"A nobreza corrupta de antes é talvez a classe política corrupta de hoje"

O escritor João Morgado, autor de vários romances históricos, contos e romances de ficção, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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© João Agostinho

Patrícia Martins Carvalho
10/01/2019 09:00 ‧ 10/01/2019 por Patrícia Martins Carvalho

Cultura

João Morgado

Depois de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral, João Morgado dedicou um livro a Luís Vaz de Camões, um dos nomes mais sonantes de Portugal.

Tal como em ‘Índias’ e ‘Vera Cruz’, também em ‘O Livro do Império' o autor quis mostrar o lado mais desconhecido de um herói português, dando a conhecer um poeta que era, afinal, também um crítico político.

Apesar de mostrar o lado mais obscuro dos heróis portugueses, João Morgado garante que o seu objetivo não é o de os “apoucar”.

Antes pelo contrário. O que o escritor premiado pretende é mostrar o lado humano de personalidades históricas que são ensinadas na escola como seres incólumes.

“O mau da nossa História não deve ser varrido para debaixo do tapete”, defende.

Entre investigar e escrever quanto tempo levou a ficar pronto ‘O Livro do Império’?

Este romance demorou cerca de um ano e meio a ficar pronto.

Como é o processo de se escrever um livro?

Começo por fazer definir o tema, depois faço a investigação e vou delineando os pilares do romance consoante o que vou descobrindo. Mas isto não tem de ser uma coisa fixa, até porque conforme se vai escrevendo vão surgindo outras ideias…

Podemos chamar-lhe um plano orientador?

Sim, é um plano orientador ao qual eu posso fazer alterações. Mas atenção, quando começamos a escrever é importante termos a noção do que nos espera para definirmos o espaço, as ações, se devemos desenvolver mais uma parte ou outra, senão corremos o risco de nos perdermos.

É também neste momento que define as personagens?

Sim, este plano de arquitetura implica também definir as personagens – a sua personalidade, o que cada uma vai representar dentro do romance. Portanto, é quase metade do romance que já está feito quando se começa a escrever.

Já lhe aconteceu ter um final definido para uma personagem e depois mudar de ideias a meio do processo de escrita?

Sim. Já me aconteceu as personagens revoltarem-se contra o criador e o criador revoltar-se contra elas e dar-lhes outro fim. Mas isto no romance histórico não se aplica tanto, porque as personagens existiram mesmo, as pessoas conhecem-nas e, portanto, elas morrem quando têm de morrer e nascem quando têm de nascer. Mexo na personalidade das personagens, mas não no seu percurso histórico.

O que é mais difícil: escrever um romance de ficção ou um romance histórico?

Um romance histórico. Embora as pessoas digam que a história já está escrita e, por isso, não veem dificuldade em escrever sobre determinada personalidade histórica, a verdade é que a dificuldade é exatamente essa: a História já está escrita, toda a gente sabe o final e eu, dentro daquilo que é sabido, tenho de criar factos que chamem à atenção, criar narrativas apelativas, criar novidade sobre o que se sabe.

Ou seja tem o seu trabalho limitado pela própria História.

E esse sim é um trabalho mais difícil, porque é uma ficção controlada e, por isso, não posso pôr o que quero, estou balizado entre aquilo que se sabe da personagem e os contextos históricos em que se mexia. Portanto tenho de ser criativo dentro de um colete de forças. Mas há autores que têm mais liberdade criativa e ficcionam mais. Eu gosto de ficar preso…

À realidade?

Ao que é sabido. Nós não sabemos o que é a verdade histórica. Há documentos que são documentos históricos, mas não são verdades históricas. Nós não podemos falar da verdade, temos de trabalhar naquilo que chamamos de verosimilhança. Gosto que as pessoas, quando acabam de ler os meus livros, tenham a noção de que leram um romance, não um livro de História, mas que também tenham a noção de que aprenderam alguma coisa e que esta viagem pelo livro os levou ao que seria, naquele tempo, a realidade.

