Desde cedo Gonçalo Cadilhe alimentou o sonho das viagens. Mas não se limitou em sonhar, concretizou-o, tornando-se um viajante profissional e incansável. Décadas depois já fez algumas das viagens que muitos desejam fazer.
Nesta entrevista ao Notícias ao Minuto, o escritor fala desta paixão, das viagens e de momentos que mais o marcaram, dos destinos que ainda quer conhecer e dos livros que foi escrevendo sobre o seu percurso pelo mundo fora. No entanto, deixa claro que sempre que viaja o círculo só fica completo quando regressa a casa, à Figueira da Foz.
Durante esta conversa, Gonçalo Cadilhe também aborda temas atuais como o crescimento do turismo em Portugal e o aumento do populismo, da xenofobia e da intolerância no mundo.
Como é que surgiu esta paixão pelas viagens? Ainda antes de começar a viajar ou foi depois da primeira viagem que fez?
Cresci numa cidade, a Figueira da Foz, que estava na linha de trânsito dos nómadas que faziam surf nas carrinhas pão de forma e que vinham à Europa durante o outono/inverno, que é a altura para o surf. Passavam pela Figueira porque na altura, descendo de Biarritz e do País Basco, a estrada principal atravessava Burgos, Salamanca, depois descia pela Guarda e a Figueira era a primeira praia com ondas de qualidade que eles encontravam e ficavam aqui durante semanas. Comecei a fazer surf com 12 anos e tudo isto mexeu imenso com a minha imaginação. Já falava inglês portanto passava horas a conversar com estes surfistas australianos, californianos, da África do Sul, e todo este desprendimento, esta facilidade que eles tinham de viajar, de fazer o que já naquela altura era o ‘gap year’ - eles juntavam dinheiro para poderem viajar pelo mundo e fazerem surf durante um ano -, mexeu comigo.
Cresci desde os 12 anos em contacto com esta realidade e fiz deste sonho uma espécie de objetivo a realizar. Como costumo dizer, ‘Um sonho não realizado é um pesadelo que nos atormenta para o resto da vida’. A minha primeira grande viagem que foi à África do Sul, onde existe uma das melhores ondas de surf do mundo, foi planeada com um grupo de sete ou oito amigos e quando chegou o momento da partida fui o único a aparecer no aeroporto. Os outros disseram que iam, mas um não tinha dinheiro, outro os pais não deixavam, outro nunca teve coragem para ir. Ou seja, comecei a viajar sozinho no final dos anos 80 e nesse arranque segui o exemplo desses surfistas.
Quando comecei a viajar com o pouquíssimo dinheiro que recebia do pagamento da escrita de viagens não sabia que quase 30 anos depois ainda estaria a viver da escrita de viagensQuando é que percebeu que podia tornar-se um viajante profissional?
Comecei a viajar a sério na mesma altura em que o país começou a despertar para a realidade das viagens independentes, dos mochileiros. Começaram a aparecer uma série de revistas de viagens, a única que ainda hoje sobrevive é a Volta ao Mundo, mas na altura havia várias, nomeadamente a Grande Reportagem dirigida pelo Miguel Sousa Tavares, que não sendo propriamente uma revista de viagens tinha uma secção dedicada a viagens independentes. Tentei publicar lá os meus textos. Na altura, já sabia que tinha um certo talento para escrever, que as pessoas liam com facilidade o que escrevia. Esse foi o meu primeiro trabalho publicado, em 1991. A partir daí foi acompanhar essa bola de neve em Portugal do turismo e das viagens. Tive a sorte de estar disponível, de estar presente no momento em que o mercado procurava pessoas que fizessem o que andava a fazer.
O Gonçalo tirou Gestão e chegou mesmo a trabalhar nessa área. Pode dizer-se que o bichinho das viagens falou mais alto?
