"A depressão é uma doença. Os homens não querem aceitar que têm uma depressão porque aceitar parece que nos torna fracos. Pelo contrário. Se temos uma depressão temos de ser super fortes para conseguirmos sair do buraco negro", refere Tiago Valente.
À conversa com a Lusa, nas vésperas de uma expedição à quarta maior montanha do mundo, o Kilimanjaro, no norte da Tanzânia, junto à fronteira com o Quénia, o gestor de produto digital de 39 anos, pai de um menino de 7, conta como aceitar a depressão, lutando contra os próprios medos, os tabus e os "paninhos quentes" da sociedade, o tornaram "mais forte".
"A minha dificuldade em aceitar não foi tanto por preconceito, mas porque tinha presente a experiência da minha mãe que também teve depressão. Deixei de ser só o familiar de alguém com este quadro, mas era também paciente. Quanto ao estigma, só percebi que existia quando falei com o meu chefe, que era impecável. Ele disse-me para tirar os dias que precisasse, mas que não me preocupasse que não contaria nada a ninguém", relata.
"Os recursos humanos vão perguntar", disse-lhe o chefe de uma empresa do Dubai, onde Tiago trabalhava e vivia em 2018. "Mas direi que estás doente ou foste de férias", prometeu.
Tiago achou o gesto "fantástico", mas demonstrativo de que a sociedade está cheia de preconceitos. No regresso ao trabalho, percebeu, também, que lidavam com ele "como se estivesse numa redoma de vidro" e notou impacto na avaliação dos recursos humanos.
Superada a depressão com um tratamento combinado (terapia, psiquiatria e medicação), Tiago acredita que além da intervenção médica foi fundamental a decisão de regressar ao desporto através do triatlo. Fez já mais de uma dezena de provas no Dubai, em Portugal, na Finlândia, no Bahrain e em Abu Dhabi.
E fundou o NOSHAME Movement (em português livre "Movimento Zero Vergonha"), uma iniciativa que visa combater o estigma da depressão masculina através do desporto.
"A missão é combater o estigma. Muitos homens isolam-se e têm medo de julgamentos. A depressão não escolhe géneros. As mulheres têm mais propensão para a depressão, mas há mais suicídios nos homens por depressão. Os homens isolam-se e fecham-se e não procuram ajuda", alerta.
Este alerta é corroborado pelo psiquiatra e investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) Ricardo Gusmão.
À Lusa, descreve que os homens, muitas vezes, antes de procurarem ajuda matam-se e, antes de perceberem que precisam de ajuda, agridem ou têm comportamentos inadequados do ponto de vista social.
"Grande parte dos homens que vai a consultas está ali porque as mulheres, as mães ou as irmãs os obrigaram. A maioria não chorará e muitos -- mais os mais velhos do que os mais novos -- não identificará as emoções que sente. Têm-nas, mas do ponto de vista cultural e do ponto de vista biológico não estão habituados a falar da sua intimidade e têm muito pudor", descreve.
Sendo certo que há mais mulheres com depressão do que homens, até porque, explica Ricardo Gusmão, "o ambiente hormonal das mulheres é muito diferente do dos homens que têm mudanças hormonais durante a puberdade e mais tarde, mais ou menos depois dos 60 anos, enquanto as mulheres têm alterações hormonais todos os meses, bem como na gravidez, no parto, etc., o cérebro das mulheres e dos homens também são diferentes na expressão do sofrimento".
"O facto de as mulheres terem mais duas ou duas vezes e meia depressão não obsta o facto de os homens se matarem entre três a cinco vezes mais do que as mulheres (...). Não é só os homens poderem chorar e não o fazer... A maioria dos homens chega à ajuda e já está para além das lágrimas. A maioria dos homens quando aparece na psiquiatria já tem depressões mais graves do que a maioria das mulheres que procuram mais facilmente ajuda", acrescenta.
Ricardo Gusmão, que também faz parte da Eutimia, uma organização não-governamental que promove iniciativas para apoiar pessoas com depressão, doença bipolar e em risco de suicídio e respetivos amigos e família, junta ao tema outra expressão, a "alexitimia" que se traduz na dificuldade em reconhecer as suas próprias emoções, em descrever sentimentos e sensações.
"As mulheres externalizam mais e os homens internalizam, o que de alguma forma atrasa o tratamento da patologia que é a depressão", aponta.
Alicerçado na sua experiência no Dubai e, entretanto já em Portugal onde regressou definitivamente no ano passado, Tiago Valente acrescenta outro dado a esta reflexão sobre géneros: "os homens são vistos como os provedores, a cabeça da família. Enfrentam a visão da sociedade, mas também os seus próprios medos".
Podem ser considerados sinais de depressão masculina comportamentos como um homem que comece a estar menos disponível para a família ou que fique mais irritável no ambiente familiar, um homem que se retire ou comece a beber ou a consumir mais substâncias, as alterações do sono, sexuais e/ou de apetite.
"É verdade que são sinais relativamente inespecíficos porque podem indicar muita coisa, mas são sinais de alarme. O ar rezingão, como nunca estar contente com nada, por exemplo com os políticos ou com os emigrantes, e o abraçar causas mais ou menos tontas, a revolta e a raiva, são outros sinais a ter em conta", acrescenta o investigador.
Atualmente, Tiago Valente faz medicação de desmame, considera que está já em fase de cura e quer ajudar outros homens a encarar esta doença.
O NOSHAME Movement, que tem como 'slogan' "Tornando batalhas silenciosas em vitórias audíveis", traduz-se já em palestras e ações de sensibilização sobre este tema e, no futuro, Tiago Valente quer criar uma dinâmica de grupo, focada em zonas do país com mais densidade de depressão, nomeadamente o interior "onde existe mais preconceito".
"Queremos criar uma comunidade e usar o desporto para que os homens se sintam mais fortes, partilhando num espaço seguro. Percebi que se sentem mais à vontade para partilhar num circulo só de homens e com pessoas que não conhecem do que, muitas vezes, com um amigo próximo", relata, esperançoso de que em 2025 o movimento se torne nacional.
O NOSHAME conta já com colaborações da Fundação do Desporto, da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental e do ISPUP, lançou um 'eBook' gratuito sobre literacia em saúde mental e participou num congresso sobre o tema em Frankfurt, na Alemanha.
A experiência de superação de Tiago Valente através do desporto não surpreende Ricardo Gusmão: "O Tiago fez uma coisa espantosa que foi pensar 'eu, além de ser um recetor de tratamento, também quero ter uma palavra a dizer'. E foi fazer exercício físico. O exercício físico não é tratamento, mas é uma intervenção complementar e que os homens gostam e ajuda muito por estar, também associado à masculinidade".
Para "superar a sua própria montanha", Tiago Valente vai iniciar a subida ao Kilimanjaro a 01 de fevereiro. Conta chegar ao pico dos quase 6.000 metros no dia 05.
Além do público masculino e do contacto com adultos em empresas, planeia começar a contar a sua história em escolas junto de jovens e adolescentes.
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