Caso Joana: "Algo aconteceu, mas aquela miúda não foi morta em casa"

Treze anos depois, o mistério em torno do desaparecimento da pequena Joana, na aldeia da Figueira, mantém-se. O Notícias ao Minuto falou com duas vizinhas da família Cipriano e com o padrasto da criança, testemunhos que ajudam a reconstruir um caso que deixou marcas profundas naqueles que o viveram de perto.

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Pedro Bastos Reis
12/09/2017 09:00 ‧ 12/09/2017 por Pedro Bastos Reis

País

Figueira

O dia de 12 de setembro de 2004 dificilmente será apagado da memória nacional, particularmente dos habitantes da aldeia da Figueira, no concelho de Portimão.

Hoje, assinalam-se 13 anos desde esse fatídico domingo, dia em que desapareceu Joana Cipriano, na altura com oito anos de idade, por volta das 21h00, depois de ter ido fazer umas compras a um café próximo da sua casa.

Passados estes 13 anos, muita tinta correu sobre o que realmente terá acontecido naquela noite, na Justiça, nas conversas de café, na comunicação social. Chegou a assumir-se que Joana pudesse ter sido vendida, ou que, pelo menos, terá sido essa a intenção inicial. Pressupôs-se, ainda, que pudesse ter sido raptada.

A verdade é que o corpo nunca chegou a aparecer. 

Entretanto, a mãe, Leonor Cipriano, e o tio, João Cipriano, viriam a admitir ter matado Joana. Existe a tese de que o corpo foi cortado e dado como alimento aos porcos. Há a suspeita de que Joana tenha apanhado a mãe e o tio a terem relações sexuais e que terá sido morta por causa disso. 

Leonor e João Cipriano foram condenados a 16 anos e oito meses de prisão por homicídio e ocultação, em 2006. Em novembro do ano anterior, tinham sido condenados a 20 anos e quatro meses e 19 anos e dois meses de prisão, respetivamente, mas a pena acabou por ser reduzida.

Hoje, na aldeia da Figueira, apesar de o caso estar encerrado por parte da Justiça, as dúvidas e contradições sobre o que terá realmente acontecido naquela noite persistem.

Ofélia Zeverino, que na altura trabalhava num café próximo da casa de Joana, foi a última pessoa a ver a criança antes do seu desaparecimento. Ao Notícias ao Minuto, conta que, na noite de 12 de setembro de 2004, a pequena Joana dirigiu-se ao seu estabelecimento para comprar “um pacote de leite e duas latas de conserva”.

A única coisa que estranhou, então, foi a menina não ter perguntado pela sua filha, algo que fazia sempre – além de frequentarem a mesma escola, na mesma turma, eram amigas e brincavam juntas regularmente. Mais tarde, apareceu no café o padrasto de Joana, Leandro Silva, acompanhado de outro amigo.

Leandro, na altura companheiro de Leonor Cipriano, conta que, na noite do desaparecimento, não estava em casa, mas em Portimão. Saiu de casa ao meio-dia e só regressou pouco depois das 21h00, já depois de Joana ter desaparecido. Soube do caso através de João Cipriano, uma presença que, afirma, não era habitual lá em casa.

A enigmática presença de João Cipriano

Segundo Leandro Silva, o tio de Joana nunca tinha ido à Figueira visitar a família. Aliás, o próprio afirma mesmo que não sabe “sequer como é que ele descobriu a porta”. “Foi a primeira vez que ele [João Cipriano] apareceu lá em casa. Nem sei como. De repente apareceu-me, no sábado, por volta das 05h00 da manhã. Nessa noite até dormi no sofá”. Da parte de Leonor Cipriano, diz, nunca obteve qualquer justificação relativamente ao aparecimento repentino do irmão.

Júlia, nome fictício, vizinha de Leonor Cipriano, reitera que, antes do caso, nunca tinha visto o tio de Joana. “Só me lembro de o ter visto no jornal. Nunca o tinha visto por aqui, nunca tinha ouvido falar dele. Só o reconheci depois de começar a vê-lo nos jornais e nas revistas”, afirma.