Sim, com certeza. O mundo da gestão nunca falou nem alto nem baixo. Vivíamos ainda numa cultura muito formal, muito burguesa. O meio social de onde vinha também fazia essa pressão para que eu continuasse os estudos pela universidade fora e calhou ser o curso de gestão de empresas, que estava a aparecer em Portugal. Eu sou da primeira leva de gestores da Universidade Católica do Porto. Tinha de fazer alguma coisa porque os meus não aceitavam outra alternativa, como por exemplo ir para a Austrália, trabalhar num bar. Fazer surf de dia e servir copos à noite. Nem eu tinha essa possibilidade.
Portanto terminei o curso, tal como esperado de mim e depois a vida já era minha, já tinha autonomia para tomar decisões e mesmo que fossem uma desilusão, que fossem contra as expectativas do meio familiar, tomei-as sem saber onde me ia levar. Quando comecei a viajar com o pouquíssimo dinheiro que recebia do pagamento da escrita de viagens não sabia que quase 30 anos depois ainda estaria a viver da escrita de viagens.
Escrever sobre as suas viagens é uma forma de partilhar com os outros o que o Gonçalo vê, é uma forma de exteriorizar aquilo que experiencia?
Penso que qualquer escritor tem essa ambição de partilhar. Não está à espera de publicar um livro para ser detestado por todos os leitores e ao fim das dez primeiras páginas ser deitado fora. Portanto, eu como escritor, apesar de estar num segmento muito específico que é o das viagens, espero que o leitor sinta que está a partilhar, que está a viajar comigo, que está a gostar do que está a ler, independentemente de o ambicionar fazer. Sinceramente, algumas das coisas que já fiz espero que os leitores não as façam porque não são recomendáveis.
Os imprevistos que fazem também parte da riqueza da viagem estão a desaparecer porque é tudo partilhadoNo final de 2002 iniciou uma volta ao mundo sem aviões, na qual percorreu 38 países de quatro continentes. Foi uma das aventuras da sua vida? Quão difícil foi evitar os aviões ao atravessar oceanos?
Não utilizaria a palavra aventura no sentido de correr perigos, mais do que qualquer outra viagem ‘normal’, como por exemplo ir 15 dias de férias ao Peru. Pode acontecer entrar no momento errado num terminal para comprar um bilhete de autocarro e o terminal está a ser assaltado e nós somos apanhados no meio do assalto. Foi uma das coisas que me aconteceu nessa volta ao mundo. Mas não houve assim muita aventura no sentido do século XIX, das pessoas que atravessavam África como o Serpa Pinto.
Agora o que eu tinha era uma disponibilidade e também uma logística para fazer esse projeto que não sei se se voltará a repetir. A disponibilidade tem a ver também com a idade. Não sei se hoje, com 50 anos, aguentaria 19 meses a dormir onde calha, umas vezes num hotel melhor e outras num hotel pior ou no próprio autocarro. A nível físico foi puxado por ter sido tanto tempo a viajar. A nível de logística de viagem, efetivamente a imprensa escrita de viagem atual acho que dificilmente teria condições para suportar os custos desse projeto. Na altura, o Expresso durante 19 meses, todas as semanas, pagou-me as crónicas e as crónicas pagaram-me a viagem. Hoje em dia sabemos que a imprensa escrita está em crise. Teria de ser financiada de outra maneira.
Por fim a questão dos aviões. Na altura comprei um livro de viagens que abordava o tema das viagens em cargueiro. Sabia que com alguma paciência e flexibilidade, não tendo datas muito pré-definidas, conseguia atravessar os oceanos de cargueiro e portanto esse foi o grande tema da viagem sem aviões, foi a alternativa de ter passagens em cargueiro procurando dentro das grandes companhias de despachantes e de cargueiros de contentores, que ainda hoje aceitam levar passageiros.
Com este projeto, também tive a sorte de a internet e os emails estarem difundidos por todo o mundo, portanto sabia que conseguia fazer a viagem e publicá-la ao mesmo tempo. Hoje isto parece ridículo porque as coisas ainda antes de acontecerem já estão a ser publicadas nas redes sociais.
