"Atira a faca para dentro, antes que te dê um tiro na cabeça" é a ordem que relata ter recebido de um dos agentes que se deslocou ao bairro hoje de manhã, visitado pela Lusa após denúncias de associações pela habitação, dando conta de demolições em curso.
A Lusa percorreu o bairro -- onde a autarquia já demoliu "mais de uma dezena de construções" nas últimas semanas -- e os relatos foram-se repetindo, entre os quais o de Júlia, que conta que a polícia lhe amolgou a porta, apesar de a ter fechado quando lhe deram ordem para ir para dentro.
Na semana passada, durante uma operação semelhante, Felizarda diz ter sido arrastada pelo braço por um polícia e Stela, cuja casa foi demolida há dias, conta ter levado com um cassetete por, devido ao barulho do buldózer, não ter ouvido a instrução de um agente, que a mandava para casa.
A entrada na Rua Particular, no bairro de Montemor, faz-se por um caminho irregular e esburacado, casas térreas de um lado e do outro, números de porta escritos à mão, a tinta preta. Estendais de roupa improvisados pintam a paisagem até onde os olhos conseguem ver: o bairro termina num morro verde, lá em cima uma escola.
Quando a Lusa chegou ao local, um grupo de vizinhas tentava confortar Rosa, antecipando que lhes possa vir a acontecer o mesmo.
Do carreiro principal, umas escadas dão acesso a um terreno mais elevado: era ali a casa demolida hoje. A porta branca do número 82 está agora no chão e são ainda frescos os vestígios de demolição, num amontoado de telhas, vidros, roupas e os equipamentos domésticos que teve de retirar rapidamente, "sem ajuda de ninguém": fogão, frigorífico, esquentador, botija de gás.
Rosa diz ter construído a casa, onde vivia com o companheiro e três filhos, um dos quais doente crónico e outra ainda estudante, em 2014. "Partiram a casa toda. Somos cinco pessoas sem ter onde dormir", descreve.
Questionada posteriormente pela Lusa, a vice-presidente da Câmara de Loures, Sónia Paixão, disse que os moradores da casa demolida hoje foram atendidos pelos serviços sociais da autarquia no início do mês, que lhes comunicou que "a construção era ilegal" e explicou que "teriam de procurar alternativa habitacional".
A autarquia assume "uma ação de fiscalização bastante assertiva em bairros que estão identificados", mas a autarca garante que o que foi demolido hoje é "uma construção nova" e "um alargar de outra construção", datados do final de 2023.
A vice-presidente escusou-se a comentar a abordagem da polícia e explicou que "é prática" solicitar acompanhamento policial para este tipo de operações, acompanhadas no terreno por equipas camarárias da habitação e da polícia municipal.
Segundo Sónia Paixão, foi dado um prazo de duas semanas ao agregado de Rosa, que confirma que assim foi, mas não encontra motivo para o que se passou hoje.
"Chegaram, partiram tudo, disseram 'a casa vem abaixo'. A justificação foi essa", relata.
Pelas contas dos moradores, as demolições de cinco casas levadas a cabo desde a semana passada deixaram nove famílias sem teto.
"As demolições passam-se sem aviso, sem qualquer acompanhamento dos serviços sociais da Câmara", critica Catarina Morais, do movimento Vida Justa, realçando que as famílias afetadas pelas demolições dos últimos dias não têm "qualquer alternativa habitacional".
No bairro autoconstruído, instalado no local de um antigo estaleiro da Ropisa, vivem, segundo contas dos moradores, cerca de 500 pessoas, muitas das quais oriundas de São Tomé e Príncipe, algumas ali residentes desde 2010.
"São trabalhadores que saem todos os dias de manhã das suas casas para servir as cidades (...) e depois chegam a casa e veem a casa demolida", denuncia Catarina Morais.
Chamada pelos moradores, a ativista chegou ao local a tempo de ver "um senhor a conduzir o bulldozer, acompanhado por um forte dispositivo policial".
Vários moradores reportaram a presença de duas dezenas de agentes policiais, em parte armados, durante a demolição realizada hoje.
Uma advogada que se deslocou ao bairro, chamada por uma moradora, mostrou à Lusa as fotografias que conseguiu fazer, apesar de lhe ter sido barrada a entrada, "em violação flagrante da lei".
Nas fotos, veem-se oito agentes da equipa de intervenção rápida da Polícia de Segurança Pública, alguns dos quais armados com metralhadoras, e outros tantos da Polícia Municipal.
Ao ser barrada, em "clima de intimidação", a advogada, que pediu anonimato, procurou identificar os agentes, com passa-montanhas e capacetes e sem nome visível: foi-lhe comunicado que a identificação estava por baixo do colete, "em violação flagrante da lei".
Rute, outra moradora, concorda que o bairro precisa de "uma solução de habitação", mas critica a abordagem da autarquia e da polícia, o que transmitirá momentos depois a um grupo do Ação Democrática Independente, partido no governo em São Tomé e Príncipe.
Os habitantes falam em "tratamento desumano" e todos receiam ser os próximos a estar na situação de Rosa.
"É um bairro sossegado, não tem droga nem violência, nós somos a nossa polícia", garante Júlia, 60 anos e a viver ali desde 2010.
Uns metros abaixo, um homem varre os destroços da via pública, que "nunca são limpos" pelas equipas de demolição.
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