Versão diferente tem Ofélia Zeverino, também ela a morar na mesma rua, que conta ter visto João Cipriano “cinco ou seis vezes” no café, inclusive a “beber uma cerveja” com Leandro. “[João Cipriano] vinha cá muitas vezes, à hora de almoço, beber café com a irmã. Uma coisa que estranhei nas declarações em tribunal foi o Leandro declarar que o cunhado nunca vinha aqui. Mais de cinco ou seis vezes vi o João com a irmã. Cheguei a vê-los [Leandro e João] juntos, a beber uma cerveja”.

No julgamento, João Cipriano confessou o crime. Na altura, admitiu ter espancado e assassinado a criança. Depois, segundo a sua versão, esquartejou-a e, com a cumplicidade de Leonor Cipriano, escondeu o corpo, que mais tarde foi dado de comer aos porcos.

Seguindo esta versão, o motivo que terá levado o tio e a mãe a matarem Joana mantém-se bastante confuso. Leonor Cipriano chegou a admitir que na origem do crime esteve uma tentativa falhada de vender a filha a um casal sem filhos, que a levaria para o estrangeiro. A proposta, como a própria chegou a afirmar, terá partido do irmão. Contudo, o plano terá corrido mal e Joana terá descoberto, pelo que os dois irmãos acabaram por matá-la, de forma a que ela não contasse o sucedido. Outra versão veiculada foi a de que a criança terá apanhado mãe e tio a terem relações sexuais.

"A Joana nunca se queixava de rigorosamente nada"

Na Figueira, Joana Cipriano é lembrada como uma criança “super meiga e calma”, “uma miúda muito orientada, calminha, super educada”. Dizem que “tinha conversas que pareciam de uma adulta”.

Júlia conta que, certo dia, a pedido de Leonor Cipriano, que não tinha, naquele dia, como se deslocar até Portimão, levou a pequena Joana ao dentista. Depois, passaram num hipermercado, em período de regresso às aulas, e Joana referiu que ainda não tinha mochila. Júlia decidiu oferecer-lhe, de imediato, a mochila, apesar da recusa da criança, que acabou por ceder e aceitá-la. “Depois de lhe dar a mochila, ela agarrou-se a mim e deu-me dois beijos e agradeceu”, conta.

À semelhança do que acontecia com o filho de Júlia, Joana tinha o hábito de brincar regularmente com a filha de Ofélia Zeverino, que chegou, várias vezes, a ir buscá-la à escola. Os três amigos lanchavam juntos, e nenhuma destas mães alguma vez suspeitou que Joana passasse por dificuldades ou que corresse qualquer perigo.

Mas, passado todo este tempo, a forma como Ofélia olha para trás ganha uma outra dimensão. “Agora, depois do que aconteceu, começo a perceber que ela transmitia qualquer tristeza. Se calhar, uma miúda com receio de alguma coisa”, confidencia. No entanto, mantém a ideia de que a família Cipriano não tinha problemas financeiros, uma vez que até costumava gastar algum dinheiro no seu café. “Dificuldades económicas? Acho que não. A Joana nunca se queixava de rigorosamente nada”.

A mesma tese é defendida por Leandro Silva, que garante que “nunca faltou nada lá em casa”. Quando começou a tomar conta de Joana, a menina tinha apenas três anos. A relação com Leonor Cipriano, natural do Alentejo, começou em 1999. Conheceram-se em Silves, viveram em Porches, freguesia do concelho de Lagoa, e acabaram por chegar à Figueira, uma vez que a mãe de Leandro tinha uma sucata na zona, na aldeia de Senhora do Verde, onde ficou, então, a trabalhar.

Quando fala de Joana, Leandro recorda-a como a “sua filhota”. “Ela dormia sempre ao pé de mim. Muitas vezes, quando eu dormia no sofá, acordava, de manhã, tapado. Era ela que me tapava. Era ela que tratava dos irmãos. Era a minha filhota”, recorda, a sorrir. 

Hoje, Leandro deixou o trabalho na sucata e trabalha como pedreiro e canalizador, com contrato de trabalho, numa firma. Vive na Mexilhoeira Grande, a cerca de dois quilómetros da Figueira.