Na altura, escrevia o diário, a crónica da semana que era publicada dez dias depois no Expresso. Tinha de enviar até quinta-feira para sair no sábado da semana seguinte. Com estes dez dias de décalage, os leitores parece que sentiam que estavam a viver a viagem em tempo real. Dez dias na altura era considerado tempo real. Tive a sorte de pensar este projeto e de concretizá-lo numa altura em que era tudo novo. Estar a fazer a viagem e estar a partilhá-la ao mesmo tempo – os tais dez dias de diferença – foi algo inédito.
No Quirguistão, um dos destinos incomuns onde Gonçalo já esteve© Gonçalo Cadilhe
Esta viagem errante trouxe-lhe um maior contacto, uma maior proximidade com as populações locais, o que imagino que tenha sido especial.
Na realidade, já há 10 anos que viajava profissionalmente. Portanto esta viagem em 2002 foi feita por alguém que já tem dez anos de experiência a viajar com uma mochila às costas e a partilhá-la com os leitores. Mas foi a primeira vez que tive a liberdade, e senti que os leitores me permitiram isso, de partilhar momentos íntimos, de partilhar encontro, experiências pessoas, algo que nos 10 anos anteriores era fora do cânone. Aquilo que se esperava de uma reportagem de viagens era informação factual e não os sentimentos, as experiências do autor do texto. A menos que fosse um autor conhecido. Por exemplo, se encomendassem a José Saramago um texto sobre uma viagem a Portugal, ele poderia escrever na primeira pessoa. Mas no geral, e no meu caso concreto, só mesmo a partir desse projeto é que percebi a força da partilha. Então comecei a deixar transparecer isso nas crónicas que depois resultaram no livro ‘Planisfério Pessoal’, que está agora na 9.ª edição.
Isto enriqueceu muito o leque de temas que podia abordar sobre as minhas viagens mas não diria que é o centro, é uma mistura, uma dosagem equilibrada de encontros com populações escolares, de visita de monumentos, de peripécias de viagens, como por exemplo, o pneu furado de um autocarro e passar a noite a dormir na berma da estrada. Este tipo de coisa. Acho que é este mix que tem explicado porque é que as pessoas continuam a ler os meus textos.
A volta ao mundo sem aviões foi uma das viagens mais transcendentais da minha vidaPortanto, nessas viagens o que de melhor se retira é uma mistura entre os locais e as pessoas que habitam neles? Acabam por ser duas faces indissociáveis deste tipo de viagens?
Sim e uma terceira que está a desaparecer cada vez mais, que é o imprevisto. No livro ‘África Acima’, eu descrevo um meio de transporte a que chamavam ‘le truck’. Em francês, pensei que ‘le truck’ fosse um forma habitual de chamar um autocarro e na realidade era mesmo um camião. O transporte que me levava daquela cidade do Congo até à fronteira com o Gabão era um camião que levava carga e quando não tinha a carga completa levava também pessoas.
Este camião não tinha faróis e portanto quando anoitecia parava na estrada de terra e dormíamos todos ali à volta do camião. Estes imprevistos que fazem também parte da riqueza da viagem estão a desaparecer porque é tudo partilhado, ou seja, se hoje passasse por isso se calhar já tinha lido em fóruns, no TripAdvisor. Já sabia que o camião não tinha faróis e que parava na berma da estrada. Teria perdido genuinidade, a força da escrita.
Um dos livros que escreveu chama-se ‘Nos Passos de Magalhães’. Como foi seguir os passos de Fernão de Magalhães, 500 anos depois da viagem deste grande navegante português?
Essa viagem a nível pessoal foi também uma confirmação de que os meus interesses e as expectativas dos leitores poderiam ser muito alargados, não precisava de ser apenas a aventura pura e dura. Podia tentar também viagens mais organizadas, mais controladas, mais programas mas com um conteúdo intelectual, cultural mais forte. Havia também público para isso. Havia uma enorme liberdade que descobri com o projeto de Magalhães e que repeti depois com o livro ‘Nos Passos de Santo António’, que é basicamente a mesma estrutura, a mesma forma de abordar o tema.
