A Procuradora-Geral da República (PGR) quebrou o silêncio esta segunda-feira em entrevista à RTP. Pela primeira vez (e no fim do seu mandato), Lucília Gago afirmou que não se sente "responsável pela demissão do primeiro-ministro" António Costa e que "há uma campanha orquestrada" contra o Ministério Público (MP).
Começando pelo dia 7 de novembro de 2023 e à menção de António Costa num parágrafo no âmbito da Operação Influencer, Lucília Gago referiu que não o fez por "popularidade nem estrelato" e que prefere "a descrição" ao "espalhafato". Nesse sentido, enfatizou que "tudo o que procurou fazer foi na lógica da isenção e [de] dar um contributo útil para o Ministério Público (MP)".
Nesta sequência, deu conta que a inclusão "do parágrafo é da minha inteira responsabilidade". "O que considerei é que não era compreensível a omissão a essa referência porque, numa operação que envolveu buscas, detenções, nomeadamente na residência oficial do primeiro-ministro, não se dizer, naquele comunicado, que, para além daquelas pessoas que estavam referenciadas era também existente um processo que surgiu na sequência de referências feitas por suspeitos à pessoa do primeiro-ministro", "ninguém ia perceber e ter-se-ia dito que tinha havido uma tentativa de branquear, de esconder, de proteger..."É evidente que não me sinto responsável pela demissão do primeiro-ministro
Contudo, no que diz respeito à demissão de António Costa, a procuradora-geral referiu que "a avaliação do primeiro-ministro é uma avaliação pessoal e política que não cabe ao MP fazer" e que o ex-chefe de Governo "poderia continuar a exercer as suas funções". Ainda assim, ressalvou que "ninguém disse" que Costa "estava indiciado pela prática de um crime".
"Não se pode ter dois pesos e duas medidas. Não se pode dizer que todos os cidadãos são iguais perante a lei e, depois, querer dispensar um tratamento especial e diferenciado a uma figura de um primeiro-ministro. É evidente que não me sinto responsável pela demissão do primeiro-ministro", salientou a PGR na mesma entrevista à estação pública.
Marcelo? "Não teve qualquer influência, nem uma vírgula"
Lucília Gago falou ainda do encontro com o Presidente da República, afirmando que o chefe de Estado não teve qualquer envolvimento na redação do comunicado, nem da inclusão do polémico parágrafo que levou à demissão de Costa. "Não teve qualquer influência, nem uma vírgula", observou.
"Quando fui à Presidência da República, o comunicado já estava preparado com aquele parágrafo. O que acontece é que o comunicado não pôde ser difundido antes do início dessa audiência pela simples razão de que havia, nesse momento, uma detenção por consumar", explicou.
Quatro anos de escutas a Galamba? "Era muito relevante continuar a escutá-lo"
Já sobre as escutas que envolveram o ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, Gago argumentou que "a circunstância de enveredar por um caminho de continuar a submeter aquele cidadão a escutas, apenas significa que, no seu decurso, sobre o que foi dito com outros elementos disponíveis no processo, se entendeu que era muito relevante continuar a escutá-lo".
Influencer? "Não há vontade de perseguir políticos no MP, isso é um absurdo"
O ex-ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, falou em 'golpe de estado' devido à queda do Governo e Lucília Gago comentou estas palavras considerando que esta é uma afirmação "absolutamente descontextualizada".
No entanto, neste momento, a PGR esclareceu que o estatuto de António Costa é de "testemunha". "Não foi constituído arguido naquele momento em que foi ouvido. Se o inquérito não foi agora encerrado é porque algo a tal obstará. Haverá diligências no processo que estão a impedir que o despacho final neste inquérito, qualquer que ele seja, tenha sido proferido", acrescentou ainda, excluindo um pedido de desculpas por parte do MP a António Costa.
"O Ministério Público não deve um pedido desculpas a qualquer outro cidadão. Não há ninguém acima da lei. Não há vontade de perseguir políticos no MP, isso é um absurdo", sustentou.
No que diz respeito ao caso das gémeas luso-brasileiras, e confrontada com as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa - que definiu a atuação do MP como "maquiavélica" -, a PGR salientou que se tratou de uma "coincidência temporal" e que as suas alusões "causaram naturalmente algum desconforto a um conjunto de pessoas".
