos de feminismo e consciencialização, ou apenas como um familiar próximo preocupado vs. colegas empáticas para com a situação? Ou ambas?
Não conheço a relação dele com a sua mãe, mas o que nós sabemos estatisticamente é que quando há um agressor, esse agressor tem esse tipo de comportamentos com várias pessoas - mulheres. E sabemos também que muitas vezes é difícil para essas mulheres, que fazem parte da família ou do contexto, saírem da influência daquele homem. Não conheço a mãe, mas o que eu conheço é o que eu vi e o que eu li dos comportamentos dele, e portanto, o meu comentário é que esse tipo de comportamento certamente foi apanhado nas câmaras agora, mas é sintomático de uma forma de ser e de estar - também com outras mulheres da sua família, dos seus contextos, etc. E não nos podemos esquecer que as mulheres são socializadas no mesmo ambiente patriarcal que os homens, muitas vezes. Não podemos culpar, de todo, as mulheres por determinados comportamentos que ocorrem. A senhora está a tentar proteger o seu filho - agora, eu não sei até que ponto o seu filho também não é bem influenciado pela sua mãe.
A única coisa que eu posso dizer, efetivamente, é que um agressor geralmente tem outros tipos de comportamento violentos com outras mulheres dos seus contextos e das suas vidas.
De facto, vemos que é um caso que tem puxado muita mobilização. Podemos ver aqui esta mudança geracional?
Essa mudança tem muito a ver com o Movimento Me Too, que pouco chegou a Portugal, embora a indignação que este caso está a suscitar nos faça pensar que há aqui uma consciência já mais significativa. Vejo muitas pessoas indignadas sobre estas situações.
Agora, o sexismo e patriarcado não dependem das idades também. Há muitos fatores que influenciam. Há contextos de pertença também que influenciam. E este senhor terá talvez metade da idade de um outro senhor que em Portugal também foi acusado de assédio, num contexto académico, e na altura também houve uma tentativa de desculpabilização pela idade. Portanto, a idade aqui não é o único fator. O sexismo e patriarcado são transversais. São já pessoas mais expostas a outras influências de igualdade, mas não significa que tenham ultrapassado o machismo e o sexismo de todo.
No único comunicado que Jenni Hermoso publicou, onde reitera que o beijo não foi consentido, refere que lhe foi pedido “para emitir um comunicado conjunto por forma a aliviar a pressão sobre o presidente”. Pode significar que, apesar da projeção imediata que o beijo teve, ainda houve tempo para tentar ‘camuflar’ a situação? Que esta pressão, em situações destas – no desporto ou noutras áreas – é recorrente?
Quanto mais masculinizado numa cultura de poder está um determinado grupo, mais perpetua as práticas dentro desse grupo. Por isso é que nós defendemos a paridade sempre em termos de representação de mulheres e de homens em todas as esferas e em todas as organizações. Porque introduz disrupção nas práticas usuais. Aqui, estamos a falar do futebol e estamos a falar de um ambiente extremamente masculinizado onde táticas desse género para camuflar situações certamente têm vindo a ocorrer.
Isto não é mais do que a ponta do iceberg de uma cultura muito masculinizada e discriminatória das mulheres
Há outros casos de que há memória, no desporto ou noutras áreas que se possam assemelhar a este e tenham tido tanta projeção? Em Portugal, ou lá fora?
Mais recentemente também houve vários casos de outros países também, dos Estados Unidos, no Haiti, na Nigéria.
Começam agora a vir a público - e isso é bom. Mas com isso também têm de vir alterações de práticas internas, ou seja, práticas organizacionais internas, tais como paridade na tomada de decisão, existência de mecanismos de queixa seguros - que permitam um acompanhamento - e eu diria até formação e igualdade entre mulheres e homens para dirigentes. Aliás, há muitos anos a Suécia foi pioneira a esse nível com ministros e ministras. Tomaram posse e foram logo todos receber formação sobre em igualdade entre mulheres e homens. Para saberem o que fazer depois - se estivessem a trabalhar economia, desporto, ou fosse o que fosse, poderem ter esta perspetiva. Isso é fundamental - essas formações, as campanhas, a tolerância zero a estas matérias, ter vozes vocais ao nível da tomada de decisão política e pessoas públicas e ligadas ao desporto a serem vocais contra estas situações é fundamental para a disrupção das práticas que estejam instaladas. Caso contrário, elas perpetuam-se.
E, de facto, há táticas que levam à tentativa de abafar as situações, a intimidação, e com essa intimidação vem aquilo de que falávamos - o medo e o "é melhor não levantar ondas porque senão ainda tem consequências". Isto que vimos remete também para outras questões ao nível do desporto.
Tais como?
Sabemos em termos de desigualdade entre mulheres e homens no desporto que o desporto feito por homens geralmente é mais bem pago, os desportos mais masculinizados são mais bem pagos, a desigualdade nos prémios muitas vezes em termos das corridas, no atletismo. Os prémios associados a atletas mulheres ou atletas homens. Isto não é mais do que a ponta do iceberg de uma cultura muito masculinizada e discriminatória das mulheres.
Mas é a ponta do iceberg, é com as questões simbólicas - e isto teve muito de simbolismo - que depois se consegue chegar a todos os outros atos e tentar alterá-los. Todos têm aqui um papel - as federações desportivas, os clubes desportivos, a escola ou a educação física nas escolas.
