Presos políticos de volta ao Tarrafal. Campo despertou consciências

Dois presos políticos regressaram ao Tarrafal com a Lusa, 50 anos depois da libertação, para mostrar como fintaram o isolamento e alimentaram o ideal de independência que até dois guardas converteu.

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Lusa
28/04/2024 06:28 ‧ 28/04/2024 por Lusa

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Tarrafal

Na calada da noite, um dos vigilantes passava-lhes a pistola - sem munições - "para ensinar quem não sabia" pegar na arma, recorda António Pedro da Rosa, um dos presos cabo-verdianos, entre 1971 e 1974.

Outro guarda ajudou a levar comida para quem estava na solitária - receando que saísse de lá mais composto do que quando entrou - e também colaboraram para introduzir um pequeno rádio e até publicações proibidas na cela comum por onde passaram os 20 presos políticos cabo-verdianos.

Eram guardas locais, cabo-verdianos, discriminados nas condições de trabalho em relação aos outros que patrulhavam o campo, oriundos da metrópole.

"Esse fenómeno de fazer de um agente de repressão um nosso aliado dava-nos a certeza de estarmos do lado correto da historia e também mostrou que podíamos convencer as pessoas de que o caminho certo era o da independência", refere Luís Fonseca, antigo embaixador, encarcerado no Tarrafal entre 1970 e 1973, escolhido como porta-voz dos presos políticos cabo-verdianos pela organização da cerimónia evocativa dos 50 anos, na próxima quarta-feira.

Com a ajuda dos guardas, conseguiu receber a versão francesa de "O Estado e a Revolução", de Lenine, que traduziu para português, durante a prisão.

"Depois devolvi", conta, com um título inócuo, 'As Relações Económicas' de modo a "não haver problemas se houvesse uma inspeção na cela". "Aprendemos a fintar muita coisa", diz o diplomata, que viria a ser secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) entre 2004 e 2008.

Outras vezes, diz que era a falta de conhecimentos do diretor que permitia furar a censura.

"Os livros eram rigorosamente censurados. Eu pedia sempre livros à minha mulher. Uma vez, estavam lá os estudos sobre teatro, de Brecht" e ao diretor agradou a ideia de os prisioneiros se dedicarem à representação -- ignorando o papel da arte como consciencialização política pelo dramaturgo alemão.

Mais tarde, Luís Fonseca conseguiu introduzir na cela um pequeno rádio a pilhas, que passou a ser uma ansiada ligação ao mundo, usada com cautela.

"Ele entrava [para o fundo da cela] e ouvia. Depois contava-nos" o que se passava, recorda Gil Varela, preso político durante 1970, que se juntava a outros presos, à porta da cela, como quem vigia e desvia atenções do rádio ligado em surdina.

As 'fintas' com apoio dos guardas só aconteceram depois de o primeiro grupo de presos cabo-verdianos ter sido separado dos presos angolanos, que eram vigiados por agentes da metrópole.

Ficou célebre, no registo de memórias do Tarrafal, a troca de mensagens com o poeta angolano António Cardoso, escritas em papel higiénico, através de um cordel balançado por entre as grades que davam para a rua, até bater no lápis, esticado para fora da outra cela, e vice-versa, na calada da noite.

Antes disso, a troca pelo cordel tinha sido combinada com "batidas" na parede, em que uma batida correspondia à letra A, duas à letra B e por aí fora, demonstrativo da resiliência e paciência que o Tarrafal exigia a quem encarcerava.

"Um dia, um guarda viu que um dos presos enviou qualquer coisa para a nossa cela. Não encontraram nada, mas consideraram que tinha havido uma quebra de disciplina", separando angolanos e cabo-verdianos, cada grupo no seu pavilhão, recorda Luís Fonseca.

António da Rosa lembra a influência do grupo inicial de presos políticos: "procurámos livros, lemos, eles ensinaram-nos" o currículo escolar, apoiando os estudos, mas também a ação política.

"Nunca pensei abandonar a luta pela libertação", refere Gil - secundado por António, que recorda dois "sermões" de "reeducação" do diretor, Eduardo Fontes, que ficaram longe de o demover.

"Depois da morte de Amílcar Cabral, em janeiro de 1973, veio dizer que o partido [PAIGC] ia desmoronar-se e que tínhamos de mudar de ideias. A última vez foi no 25 de Abril, a tentar dar-nos a volta à cabeça, mas já sabíamos o que se tinha passado, através do rádio. Saiu e nunca mais o vimos", diz.

Passados 50 anos, espera que as comemorações sirvam para "a juventude ouvir algumas coisas". "Fez-se muito, mas ainda há muito para fazer, para que mais ninguém passe por aquilo que passámos".

"Saímos de lá, todos, do mais velho ao mais jovem, muito mais conscientes e muito mais seguros das nossas convicções e com mais fundamentos" para lutar pela independência, diz Luís Fonseca.

"Os jovens de outrora lutaram, conseguiram, mas agora é preciso continuar. Os velhos descansam, mas os jovens devem continuar a luta pelo desenvolvimento", conclui Gil Varela.

Os presidentes de Cabo Verde, José Maria Neves, Angola, João Lourenço, Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, e Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, os quatro países de origem dos presos, celebram na quarta-feira, 01 de maio, os 50 anos da libertação do Tarrafal -- uma placa memorial assinala os nomes dos 36 mortos no campo pela ditadura colonial portuguesa.

A maioria, 32 mortos, eram portugueses que contestavam o regime fascista, presos na primeira fase do campo, entre 1936 e 1956.

Reabriu em 1962 com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom, destinado a encarcerar anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde -- morreram dois angolanos e dois guineenses.

Ao todo, mais de 500 pessoas estiveram presas no "campo da morte lenta".

Leia Também: Solidariedade entre presos políticos permitiu-lhes aguentar o Tarrafal

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