Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa estiveram, este sábado, frente a frente no último debate desta ronda rumo às Eleições Presidenciais do próximo dia 24 de janeiro. O candidato que todas as sondagens dão como vencedor esgrimiu argumentos com a ex-eurodeputada apontada ao segundo lugar.
No caminho para Belém, ambos encontraram-se na RTP e a pandemia da Covid-19, o Caso SEF, a solução governativa encontrada nos Açores e a forma de 'lidar' com o partido Chega! foram temas que estiveram 'em cima da mesa'. A relação de amizade entre o atual Presidente da República e Ricardo Salgado foi também trazido para a conversa por Ana Gomes, com Marcelo Rebelo de Sousa a responder, mais exaltado: "Não tenho interesses especiais. Escusa de tentar atingir a minha honorabilidade e a minha integridade. Nunca diria de si aquilo que disse de mim. Não vale tudo em política".
No debate, o presidente que se recandidata a Belém afirmou também que considera não haver alternativa a um confinamento geral a partir da próxima semana, face ao constante aumento do número de casos de infeção com o novo coronavírus em Portugal: "Na altura [Natal], falei num pacto de confiança com os portugueses, o pacto de confiança não funcionou. Assumo essa responsabilidade por mim, pelo Governo, por todos os que intervieram. Agora temos de olhar para o futuro e, em relação ao futuro, penso que não há alternativa ao confinamento geral".
A diplomata criticou o seu adversário, sugerindo que não teve "uma relação leal e franca com o Governo" do PS chefiado por António Costa e que atuou a "oscilar entre às vezes parecer que quer ser o pai do primeiro-ministro, outras vezes a tirar o tapete ou até a assumir os louros da ação governativa", prometendo atuar de forma diferente. Marcelo retorquiu: "A senhora embaixadora tem de estabilizar a sua opinião sobre o Presidente da República".
Lembrando a intenção de Ana Gomes de "pedir ao Ministério Público que levante a questão da ilegalização do partido" Chega! junto do Tribunal Constitucional, acrescentou: "Eu sou contra, eu acho que ganha-se no debate das ideias, não se ganha proibindo, não se ganha calando, isso é dar razão, isso é vitimizá-los".
Fique com o principal do que foi dito no debate:
Pandemia. Não se está a demorar demasiado a confinar?
Ana Gomes: "Não tenho suficientes elementos para me pronunciar sobre isso. Penso que foi um erro as eleições terem sido marcadas tão tarde e, dessa maneira, ter impedido que se previssem as medidas para garantir que houvesse oportunidade para todas as pessoas virem a votar, para que não houvessse uma elevada abstenção.
Não sei se, de facto, vai ser necessário esse confinamento geral, [e] como é que isso vai permitir às pessoas votar, mesmo que seja interrompido o confinamento para o dia da votação, porque isso pode causar problemas em particular às pessoas com mais de 80 anos.
Não me parece que a questão seja a demora da tomada de decisão, aliás já foi convocada a reunião no Infarmed e eu também já fui convocada e tudo farei, o que estiver ao meu alcance, para que a solução seja a melhor possível. O que lamento é que com a falta de tempo que houve para preparar medidas alternativas, que isto vá poder contribuir para uma abstenção muito elevada, o que não dignifica nem a República nem o cargo de Presidente".
Marcelo Rebelo de Sousa: "Se não houvesse pandemia não havia tudo o resto que estamos a falar. Quando se tomou a decisão de uma renovação intercalar com período de oito dias foi por isto, porque os números que chegavam eram baixos, mas havia a sensação de que vinham números muito mais elevados. E os epidemiologistas disseram que não tinham dados suficientes. Vamos [esperar por quarta-feira] por uma razão muito simples: porque os dados de fim de semana são números sempre mais baixos. Terça-feira foi escolhida pelos epidemiologistas por já dar um retrato. Saúdo a presença [no Infarmed], qualquer um dos candidatos pode ser eleito Presidente da República e não faria sentido que não estivesse nesta reunião e nas próximas até dia 24.
Não tem nada a ver a data da marcação das eleições. Sabia-se, por causa da Constituição, que só havia duas datas possíveis: 17 ou 24. Porque esperei até ao dia 24 de novembro? Primeiro, porque estava à espera de uma lei que chegou em novembro que era muito importante, sobre o voto antecipado e o voto do isolamento profilático. Segundo, porque era preciso garantir, com números os mais aproximados possíveis, qual era a posição dos partidos e dos candidatos quanto a um eventual adiamento. Eu coloquei a questão aos partidos e eles todos disseram: 'Não queremos revisão Constitucional, queremos a permanência da data sem adiamento das eleições".
