"Aprovou uma portaria que é uma portaria inaceitável, ilegal e autoritária. É um retrocesso em matéria de direitos, liberdades e garantia e estamos agora a festejar 50 anos do 25 de Abril. (...) Esta portaria, que quer resolver um problema, introduz arbitrariedade onde havia transparência e onde havia escrutínio e viola a lei de acesso ao direito", acusou hoje a deputada socialista Isabel Moreira na audição regimental da ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, no parlamento.
A alteração à portaria da nomeação de defensores oficiosos, que prevê que os tribunais, o Ministério Público (MP) e os órgãos de polícia criminal (OPC) possam nomear em caso de falhas nas escalas da Ordem dos Advogados (OA), foi publicada na quinta-feira em Diário da República e entra hoje em vigor.
O diploma foi anunciado na terça-feira pelo Ministério da Justiça, ainda antes da sua efetiva publicação, e surge numa altura em que decorre um protesto da OA às defesas oficiosas desde o início de setembro, introduzindo uma alteração que segundo a tutela visa "suprir uma falha na regulamentação" da portaria que existia desde 2008.
Isabel Moreira considerou que a portaria está "em linha" com o pensamento do autarca de Lisboa, Carlos Moedas, que recentemente defendeu poderes de detenção para a polícia municipal.
Para a deputada disse ver "um padrão", depois de o primeiro-ministro, Luís Montenegro ter pedido "mão pesada" para os "criminosos dos incêndios", o que Isabel Moreira considerou "muito grave, porque é populismo indiferente à separação de poderes", sublinhando que é aos tribunais que compete aplicar penas.
"Com esta portaria está-nos a dizer que acha normal, por exemplo, que o defensor oficioso dos arguidos seja nomeado pelo Ministério Público que os acusou, ou pelos órgãos de polícia criminal que os detiveram. Essa portaria torna isso possível e isso é gravíssimo", acusou a deputada socialista, que considerou estar em causa a transparência de um processo, as garantias de defesa e a separação de poderes.
Isabel Moreira acusou ainda a ministra de publicar uma portaria para resolver a não atualização da tabela de honorários dos advogados oficiosos, o que a ministra, na resposta, negou, referindo negociações em curso com a OA.
"O que aqui estamos a fazer é: se existir um advogado disponível para apoiar alguém que precisa e o sistema falhar, esse advogado vai poder acompanhar a pessoa. Até quando há direito à greve ninguém deve ser impedido de trabalhar e temos muitos advogados que querem fazê-lo", disse Rita Alarcão Júdice, passando depois a defesa da portaria à secretária de Estado Adjunta e da Justiça, Maria Clara Figueiredo, algo que se repetiu ao longo da audição.
Clara Figueiredo disse que a prevalência da nomeação de advogado oficioso se mantém na OA, que nada "de material" foi alterado com a nova portaria em relação à anterior e que a nomeação pelos tribunais, pelo MP ou OPC já existia antes.
A governante disse que o mecanismo introduzido na lei pretende ser "um desbloqueio" e "consagrar um princípio absolutamente excecional" para garantir que os arguidos não ficam sem defensor, caracterizando-o como um recurso a ser usado apenas quando não for possível aceder ao sistema da OA, acrescentando ainda que os advogados são livres de recusar a nomeação.
"Não consigo perceber como é que se entende este regime, que tem como único propósito garantir a assistência judiciária a quem dela precisa, como uma intervenção com tiques de autoritarismo", disse, em resposta a Isabel Moreira.
Vários partidos insistiram nas críticas e nas dúvidas sobre a legitimidade da portaria, tendo Cristina Rodrigues, do Chega, questionado se o Governo considera adequado que o MP possa nomear os defensores dos arguidos que acusa ou os tribunais fazerem essa escolha, tendo a ministra rejeitado.
Já Fabian Figueiredo, do Bloco de Esquerda, questionou a ministra sobre o impacto do protesto dos advogados nos tribunais, associado a portaria a uma resposta a essa mesmo impacto, o que a ministra negou, afirmando que os tribunais têm funcionado normalmente.
O deputado questionou ainda a ministra se via um "obstáculo ético, legal ou constitucional" no MP a nomear advogados "contra os quais vai litigar", tendo sido Clara Figueiredo a responder, rejeitando qualquer obstáculo.
A ministra criticou ainda a bastonária dos advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, pelas declarações em reação à portaria, acusando-a de "lançar uma mancha" de corrupção sobre todos os que podem nomear um advogado.
O deputado do PCP António Filipe considerou ainda a portaria "um atropelo à OA" e "um retrocesso enorme no acesso à justiça".
Clara Figueiredo rejeitou atropelos e disse que o Governo, entre adiar uma diligência ou nomear um defensor, preferiu nomear.
Paulo Muacho, do Livre, apontou que a audição começou com o Governo a afirmar que nada tinha mudado com a portaria para evoluir para uma resposta a uma situação excecional, questionando a ministra se houve contactos com a OA sobre a portaria.
"Não há um conflito com a OA, eu sei que a senhora bastonária se calhar queria, mas é difícil, (...) prezo muito as relações institucionais", respondeu Rita Alarcão Júdice, afirmando que conversou com a bastonária sempre que foi necessário e que esta "também não deu nota" de que iria haver protestos.
"Houve algumas ameaças, mas também não me ligou, não comunicou que iria prever no site da OA: 'Tem a certeza que quer inscrever-se? Veja lá, não quer voltar atrás?' Listas negras, também não me disse que tinha intenção de perseguir alguns magistrados. Há várias coisas que foram passando, mas sou uma pessoa bastante paciente", disse.
Ainda sobre advogados, a ministra referiu ao longo da audição disponibilidade para rever na lei direitos e matérias de segurança social e referiu que está em estudo o modelo de previdência dos advogados, estando a ser avaliado se continua, se é integrado no sistema geral de segurança social ou se será dada a escolha entre o regime atual ou o da segurança social, sendo necessários estudos financeiros ainda em curso.
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