Conseguiu reconstruir a sua vida, apesar de ter sido difícil, como o próprio admite, uma vez que, depois de Joana ter desaparecido, recaíram sobre si muitas suspeitas. No entanto, garante, ninguém na vila “o olha de lado”. “Pelo contrário, os que me olhavam de lado, hoje em dia, são os que me dão mais força. Na Mexilhoeira, todos me apoiam e já não sofro tanto”.

"Alguma coisa aconteceu ali, mas aquela miúda não foi morta em casa"

Júlia diz que, na noite do desaparecimento de Joana, estava em casa quando ouviu Leonor Cipriano a chamar pela filha, já depois de esta ter desaparecido. Só na noite do dia seguinte é que ficou a saber que a criança ainda não tinha regressado a casa.

Já Ofélia Zeverino que, recorde-se, terá sido a última pessoa a ver Joana, assim que saiu do café, por volta da meia-noite, foi de imediato ao encontro da família Cipriano para saber se já havia novidades, uma vez que Leonor, João e Leandro foram, por volta das 22h00, ao café perguntar sobre o paradeiro da criança.

O que despertou particular apreensão em Ofélia foi a “calma” da mãe de Joana, situação também confirmada por Júlia: “Achei que ela estava um bocado calma demais. Como mãe, se a minha filha desaparecesse, eu não estaria tão calma como ela estava. Mas cada um reage à sua maneira”, desabafa.

Naqueles momentos, como a família ainda não tinha alertado as autoridades, Ofélia ofereceu-se para contactar a GNR, o que fez de imediato, com o aval da família, que reitera apenas não o ter feito por não ter saldo no telemóvel. Apesar disso, não esconde a sua estranheza relativamente à frieza da família Cipriano.

O que aconteceu depois é conhecido. Mãe e tio admitiram o crime, com versões que foram mudando ao longo dos anos, apesar de nunca terem negado o assassínio da criança. No entanto, esta é uma tese que não convence muitos dos moradores da Figueira, até porque, reconhecem, Leonor Cipriano tinha uma relação muito próxima com a filha e tratava-a carinhosamente. “À nossa vista, ela [Leonor Ciprinano] era bastante carinhosa com os filhos”, relata Ofélia, visão partilhada por Leandro Silva. “Sei que a Leonor gostava muito da menina”.

Não desculpabilizando Leonor Cipriano nem colocando de lado o seu envolvimento no desaparecimento da criança, a tese de rapto ou de venda é vista, por Ofélia e Leandro, como mais provável. “Morta? Não. Agora, que ela tenha feito um negócio com o irmão e tenha vendido a menina… isso ainda acredito”, afirma Leandro. “Quanto a mim, a menina foi levada naquela noite. Alguma coisa aconteceu ali, mas aquela miúda não foi morta em casa”, reitera Ofélia.

A vizinha, que então trabalhava no café, vai mais longe e aponta mesmo o dedo à Polícia Judiciária, sobretudo à de Lisboa. “Para mim, o trabalho da [Polícia] Judiciária foi um fracasso total. Estas duas pessoas foram presas baseado em quê? Em nada. Onde estão os vestígios? Onde está a menina? Não existe nada. Sabe porque foram presos? Porque não tinham dinheiro”, desabafa. Para Ofélia, Joana nunca chegou, sequer, a casa. Prova disso? A embalagem de leite e as conservas que vendeu à menina nunca foram encontradas.

Treze anos depois daquela trágica noite, que ninguém na aldeia conseguirá esquecer, são mais as perguntas e contradições do que as respostas. A verdade é que a vida na Figueira, apesar do regresso à normalidade, nunca mais foi a mesma e os residentes, quando recordam os dias que se seguiram ao desaparecimento de Joana, não escondem o desconforto. Como Ofélia Zeverino, que passou noites sem dormir. “Durante muitas noites, parecia que ouvia a Joana chamar pela minha filha. Estive muitas noites sem dormir por causa disso. Como é que foi possível alguém desaparecer nesta rua?”.

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