Ana Gomes: "Há cinco anos que se sabe que a data das eleições seria por agora e há muito se sabia que haveria uma segunda vaga. Eram medidas que implicariam a AR, mas também a própria CNE nos preparativos. E, esses preparativos... desde termos um boletim de voto encimado por um 'não-candidato' até os nossos emigrantes hoje não poderem votar".
Há nesta altura a questão dos idosos. É possível ir a secção de voto ir ao encontro deles?
Marcelo Rebelo de Sousa: "Claro. E é possível por um de três métodos: ou por uma interpretação feita pelas autoridades sanitárias incluindo a situação dos lares no isolamento profilático; através de um decreto-lei que é publicado e promulgado instantaneamente ou no decreto que eu vou assinar na próxima quarta-feira incluir expressamente a possibilidade de se equiparar a isolamento profilático a situação dos utentes dos lares".
E os emigrantes?
Marcelo Rebelo de Sousa: "Eu sou vencido nessa matéria. Sou defensor do voto por correspondência, simplesmente os parlamentares entenderam que deve haver o voto presencial. E, assim, há critérios diferentes de eleição para eleição. Aí votei vencido porque a minha posição era diferente".
Ana Gomes: "Teria sido uma matéria onde o Presidente poderia ter dirigido uma mensagem à AR. Acho que a prioridade agora tem de ser proteger os grupos de risco. Permitir-lhes votar e, infelizmente, temos os autarcas a dizerem que é impraticável o esquema de voto domiciliário. Constatámos que, no passado, por deficiente articulação entre o ministério da Saúde e da Segurança Social, tínhamos aquela situação indigna de ter cerca de 3 mil lares ilegais e de 11 mil pessoas em camas de hospitais por não terem unidades de cuidados integrados e continuados. Esta será uma das matérias em que eu, enquanto Presidente da República, farei uma grande diferença".
Responsabilidades na Pandemia. Casos no Natal e Ano Novo
Ana Gomes: "Tenho a certeza que quer o PR quer o Presidente da República e os ministros têm feito tudo o que está ao seu alcance para acertar as medidas. Mas é difícil. A experiência que já temos recomendaria, em vez de um confinamento geral, proteção e apoio específico aos principais grupos de risco."
Marcelo Rebelo de Sousa: "Já disse que assumo a máxima responsabilidade. Assumo na questão que não correu bem na coordenação entre a Saúde e a Segurança Social [...] em muitos casos no enquadramento a nível regional e local, já disse várias vezes. Houve aqui dois fenómenos: um que me preocupou sempre que foi uma criação de expectativas muito elevadas em relação à vacinação. As pessoas dizerem 'ano novo, vida nova'. É um processo para um ano e meio, não é para o dia seguinte. E depois houve a decisão relativamente ao período de Natal, devo dizer que todos os partidos se pronunciaram neste sentido e, alguns, num sentido ainda mais permissivo.
A decisão teve os efeitos que teve. Na altura falei num pacto de confiança com os portugueses, o pacto de confiança não funcionou. Assumo essa responsabilidade por mim, pelo Governo, por todos os que intervieram. Agora temos de olhar para o futuro e, em relação ao futuro, penso que não há alternativa ao confinamento geral. A ideia teórica que é confinar os de grupo de risco mais elevado e não confinar os outros não tem dado em nenhum sítio da Europa. A Europa toda está a confinar globalmente mais do que Portugal, há mais tempo do que Portugal. O grupo de menor risco é das escolas, mas essa matéria ainda vai ser ponderada".
Marcelo instabilizador?
Ana Gomes: "Acho que quem é PR tem de contribuir para soluções e tem de ter uma relação leal e franca com o Governo exercendo a magistratura de influência, discretamente, não é preciso falar todos os dias com todos os comentadores. É preciso não oscilar parecendo às vezes que se quer ser um pai do primeiro-ministro, ou outras vezes tirar-lhe o tapete. Penso que Marcelo poderia contribuir mais para as soluções e eu, certamente, como Presidente da República, atuarei diferente.
O Caso SEF é um caso em que acho que há graves erros de todo o Estado e também do Professor Marcelo, porque só atuou quando houve uma grande pressão mediática. Houve nove meses de silêncio. E não era só atuar em relação à viúva, mas era, sobretudo, cuidar da reforma do SEF, porque o caso revelou que havia um problema sistémico. Não é com o diretor da Polícia que se tem de falar sobre a reforma do SEF. Penso que esta é uma das matérias em que eu faria diferente, sem dúvida.