Lembro-me, por exemplo, da questão do futebol nas escolas. Muitas vezes nos recreios, via-se os rapazes a jogar à bola e as raparigas, por exemplo, a saltar à corda. Isso já está a ensinar uma divisão na ocupação do espaço público. Um jogo de bola ocupa um espaço imenso. Um jogo de elástico ou da corda é ali naquele sítio - "quietinha".
Isto da interação e da ocupação do espaço público vem das práticas mais precoces em termos de educação. Há muito trabalho a fazer na área do desporto. Diria que é daquelas áreas que, efetivamente, ainda pouco foi desbravada.
Está a haver resistência de vários países da União Europeia em relação ao artigo do consentimento
Como conselheira no Conselho Económico e Social, este é um caso que terá impacto em temas a abordar no futuro?
O Conselho Económico e Social emitiu há relativamente pouco tempo um parecer sobre violência contra as mulheres e violência doméstica. Obviamente, este tipo de violência nós enquadramos no contínuo da violência contra as mulheres.
Por outro lado, também, em termos de agenda nesta área, está em negociação uma diretiva europeia - sobre violência contra as mulheres e violência doméstica.
Enquanto Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, estamos em vários espaços. No CES - e contribuímos para esse parecer , mas também em organizações europeias e a trabalhar no sentido de influenciar a diretiva. E, portanto, diria que sim. Mas esta componente da prevenção associada à desconstrução do sexismo é que me parece que é fundamental que fique agora muito mais clara em termos do contexto até para estas negociações. A própria presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, foi alvo de sexismo. O facto de ter acontecido com ela também é muito sintomático e teve muita visibilidade.
Ou seja, as câmaras estavam lá e filmaram. As pessoas indignaram-se. Neste caso, a mesma situação - as pessoas indignaram-se. Mas isto é aquilo que nós vemos quando entra na televisão, porque os outros casos todos a maioria das pessoas não vê. As mulheres é que os sentem e muitas delas sentem-se muito isoladas. Estou a falar disto porque remete para a questão dos serviços de apoio às vítimas também, que devem ter uma postura feminista, de empoderamento das vítimas e, infelizmente, por vezes, esta abordagem feminista não está presente em todos os serviços que existem.
Estamos a falar, por exemplo, das autoridades num momento de denúncia?
Estamos a falar de como as vítimas são atendidas, como as suas queixas são percecionadas e conduzidas em termos de processo, mas também nos serviços de apoio mais direto a vítimas, por exemplo, casas de abrigo. No cômputo geral da rede nacional de apoio a vítimas são poucas as que são organizações de mulheres. Na nossa perspetiva, uma organização de mulheres lida sempre com estas situações de uma forma que traz à colação a desigualdade de poder entre mulheres e homens. E isto é muito importante para as vítimas terem consciência e se tornarem sobreviventes também. Portanto, as dinâmicas dos serviços especializados de apoio, que é outra questão que está na diretiva em negociação, é fundamental também. E na diretiva há, infelizmente, um artigo que está a ser muito polémico junto de alguns Estados-membros, que nós, o movimento feminista, achamos fundamental estar lá.
De que artigo se trata?
É o artigo do consentimento. Está a haver resistência de vários países da União Europeia em relação a esse artigo. Alguns países posicionaram-se, inclusive com declarações públicas, outros ficaram calados e outros colocaram-se contra liminarmente. Isto mostra como a violência contra as mulheres causa tanta resistência na sociedade. Quando abordamos isto, abordamos a desigualdade entre mulheres e homens. E, portanto, acabamos por abordar todas as áreas e todos os domínios da vida social para a qual os governos têm de trabalhar. E isso gera resistências. As tais resistências que nós vimos em Rubiales e em muitos outros, infelizmente, que existem, por esta Europa toda.
Quais os Estados-membros que apresentam esta resistência?
Países como a Polónia, a Roménia ou a Hungria. Pois. Mas outros países também, mais do centro da Europa, mas que estão com regimes políticos de extrema-direita ou raiar o fascismo. E nós sabemos que este tipo de regimes é fundado no patriarcado e numa ideia de nostalgia. E tudo isso é negativo para as mulheres. Sim. Temos uma situação na Europa que neste momento não é muito fácil para continuarmos a evoluir. É uma resistência e um backlash.
A diretiva vem reforçar a componente da Convenção de Istambul e vem trazer novas áreas que não estavam previstas, designadamente, tudo o que tem a ver com a violência online, o que é fundamental, e tudo o que tem a ver com comercialização do corpo das mulheres em sistema de prostituição. Esperemos que esta diretiva evolua no bom sentido, embora os sinais sejam difíceis nalguns casos.
É preciso uma maior penalização por parte das autoridades?
Sim, a penalização é fundamental. Agora, é fundamental depois que seja efetiva na existência de serviços especializados para apoiar as vítimas, que muitas vezes isso falha. E é importante também que venha acompanhado de campanhas de informação, de sensibilização, de desconstrução e de desnormalização destas situações. Designadamente dirigidas aos homens. A toda a sociedade, mas dirigem aos homens porque é algo que, geralmente, não se faz. Nas campanhas contra a violência aparecem as imagens das mulheres que foram violentadas.
E não o agressor...
E é isso que tem de se alterar. Porque só assim é que se vai à raiz do problema.
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