No livro de Magalhães tive que recorrer ao saber académico de alguns dos estudiosos, intelectuais mais conceituados, não só em Portugal, do período dos Descobrimentos. Essas entrevistas e essas conversas ajudaram-me muito a contextualizar toda a viagem. Depois quando fiz a viagem houve lugares que me emocionaram mais e outros menos. Mas no caso concreto de Magalhães, talvez a travessia do Estreito tenha sido o momento mais emocionante. Chegar ao Estreito de Magalhães e perceber o que significava na altura não ter qualquer conhecimento do mundo e a cara enfiar-se por ali, naquele lugar medonho, foi um dos momentos mais fortes da viagem e um dos que permitiu mais de 500 anos depois comparar o que foi a viagem de Magalhães.
Um momento descaracterizado foi em Guam, depois da travessia do Pacífico, onde a armada das Molucas finalmente encontrou terra. Na altura Guam era um paraíso habitado por nativos. Hoje é a Disneyland dos japoneses. Eu estive em Guam e dificilmente podia situar-me no tempo de Magalhães. Senti-me um bocadinho desorientado.
No livro ‘O Esplendor do Mundo’, foi difícil escolher os 99 destinos e as experiências que o marcaram?
Deu-me imenso trabalho como júri estar em frente de vários candidatos e ter de optar por um e desclassificar outro. Basicamente foi isto. Porque é que não colocava aquela catedral e colocava esta, porque é que colocava aquela paisagem ou aquele itinerário e não outro. Houve ali uma reflexão e também um sentido muito pragmático de que as coisas que me poderiam ser muito queridas podiam não ser entendidas pelo leitor. Esta listagem, esta separação das águas foi complicada para chegar a 99. Obviamente não eram 100 porque queria deixar claro que não estava completa. Na nossa cultura que é decimal, o 99 passa a mensagem de estar incompleto.
Uma coisa que também não me atormenta nada é o que ficará por fazer porque a vida é assim. Prefiro sempre olhar para a vida através do copo cheioHá algum destino que o Gonçalo não recomende ou ao qual não voltaria?
É sempre uma opinião subjetiva porque há destinos que não me interessam mas podem interessar a outra pessoa. O Dubai é um lugar que não me interessa mas tem tido um crescimento brutal de turismo. Há destinos onde nunca fui e recomendo negativamente porque tem a ver com a minha sensibilidade e não com o destino em si. É preciso fazer essa distinção. E depois há as viagens que fiz e que correram mal, mas tenho a humildade e o bom senso de dizer ‘Atenção. Este destino a mim correu mal, não gostei, não quer dizer que vocês não possam ter uma experiência positiva, luminosa’. Não estou autorizado a dizer às pessoas para não irem. Posso é partilhar a minha experiência e dizer às pessoas porque é que as coisas não correram bem e alguns locais não me deixaram impressionado.
Quanto a exemplos concretos, curiosamente aquilo que para muitos portugueses é um objetivo que é ir ao nordeste do Brasil penso que é um destino onde não regressaria. Nada correu mal mas há destinos com as mesmas características e mais interessantes.
O Alaska é um dos locais que o viajante gostava de explorar© Gonçalo Cadilhe
O Gonçalo participa no projeto das viagens de autor da Pinto Lopes. Tem sido uma boa experiência acompanhar um grupo de pessoas e mostrar-lhes as cidades através da sua perspetiva e com os conhecimentos e o à vontade natural de quem já viaja há tantos anos?
Tem de ser uma experiência diferente. Mas quero só fazer uma pequena correção. Disse cidades mas em algumas das viagens que fazemos nem chegamos a ver uma cidade digna desse nome. Estou a pensar na viagem ao deserto do Kalahari, na Namíbia. Não vemos cidades. São paisagens, é atravessar a África mais isolada. Não é apenas um projeto europeu ou urbano, é também de grandes travessias e paisagens. Em relação à minha experiência e o que isso significa para quem tem sempre viajado de forma solitária, quando este projeto começou as pessoas que me acompanharam eram meus leitores e vinham com esse objetivo de partilhar com o autor lugares, momentos e emoções sobre os quais tinham lido.
