Uma odisseia de portugueses no "mar de gente" no Ano Lunar da China

João Simões está preocupado, nas vésperas de viajar de comboio para a terra natal da mulher, em Chenzhou, porque ainda não comprou os bilhetes, e o trânsito de centenas de milhões de chineses no novo ano lunar não espera.

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© Syaiful Redzuan/Anadolu via Getty Images

Lusa
27/01/2025 08:14 ‧ ontem por Lusa

País

China

"Este ano ainda não consegui comprar bilhetes. Todos os anos é difícil. Mas, normalmente, uma semana antes já tenho bilhetes. Talvez haja mais pessoas a viajar", arriscou o português radicado em Macau.

 

A partir de terça-feira e durante uma 'semana dourada', centenas de milhões de pessoas vão viajar no interior da China, na maior migração anual do mundo, para receber junto dos familiares o Ano Lunar da Serpente, que este ano calha entre 28 de janeiro e 04 de fevereiro.

Nesta odisseia embarcam, mais uma vez, três portugueses, que descreveram à Lusa como é viajar nesta altura do ano.

Desde 14 de janeiro, quando começou o 'chunyun', um período de 40 dias antes e depois do início do Ano Lunar da Serpente, e até sexta-feira, a empresa ferroviária estatal chinesa China State Railway Group já tinha vendido online mais de 297 milhões de bilhetes.

"Para mim, Ano Novo Chinês sempre foi sinónimo de muita gente e começa logo ao passar a fronteira" para a China continental, diz João Simões, professor no Instituto para a Investigação sobre os Países de Língua Portuguesa da Universidade Cidade de Macau.

Na região semiautónoma, a polícia decidiu destacar mais pessoal para os postos fronteiriços, perante a previsão de entradas e saídas de quase 5,4 milhões de pessoas durante a 'semana dourada', mais 3% do que no mesmo período de 2024.

"Um mar de gente. Aquela chegada à estação de comboios de Cantão Sul. Essa é a primeira ideia que tenho do Ano Novo Chinês, desde os primeiros anos em que comecei a passá-los na China continental", diz Simões.

De acordo com a imprensa estatal, quase 20,2 milhões de passageiros devem passar por Cantão Sul, uma das mais movimentadas estações ferroviárias da China, na capital da província de Guangdong, que faz fronteira com Macau.

A estação recrutou 1.575 voluntários para ajudar os viajantes durante este período, incluindo alguns que falam inglês e cantonês, a língua oficial das duas regiões semiautónomas, Macau e Hong Kong.

João Coimbra Sampayo, um português casado há seis anos com uma chinesa, diz também que "viajar na China, por si só, não é fácil", mas no Ano Novo Chinês, "é muito mais chato por causa das filas".

João Simões descreve-as: "Há as filinhas todas para [o controlo de] a segurança. Há a fila para ir comprar não sei o quê, uns biscoitos, por exemplo. Há a fila para entrar no comboio...".

Apesar da escala do movimento humano, "não se vê confusão. As coisas parecem que funcionam, são ordeiras. Isso é curioso. Como é que num país com tanta gente as coisas funcionam tão bem", sublinha o académico.

O Conselho de Estado, o executivo chinês, disse esperar este ano nove mil milhões de deslocações internas durante o 'chunyun', o que será um recorde para um país com uma população de 1,4 mil milhões.

"Acho que a China tem essa magia", diz com um sorriso Charlotte Yuan Tian, casada há 11 anos com um português. "Parece caótico, mas depois as coisas funcionam. Mesmo nas ruas, parece tudo muito confuso, mas depois as coisas vão andando".

Charlotte vai de avião para a terra natal, Chengdu, a capital da província de Sichuan, no sudoeste da China, mas ainda tem memórias de viajar de comboio durante o Ano Novo Lunar, durante a noite, para visitar os avós numa zona rural.

"A carruagem ia cheia, cheia, cheia, nem podíamos pôr os pés, não tínhamos sítio para nos sentarmos, mas, já não sei como, a minha mãe arranjou um lugar e tive de ir ao colo dela, já grande, com nove anos", recorda a professora, hoje radicada em Macau.

Mais de 30 anos depois, a China tem os comboios mais rápidos do mundo, mas certas coisas não mudaram.

"Os comboios apinhados de gente, em pé, malas e crianças por todo lado. Aqueles banquinhos desdobráveis. Crianças a comer massas instantâneas. Esta é uma das imagens que eu tenho do Ano Novo Chinês", diz João Simões.

Ainda assim, desde que se casou, em 2014, o professor vai praticamente todos os anos passar este período à terra natal da mulher. "Nem se pondera outra coisa, é como ir no Natal a Viseu", explica.

O Ano Novo Lunar é normalmente comparado com o Natal nos países ocidentais, mas João Coimbra Sampayo diz que a importância da principal festa das famílias chinesas "é amplificada ao máximo".

"Em Portugal é muito fácil uma pessoa voltar a casa em qualquer altura do ano. Em muitos casos, na China isso é impossível. É impossível a família reunir-se, o homem com a mulher, os filhos e os pais, sem ser no Ano Novo chinês", aponta Sampayo.

"Por isso, são sentimentos fortíssimos. Bebe-se muita aguardente de arroz, fala-se muito", até porque muitos dos que viajam "foram das suas terras trabalhar para as cidades e não têm o 'hukou' dessas cidades. Portanto, não podem levar a família", acrescenta.

O 'hukou' é o sistema chinês de residência que, na prática, impede os trabalhadores migrantes vindos das áreas rurais de terem acesso à saúde e os seus filhos de frequentarem escolas nas grandes cidades.

O regresso à terra natal é também aproveitado para oferecer os chamados 'hong bao' ('lai si' em cantonês, usado em Macau e Hong Kong), envelopes vermelhos com dinheiro, que normalmente são dados pelos mais velhos aos mais novos.

Mas nas zonas rurais, por vezes, são os filhos que trabalham nas cidades que dão 'hong bao' aos pais, diz Charlotte Yuan.

O rápido envelhecimento da população da China tem colocado maior pressão no já frágil sistema de segurança social, com um número crescente de chineses a recusarem-se a pagar para o sistema de pensões, que está há muito subfinanciado.

"Se os pais não têm uma reforma grande, dependem um pouco desse dinheiro que os filhos vão mandar", explica Charlotte.

É o caso dos sogros de João Simões: "Eles estão na casa dos 70 anos, não têm reforma, não têm nada".

"Na altura do Ano Novo Chinês, os filhos aproveitam para entregar uma quantidade maior de dinheiro, que é para dar-lhes para viver durante algum tempo", acrescenta o professor.

Leia Também: Longe dos casinos de Macau, à procura da prosperidade no Ano Novo Lunar

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