Não estou aqui para julgar ou apoucar os nossos heróis, mas para os perceber, contando o bom e o mau. E o mau da nossa História não tem de ser varrido para debaixo do tapete, tem de ser entendido e explicadoQuando escreve um romance histórico qual é o seu objetivo?

Bom, nós temos uma História oficial, em que os nossos heróis são sempre limpos de pecados, são fabulosos. O que procuro é descobrir o outro lado da História, aqueles assuntos que são conhecidos, mas não do grande público, e apresentar uma História diferente com a informação que existe. Os meus livros não são livros de História, são romances e as pessoas têm de ler com prazer. Eu sou um romancista não um historiador. O que procuro é que as duas faces se encontrem.

Mas para se ser um romancista histórico não é preciso ser-se também um pouco historiador?

Tem de ser e sobretudo ter gosto pela Historia. Mas o que nós, os romancistas históricos, fazemos é diferente do que faz um historiador: um historiador agarra num documento antigo e diz-nos o que ele representa, já eu, enquanto romancista, posso olhar para o mesmo documento e dizer o que o documento não diz e é aí que tenho campo de progressão para explorar e escrever.

É uma forma de ensinar o leitor sem que ele perceba que está a ter uma lição de História?

Sim ou, pelo menos, que tenha essa noção, mas que a tenha com prazer.

Já escreveu sobre Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e agora Luís de Camões. Em algum caso descobriu algo que o tenha desiludido ou surpreendido pela positiva?

Quando parti para as personagens já tinha uma ideia do que ia encontrar, mas talvez o que me surpreendeu mais foi o Vasco da Gama.

Porquê?

Porque é o grande herói dos Descobrimentos e dizemos que descobriu o caminho marítimo para a Índia, mas não é verdade. O caminho foi descoberto por Bartolomeu Dias quando dobrou o Cabo das Tormentas, o que Vasco da Gama conseguiu foi completar a viagem até lá chegar. E só se fala na primeira viagem, quando na verdade foram três.

Qual a razão para só se falar na primeira?

E mesmo a primeira viagem não correu assim tão bem. Ele teve falta de diplomacia, foi preso e corrido de lá. A segunda viagem, de que não se fala, foi chamada de Armada da Vingança em que Vasco da Gama matou, torturou e roubou. Foi uma época de terror na Índia. Aliás, ainda hoje se estuda a ‘época de terror de Gama’ nas escolas da Índia e isto não nos ensinam na escola.

Quando digo que Vasco da Gama era um terror é bom que se diga que os outros também o eramE porquê escrever sobre o lado sombrio de um herói nacional?

Escrever sobre este lado mais desconhecido não é destruir os nosso heróis, é humanizá-los, é perceber quem eles eram e como agiam fazendo um enquadramento de época. Quando digo que Vasco da Gama era um terror é bom que se diga que os outros também o eram. Ele vivia naquele contexto e se queria sobreviver no outro lado do mundo com meia dúzia de barcos para enfrentar os árabes e os índios tinha que ser assim: forte e violento para que fosse temido. Não estou aqui para julgar ou apoucar os nossos heróis, mas para os perceber, contando o bom e o mau. E o mau da nossa História não tem de ser varrido para debaixo do tapete, tem de ser entendido e explicado.

Destas três personagens qual é a sua preferida?

Agora estou muito impregnado de Camões, vivi com ele durante um ano e meio e encontrei um Camões que não tem nada a ver com o Camões que nos ensinaram. Nem é aquela figura institucional do Dia de Portugal com os louros na cabeça, nem é aquele Camões aventureiro, espadachim que perdeu o olho e salvou a nado os ‘Os Lusíadas’.

Então, quem é Luís Vaz de Camões?

O Camões que eu escrevi é um homem já com uma certa idade, doente, indigente, que regressa desiludido da Índia, mas que se quer redimir de toda a sua vida de trotamundos escrevendo uma grande obra que se redima a si e a Portugal.

Redimir Portugal?