Viajar em grupo é um outro registo. Quando vou viajar em grupo não vou para estar sozinho em reflexões que possam servir para um livro. Vou para partilhar alguns dos lugares mais extraordinários do mundo na minha opinião e isso é uma energia muito positiva, uma espécie de felicidade regressar a estes lugares que adoro com pessoas que percebo que me acompanham, que seguem a minha abordagem e a minha forma de olhar para estes lugares e que regressam também com essa felicidade e esse tipo de energia positiva. Não tem a ver com o autor, o escritor que faz a viagem, tem a ver com uma índole, um traço do meu carácter, que é o de gostar de partilhar e de sentir que aquilo que dou aos outros, quase em termos karmicos, regressa para mim e sinto-me feliz com isso.
Se pudesse escolher uma ou duas viagens que o marcaram mais, quais seriam?
Se vamos pela questão de marcar mais, a minha primeira viagem que se tornou um trabalho profissional foi o México, a América Central em geral mas o México em particular. Essa viagem mudou a minha vida no sentido pessoal. Tive a certeza que poderia viajar para o resto da vida ou que poderia viajar durante muito tempo porque gostava de viajar. E o México é um país que não é fácil. Por outro lado, marcou-me pelo facto de demonstrar que poderia tornar-me um viajante profissional através da escrita.
Outra viagem que me marcou foi a da volta ao mundo porque tornou-me conhecido em Portugal e a partir daí tantas portas se abriram. Mais concretamente o que me marcou nesta viagem de 19 meses foram as semanas que viajei em cargueiro porque viajar no mar é sempre uma sensação transcendental mas uma coisa é navegar em cruzeiros ou em ferrys com muitos outros passageiros, em que sentimos que o que estamos a fazer é programado, é um roteiro partilhado por todos. No caso dos cargueiros não. Há pouquíssimos tripulantes. Portanto, a bordo de um cargueiro que pode demorar três, quatro semanas a chegar ao porto estamos sozinhos. É um exercício de solidão brutal. Passava dias em que praticamente a única pessoa que via era o cozinheiro quando ia buscar o prato para comer. Todas as pessoas no cargueiro tinham turnos diferentes. Quando não estavam a trabalhar, estavam nos seus camarotes pessoais.
Mas esse exercício de solidão funciona bem comigo. Eu estou bem sozinho. Entretenho-me muito comigo próprio. Levava comigo a minha viola e também levava muita coisa para ler. Tinha a minha escrita para pôr em dia. No total dos 19 meses da volta ao mundo, a soma do tempo passado em cargueiros foi de quase três meses. Em diferentes cargueiros e diferentes oceanos. Foi uma das viagens mais transcendentais da minha vida.
Eu não sou um nómada. Um nómada não tem uma casa onde regressar. Eu sou um viajante e é essa a diferença. Um viajante só completa a viagem no regressoImagino que, mesmo para alguém que já viajou tanto como o Gonçalo, haja sempre alguma viagem por fazer. Qual é a viagem que ainda não concretizou e que quer muito fazer?
Aqueles países ou regiões que são bastante caros porque requerem uma logística muito própria continuam fora do meu alcance económico e também do tipo de projetos que tenho apresentado aos financiadores deste trabalho. Em casos concretos, o Alaska ou a Sibéria, são territórios que gostaria de visitar e que necessitam dessa tal logística. Estou a pensar naquela possibilidade de me meter num hidroavião, entrar no meio do Alaska e chegar a lugares onde raramente vão pessoas. Dizem que durante o outono tem cores maravilhosas. É uma das viagens que ainda não consegui fazer, não sei se alguma vez conseguirei fazer. Mas uma coisa que também não me atormenta nada é o que ficará por fazer porque a vida é assim. Aquilo que realizamos é metade do copo cheio e aquilo que fica por fazer é metade do copo vazio. Eu prefiro sempre olhar para a vida através do copo cheio.