Não se dispensa o/a PR de fazer um juízo político, seja sobre a composição dos Governos, seja sobre as alianças de partidos que devem integrar um Governo. No caso do acordo dos Açores não o fez. Acho grave e que normaliza uma força de extrema-direita, quando estamos a ver - não só em Portugal mas noutros países - que a Democracia está sob ataque. Mais do que nunca era essencial que o Professor Marcelo não tivesse permitido esta normalização do Chega!. Desde logo dar ao partido mais votado a possibilidade de formar Governo. Isso poderia permitir um entendimento entre os partidos e outro tipo de alianças. Ou dizer que aquele tipo de entendimento não era aceitável. Há sempre soluções."
Marcelo Rebelo de Sousa: "A senhora embaixadora tem de estabilizar a sua opinião sobre o Presidente da República. Porque até ao dia seguinte à declaração da candidatura, achava que a articulação [com os Governos] tinha sido magnífica. A legislatura chegou ao fim, não houve crises políticas. Chamo a atenção que quem disse que o primeiro-ministro era igual ao primeiro-ministro húngaro, Órban, não fui eu, foi a senhora embaixadora.
Segundo ponto, SEF. Intervim logo em abril. A reforma do SEF estava a ser tratada em diálogo com o Governo, há muito tempo fazia parte do programa do PS. Fiz uma opção: não fazer o telefonema [para a viúva], mas a senhora embaixadora, que é tão atenta e arguta, passou esses meses todos sem ter notado que o Presidente da República devia ter intervido.
Ana Gomes: "Falei nos meus comentários na SIC Notícias".
Marcelo Rebelo de Sousa: "Mas não falou da minha intervenção na matéria. Terceiro ponto: receber o Diretor Nacional da Polícia. Pediu para ser recebido. Foi recebido na data que resultou num pedido do diretor por antecipação. O primeiro-ministro achou bem e soube do teor da conversa mal terminou. Imediatamente interpretação da senhora embaixadora: que eu o tinha convocado para discutir o SEF, para tratar de um problema que tinha sido tudo de acordo com o que era a regra habitual.
Açores. Temos aqui duas divergências claras entre nós dois. Uma de fundo, que é a mais importante. E a outra que é Constitucional. Aparecem os partidos ouvidos por ordem crescente e aparecem partidos que dizem: 'Temos acordos para constituir um Governo'. Não aconteceu assim no caso das Legislativas. Como é que um Presidente da República recusa uma maioria Parlamentar? E como é que diz: 'Olhe o senhor é de um partido que, apesar de legal, devia estar ilegalizado?'
E nós divergimos na maneira de encarar fenómenos como o partido Chega!. A posição da senhora embaixadora é proibir, fazer cordão sanitário. Ela própria disse que quando chegar a Presidente vai pedir ao MP para levantar a questão da ilegalização do partido. Eu sou contra. Acho que se ganha no debate das ideias. Não se ganha proibindo, não se ganha calando. Isso é dar razão, é vitimizá-los, é encorpá-los.
Isolar André Ventura é permitir que ele se vitimize?
Ana Gomes: "Penso que temos de recuperar [os militantes desse partido] para o espaço Democrático. Não é só com as ideias é também com a ação, a ação política. Sem dúvida que, neste caso concreto, é um partido que foi, desde logo, legalizado com assinaturas falsas. A lei não é para cumprir nesta matéria? É um partido que tem um programa claramente anticonstitucional...
Marcelo Rebelo de Sousa: "Porque é que levou dois anos a descobrir isso? Porque é nunca pediu a ilegalização do partido?"
Ana Gomes: "Tenho-me farto de o pedir".
Marcelo Rebelo de Sousa: "Como cidadã podia ir ao MP pedir. Podia. Não precisa de ser Presidente para ir lá".
Ana Gomes: "Até porque está em causa toda uma prática reiterada de xenofobia, de incitamento à limpeza étnica. Tudo isso não pode ser desvalorizado à luz da Constituição".
Marcelo Rebelo de Sousa: "Porque é que não foi ao MP? Porque é que não foi se estava tão indignada... esperou por ser candidata. Isso é um disparate, é fazer o jogo deles".