Sim, repare. Estamos a falar de uma época em que Portugal estava em decadência, já tinha acabado a época gloriosa dos Descobrimentos, havia uma nobreza corrupta, os cofres já não tinham dinheiro porque o império se consumia a si próprio e já estávamos a ter a concorrência nos mares dos franceses, ingleses e holandeses. É neste contexto histórico que Camões procura redimir Portugal recordando-lhe as suas glórias, as suas figuras maiores, os reis que dilataram o império e a fé. Camões procurou ir buscar o Portugal de outrora para lembrar às pessoas que já fomos grandes e já tivemos grandes homens.

O que podia ser também interpretado como uma crítica ao presente da época.

E foi. Ele foi visto como um crítico. Temos de olhar para um Camões que não é só um poeta, é um revolucionário político que procurou sempre acusar os poderes. Nós centramo-nos muito nas partes mais históricas e nos episódios mais líricos, mas esquecemos o canto IX e o canto X que têm muita crítica política aos poderes da época. São cantos menos estudados, mas são uma outra faceta de Camões muito importante.

Camões passou a vida inteira nas cadeias, embarcado, a combater… como é que ele conseguiu ter na cabeça  um compêndio de todo o saber da época... e sem Google! É de génio O ensino de ‘Os Lusíadas’ devia ser diferente?

A verdade é que hoje já ninguém os lê. Hoje lemos o que nos dizem da obra e há partes que foram completamente esquecidas. E este Camões político é uma nova maneira de olharmos para o poeta. Aliás eu penso que ‘Os Lusíadas’ só foram publicados por serem um livro político.

É por isso que diz que foi a Inquisição que salvou o livro?

Sim, não só pela beleza do que a obra descrevia, mas também porque numa determinada altura o que defendiam ‘Os Lusíadas’ interessou a alguém.

A quem?

Recordemos que o inquisidor-mor era o cardeal D. Henrique, que era filho de D. Manuel I e, portanto, era um homem que também defendia a glória de Portugal e numa determinada altura interessou-lhe que isso fosse realçado, sobretudo quando na nossa fragilidade económica e política estávamos a ser olhados por parte de Espanha - que acabou por nos avassalar após a batalha de Alcácer-Quibir e a morte de D. Sebastião.

A nobreza corrupta de outrora se calhar é a classe política corrupta de hoje. Os pecados são os mesmos, mas em contextos diferentes. E daqui a 100 anos estaremos a falar dos mesmos pecados noutros contextosA obra foi vista como um instrumento de apelo à glória que podia ser novamente alcançada?

Foi vista naquela altura como uma forma de fazer renascer novamente o orgulho-pátrio. Ou seja, alguém esteve interessado em apoiar ‘Os Lusíadas’ por ser um livro político. Mas uma das grandes mais-valias de ‘Os Lusíadas’, e que muitas vezes nos esquecemos, é que pela primeira vez foi escrito um livro com uma linguagem que podemos considerar o nosso português. Hoje olhamos para ‘Os Lusíadas’ e aquilo é um português arcaico, mas naquela altura era o português mais límpido que havia.

Límpido em que sentido?

Livre de latinismos e do castelhano que se usava muito na época. ‘Os Lusíadas’ aparece-nos já com uma linguagem muito solta, muito nossa. E depois há uma coisa que é fantástica: que os deuses façam grandes coisas é fácil; que os humanos com todos os seus defeitos e limitações consigam grande feitos isso é que é espetacular.

Camões foi uma pessoa espetacular?

Camões passou a vida inteira nas cadeias, embarcado, a combater… como é que ele conseguiu ter na cabeça a História de Portugal, a mitologia, todos os escritores clássicos, a geografia, a botânica… aquilo é um compêndio de todo o saber da época. E sem Google! Isto é de génio. Portanto, como eu disse, este livro não é para apoucar Luís de Camões, é para humanizá-lo e mostrar que, nas condições em que ele viveu, é fabuloso o que ele conseguiu alcançar.