Viajando tanto, é importante ter um sítio a qual chamar casa, que crie um equilíbrio com as viagens constantes que faz?
Sim. Eu não sou um nómada. Um nómada não tem uma casa onde regressar. Eu sou um viajante e é essa a diferença. Um viajante só completa a viagem no regresso. Eu quero completar as viagens, quero fechá-las e iniciar outras e para isso tenha a necessidade de regressar a casa. Penso que só isso dá sentido à viagem, o regresso. Repito: não gostaria de ser um nómada. Acho que é uma espiral e não um círculo e eu não me revejo nessa atitude existencial.
O viajante rico, o turista como nós lhe chamamos, é convidado a visitar os países e o viajante pobre, que nós chamamos migrante ou refugiado, é cada vez mais repelidoVivemos um período que a nível global está a ser marcado pelo populismo, pela xenofobia e pela construção de muros a delinear fronteiras. Durante as suas últimas viagens apercebeu-se de um aumento da intolerância para com os outros?
Vou várias vezes por ano a Itália e tenho notado isso nos últimos anos. Não sei se o termo populista é correto para designar esta alteração de opinião pública em relação ao fenómeno das migrações e dos refugiados. Sobre o populismo propriamente dito, esse é um tema que vai para lá da minha experiência e não me sinto muito autorizado a falar sobre isso.
Quanto à intolerância em relação às migrações e às viagens, também vemos isso na forma como os próprios cruzamentos de fronteira se estão a tornar mais complicados e vemos regularmente na internet a aparecerem as listas de passaportes mais ambicionados do mundo, e onde Portugal felizmente tem aparecido nos primeiros lugares. São aqueles passaportes com os quais os turistas sabem que não terão grandes problemas para atravessar as fronteiras. Isso mudou muito nos últimos anos. Essa é a minha experiência direta. A forma como o viajante rico, o turista como nós lhe chamamos, é convidado a visitar os países e o viajante pobre, que nós chamamos migrante ou refugiado, é cada vez mais repelido.
Enquanto cidadão, está preocupado com o crescimento destes movimentos populistas e extremistas?
Com uma cada vez maior aceleração da nossa vida provocada pelas redes sociais e pela internet penso que estes movimentos têm vida curta. Ou seja, vemos como estamos sempre a necessitar de recuperar qualquer coisa que se fez no passado e ficou fora de moda e é provável que ao nível destes movimentos sociais e políticos se verifique o mesmo. Agora estão em alta, se calhar daqui a 10/15 anos estão em baixa, e daqui a 30 anos voltam. Não me parece que estejamos perante um cenário em que nada voltará a ser como era antes. Continuaremos sempre nesta gestão de compromisso porque estamos todos muito cómodos com a vida que levamos.
Estes movimentos populistas serão travados quando as pessoas perceberem que isso vai alterar a sua comodidade, a sua vida fácil. Serão relançados de novo quando as pessoas acharem que vai servir para manter as suas vidas cómodas e fáceis. Acho que já passou a época dos ideais e tudo o que se faz hoje em dia é um simples aproveitamento daquilo que as pessoas precisam para sentir que há uma mudança qualquer no dia a dia.
Como tem acompanhado este boom do turismo em Portugal nos últimos anos?
É um boom. Irá parar. Penso que nunca mais voltaremos a ter os números de visitantes que tínhamos há dez anos. Ou seja, depois do boom o número será sempre superior ao que era há 10 ou 20 anos. Penso que muitos investimentos que estão a ser feitos agora vão-se ressentir por estarem a ser feitos em função de um boom.
Quer a nível de gestão das autoridades e do investimento de privados, se as coisas correrem bem é provável que este interesse, que é basicamente europeu e por Lisboa e Porto, possa depois criar raízes e uma série de outras cidades, de outras atividades, outras formas de fazer turismo que não têm a ver com o fim de semana numa cidade, se mantenham ou apareçam de novo. Estou a falar, por exemplo, do trekking, do surf, equitação. Espero que todas estas formas de fazer turismo fora dos grandes centros urbanos possam beneficiar deste boom.