Ana Gomes: "Estou aqui no combate político, das ideias. E sim, como cidadã, farei isso e ainda mais farei como Presidente da República, porque acho que é minha obrigação. Nunca dispensarei o juízo político, que quem é eleito para PR é suposto fazer, sobre as condições de governação e sobre qual é a arquitetura de partidos que deve compô-la. Por isso, jamais permitirei replicar o acordo que existe nos Açores para a República".
Marcelo Rebelo de Sousa: "E porque é que durante dois anos, o Chega! existe há quase dois anos, como cidadã indignada, esperou para ser candidata para vir dizer..."
Ana Gomes: "Porque esperei que os órgãos da República fizessem o seu trabalho. E disse-o várias vezes".
Marcelo Rebelo de Sousa: "Até ser candidata não disse. Discordo totalmente disso, isso é que dá o peso a esses setores".
Justiça, megaprocessos e a "amizade" com Ricardo Salgado
Ana Gomes: "Uma outra área em que tenho demarcação do Professor Marcelo é a área da Justiça, da transparência, do combate à corrupção. É uma área essencial para não alimentar a argumentação daqueles que são antisistema democrático. Eu, quando estiver no lugar de PR serei incisiva na relação normal que se tem com a PGR e as outras instâncias da Justiça para que tenham os meios e encorajamento para fazer o seu trabalho. Olhe só para os megaprocessos, completamente bloqueados".
Marcelo Rebelo de Sousa: "Eu fui contra os megaprocessos sempre".
Ana Gomes: "Mas então não foi eficaz. Sei que o Professor, até pela sua relação de amizade com o Dr. Ricardo Salgado, é uma das pessoas com mais interesse em que o Caso BES já tivesse sido esclarecido, que já se tivessem apurado as responsabilidades desse senhor e de muitas outras pessoas. O julgamento sete anos depois ainda nem começou. É uma área onde teria esperado..."
Marcelo Rebelo de Sousa: "Lamento que a senhora embaixadora, sempre atenta aos atos contra a corrupção, tenha deixado dizer, num debate com o candidato Tiago Mayan, que eu devia ter vetado a lei de transparência contra a autorização dos fundos europeus. Eu vetei. Segundo ponto: no meu mandato, orgulho-me de terem avançado, com duas Procuradoras, a Operação Marquês, a Operação BES, o julgamento de Tancos, a Operação Lex...
Terceiro: a referência que tinha de fazer ao Dr. Ricardo Salgado. Há cinco anos, dizia-se assim: 'Ele é amigo do Dr. Ricardo Salgado, vamos ver se não vai facilitar a vida ao Dr. Ricardo Salgado. Passaram cinco anos, foi condenado em três processos movidos pelo Banco de Portugal. Foi finalmente acusado no Processo BES. Portanto, não sei se percebe o quão ofensivo é aquilo que disse. Tenho o mesmo interesse em relação a todos os portugueses. Quando usam esse exemplo é para dizer que eu tinha um interesse especial. Não tenho interesses especiais. Escusa de tentar atingir a minha honorabilidade e a minha integridade. Nunca diria de si aquilo que disse de mim. Não vale tudo em política".
A Justiça precisa de denunciantes como Rui Pinto?
Marcelo Rebelo de Sousa: "Quem decide isso é a Justiça. Não me substituo à decisão dos Tribunais. O PR não vai, num caso que está a decorrer... Quem tem de decidir é a Justiça."
Ana Gomes: "Tenho dito repetidamente que é a Justiça que tem de apurar se ele cometeu crimes ou não. Agora, ao mesmo tempo, também tenho de valorizar o serviço cívico de interesse público que ele prestou ao revelar o que revelou. Isso tem de ser relevado pela Justiça quando apreciar os seus crimes. É isso que digo e que mantenho. E tenho de valorizar o facto de ele hoje estar a colaborar com a Justiça portuguesa. Este é um dos casos em que gostava de ter ouvido o Presidente Marcelo pronunciar-se".
Marcelo Rebelo de Sousa: "O Presidente da República? Sobre um caso judicial? Acha que é normal? Não falo sobre tudo, falo sobre o que é importante. Estou próximo dos portugueses, falo sobre o que é importante para eles. Quem fala sobre tudo é a senhora embaixadora como comentadora".
"Quem fala sobre tudo é a senhora embaixadora como comentadora"MRS sempre falou de tudo e mais alguma coisa, seja na RTP ou na TVI. E principalmente entre 2010 e 2015 usou a sua posição de comentador para poder preparar e cimentar a sua futura candidatura à presidência em 2016.
— Rui Pinto (@RuiPinto_FL) January 9, 2021
[Última atualização às 23h14]