Estamos a precisar de um novo D. Sebastião também. A verdade é que continuamos sempre à espera de uma voz que se erga contra o estado de sítio

Há pouco falou na nobreza corrupta. Podemos dizer que, hoje em dia, é a classe política corrupta?

O que acontece é que a História é feita por homens e os pecados da Humanidade são os mesmos, não mudaram. Continuamos a ter ganância, luxúria.... A nobreza corrupta de outrora se calhar é a classe política corrupta de hoje. Os pecados são os mesmos, mas em contextos diferentes. E daqui a 100 anos estaremos a falar dos mesmos pecados noutros contextos.

Não deveríamos aprender com os nossos erros?

Esse se calhar também é um dos pecados que se vai manter, é não aprender com os erros. Se lermos as grandes obras clássicas dos gregos vamos encontrar os mesmos pecados de hoje. Se lermos as peças do Shakespeare encontramos os mesmos pecados de hoje. O contexto muda, a linguagem muda, as vestimentas mudam, mas continuamos a ter exatamente os mesmos pecados. Os erros históricos são cíclicos, por isso é que estamos sempre a repetir as guerras.

Então não o surpreende cada vez que um político é investigado por corrupção?

Já não me surpreende, o que é triste, porque significa que já se banalizou. A corrupção vai existir sempre. Julgava é que hoje em dia tínhamos melhores formas de a combater e de a prevenir, mas provavelmente as entidades que deveriam fazer esse trabalho estão também elas minadas pelo vírus da corrupção. Mas a História sempre foi feita de momentos mais tristes em que apareceram pessoas que realmente lutaram contra a maré e fizeram grandes feitos. Temos de encontrar os heróis dos nossos dias.

Estamos a precisar de um novo Camões?

Estamos a precisar de um novo D. Sebastião também. A verdade é que continuamos sempre à espera de uma voz que se erga contra o estado de sítio.

Se escrevesse um romance passado no século XX quem seria a personagem principal?

É muito difícil dizer.

Já pensou nisso?

Não, ainda não. Mas há um tema do século XX que me fascina e que estou a estudar no meu doutoramento que é o terrorismo. Se escrevesse um romance sobre o século passado escreveria sobre o terrorismo e as falsas histórias à volta do terrorismo. Se calhar os terroristas não são quem nós pensamos.

E ia ser bem recebido se mostrasse o lado bom dos terroristas?

E se fosse o lado mau dos bons?! As coisas são para serem ditas.

Como vê atualmente a literatura portuguesa?

Creio que há excelentes escritores, há romances muitos bons, há romances que não são literatura, são entretenimento, mas esta variedade também enriquece a literatura portuguesa.

Como é que se distingue o entretenimento da literatura?

É muito difícil. Deixo a cada pessoa o seu critério.

Lê romances históricos?

Claro.

Tem algum autor preferido?

Não gostaria de citar nomes, porque são pessoas que conheço. Prefiro só dizer que gosto de ler romances históricos.

Quando lê os outros autores a sensação com que fica é positiva ou negativa?

Depende de quem se lê. Gosto quando acabo de ler um livro e fico com aquela sensação ‘gostaria de ter escrito este livro’, isso é para mim um livro bom.

Acontece muitas vezes com autores portugueses?

Já me aconteceu algumas vezes e gosto de dizer aos autores quando isso me acontece.

Consegue viver-se de literatura em Portugal?

Não, nem de perto. Haverá um ou dois que conseguem, apenas. Isto é uma paixão que nos absorve. Não escrevemos por dinheiro, certamente.

Porquê?

Primeiro porque o retorno para o autor é pequeno. Hoje em dia não se vendem muitos exemplares e os que se vendem são dispersos por vários escritores. Há dois ou três escritores que vendem em quantidade e poderiam viver da escrita, mas seriam poucos, o resto terá sempre de ter outra profissão.

Quanto ao próximo livro que está a escrever...

Não gosto de falar dos livros enquanto os estou a escrever. Posso dizer que também se passa no século XVI. Eu comprei o bilhete de ida, mas não o de volta [risos].

 

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