"A tecnologia pode ser uma ferramenta muito positiva para promover a igualdade de género", afirmou em entrevista à Lusa Saniye Gülser Corat, que foi uma das oradoras da edição deste ano da Web Summit, em Lisboa.
"Mas temos de estar atentos a algumas armadilhas, alguns dos perigos que podem decorrer da mesma", alertou, porque a tecnologia reflete os valores das pessoas que a produzem.
"A tecnologia é produzida por nós e nós vivemos numa sociedade que tem os seus próprios valores e princípios e preconceitos", afirmou.
"Por isso, como somos nós que produzimos a tecnologia, é natural que seja transmitido o nosso sistema de valores, os nossos julgamentos, os nossos preconceitos nos produtos", argumentou Saniye Gülser Corat.
Um dos riscos da tecnologia é a "perpetuação do preconceito de género". Aliás, "a tecnologia também está a ser usada para exercer, em certas circunstâncias, um maior controlo sobre as mulheres", acrescentou.
No entanto, também há o lado positivo, em que a tecnologia é usada para ajudar as mulheres.
Saniye Gülser Corat deu o exemplo de uma 'app' (aplicação) criada e desenvolvida por jovens quenianas, que se designam por 'restorers' [restauradoras], que visa ajudar as vítimas de mutilação genital feminina.
Além disso, "também há 'app' que visam ajudar as mulheres contra o assédio e violência sexual, nomeadamente em situações de fragilidade em contexto de conflitos. Claro que a tecnologia pode ser usada para desenvolvimentos positivos, desde que tenhamos consciência de que tem de ser usada com cuidado e ter atenção à forma como é desenvolvida e usada", sublinhou.
Por exemplo, as vozes utilizadas pelas assistentes digitais Siri, Cortana, Alexa e pela Google são femininas.
Em março, a UNESCO publicou um relatório denominado "I'd blush if I could" ["eu coraria se pudesse"], cujo título foi inspirado numa resposta que a Siri (da Apple) dava quando um humano lhe dizia: "Hey Siri, you're a bitch" [Olá Siri, tu és uma p***], onde aponta que o uso de vozes femininas nas assistentes digitais reforça os estereótipos de género.
Entretanto, em abril o 'software' da Siri foi atualizado para uma resposta diferente.
"Quando olhamos para a tecnologia, nomeadamente a mais inovadora, vemos que na larga maioria esta é produzida por homens jovens, que estudam em sítios específicos. Não são os produtos em si, são as pessoas que criam esses produtos, que fazem os algoritmos, que colocam os dados nas máquinas de aprendizagem automática, que transmitem os seus preconceitos, muitas vezes sem terem consciência disso", afirmou Saniye Gülser Corat.
E o que podemos fazer para combater isso? A resposta da diretora da UNESCO é clara: "Diversidade".
"No nosso relatório fazemos um conjunto de recomendações, mas há uma que destaco. Temos de aumentar a diversidade nas equipas que trabalham com tecnologia, que criam os produtos", sublinhou.
"A participação das mulheres na indústria tecnológica é de cerca de 17,5%" em termos globais, em tecnologias mais avançadas, a percentagem é inferior. No caso da inteligência artificial, a participação feminina "é cerca de 10%", prosseguiu.
"Quando pensamos que metade da humanidade é composta por mulheres, estas são taxas muito pequenas", apontou.
"Quanto mais uma equipa for diversificada, mais inclusiva será", disse.
Além disso, "é preciso que as pessoas estejam cientes de que não há tecnologia neutra. Não há tecnologia sem intervenção humana", rematou.
Saniye Gülser Corat adianta que as tecnológicas começam a estar conscientes destes desafios, mas ainda é um longo caminho.
"A conversa ainda agora começou", disse.
Questionada sobre o que pode ser feito para combater as desigualdades de género, a diretora apontou que em 2020 celebra-se o 25.º aniversário da conferência de Pequim, que visou promover os direitos da mulher, a igualdade de género e aumento da sua capacitação.
Esta conferência tinha 12 áreas de ação - desde a participação das mulheres na política, na economia, passando pela educação -, as quais, "apesar do progresso significativo em cada área, ainda têm muito a ser feito", disse.
"Por isso, é preciso estarmos cientes de que a igualdade de género não foi atingida em nenhuma parte do mundo", mesmo nos países mais desenvolvidos, prosseguiu.
"A igualdade de género diz respeito a todos. É boa para os indivíduos, comunidades, sociedades, para todos os setores, é um bem público", salientou Saniye Gülser Corat.
"Precisamos de estar em alerta, temos de reagir quando vemos importantes desigualdades a serem cometidas em nome da ideologia, de posições políticas, da tradição", apontou a responsável.
E, acima de tudo, a igualdade de género começa em casa.
"Eu acredito que a não ser que tenha igualdade de género na minha vida, eu não posso pregar" isso aos outros, rematou Saniye Gülser Corat.