"Fazem criar na opinião pública uma procura, um propósito de concertação destas datas e esse propósito não existiu, rigorosamente não existiu de todo. Não acredito que, no terreno, os colegas do MP escolham datas. O MP não se pauta por esse tipo de critério", ressalvou Lucília Gago.
Detenções na Madeira? "Lamento que isso tenha acontecido"
Sobre o caso da Madeira, que culminou na queda do Governo Regional, Lucília Gago foi questionada sobre a detenção dos suspeitos por 22 dias e considerou "que não é verdadeiramente normal que isso tenha acontecido". "Lamento que isso tenha acontecido. O que aconteceu neste caso foi algo de absolutamente excecional, mas o MP fez o que lhe competia fazer", certificou.
Recorde-se que a Polícia Judiciária (PJ) realizou, em 24 de janeiro, cerca de 130 buscas domiciliárias e não domiciliárias sobretudo na Madeira, mas também nos Açores e em várias zonas do continente, no âmbito de um processo que investiga suspeitas de corrupção ativa e passiva, participação económica em negócio, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, abuso de poderes e tráfico de influência.
Na sequência das buscas, o ex-presidente da Câmara do Funchal, Pedro Calado, e os empresários Avelino Farinha e Custódio Correia foram detidos e libertados 22 dias depois. Depois de tudo o que aconteceu, o autarca do Funchal decidiu afastar da vida política.Estou perfeitamente consciente de que há, de facto, uma campanha orquestrada contra o MP
Ministra da Justiça quer 'casa em ordem'? "Essas declarações são graves"
Depois de a ministra da Justiça, Rita Júdice, ter dito que era necessário "pôr a casa em ordem", a Procuradora-Geral da República disse que as suas declarações foram "uma mola impulsionadora de um conjunto de coisas" e confessou que ouviu as suas palavras "uma vez e outra vez" e ficou "algo incrédula e até perplexa".
"Essas declarações são, na verdade, indecifráveis num certo sentido e são graves. Indecifráveis, porque a senhora ministra disse que o diagnóstico está feito, não revelou qual é. E também não me disse numa audiência que lhe pedi e que me concedeu e durou três horas. Portanto, se havia qualquer elemento relevante, seria uma ocasião ótima para o fazer. E são graves, porque estar a dizer que o MP tem uma situação de falta de liderança, de falta de capacidade de comunicação e que tem de arrumar a casa, querendo dizer que, nos últimos tempos, houve uma perda de confiança imputável ao MP e à atual liderança do MP... Estas declarações juntam-se a outras que imputam ao MP responsabilidades pelas coisas más que acontecem no território da Justiça", notou.
"Há, de facto, uma campanha orquestrada" contra o MP
Já sobre uma possibilidade de demissão, Lucília Gago foi perentória ao afastar por completo essa hipótese. "Não coloquei nunca essa questão, porque eu encaro o meu mandato como sendo um mandato que leva um cunho de rigor, de objetividade e de isenção. Portanto, rejeito em absoluto essas críticas", observou.
Lucília Gago disse também estar "perfeitamente consciente" de que "há, de facto, uma campanha orquestrada" contra o MP por parte de "um conjunto alargado de pessoas que têm ou tiveram responsabilidades de relevo na vida da nação".
Além disso, assumiu que há "uma pressão" ao Ministério Público que "ocorre efetivamente como os factos recentes bem ilustram".
Por fim, num esclarecimento, a PGR concluiu a conversa, dizendo que é "absolutamente falso" que não estivesse disponível para ser ouvida pelos deputados na data proposta pelo Parlamento.
"Tem sido muito repetido, enfatizado, que não vou de bom grado à Assembleia da República e que pedi o adiamento da audição. Não é verdade, é absolutamente falso", disse Lucília Gago, após ter lido a resposta enviada ao Parlamento, na qual sugere o adiamento para quando o relatório estiver concluído, uma vez que o escrutínio ao seu conteúdo consta dos requerimentos aprovados para que fosse ouvida. Não obstante, admite disponibilidade para "comparecer na data proposta", isto é, antes da conclusão do documento.
[Notícia atualizada às 23h58]
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