Chama-se Artur Bordalo, mas é mais conhecido pelo seu nome artístico: Bordalo II. A escolha deste nome artístico teve como objetivo homenagear o seu avô, Real Bordalo, pintor e artista plástico. A arte estava-lhe no sangue e Bordalo II trilhou o seu caminho.
A sua arte tem a particularidade de dar uma nova vida a objetos e materiais que a maioria das pessoas considera dispensável. Bordalo II recolhe peças, resíduos, 'lixo', como ele o define e transforma-o em arte.
Uma arte que pode ser observada em vários cantos e recantos de Portugal, mas também do mundo. O artista costuma retratar animais nas suas obras, uma forma de "dar voz àqueles que não a têm" porque como salienta o "‘bicho’ homem está sempre presente no meu trabalho, porque todo este material, todo este lixo é humano".
Não só Bordalo II transforma o lixo em arte, como torna a sua arte em ativismo ambiental, um alerta descarado ao impacto que o ser humano e o consumismo estão a ter no mundo. Nesta entrevista ao Notícias ao Minuto, que decorreu no seu atelier, o artista explica a sua opção pela utilização de resíduos e lixo no seu trabalho, aborda o seu processo criativo e fala sobre a sua preocupação ecológica e da importância de fazer pensar as gerações mais novas.
Quando é que percebeu que queria fazer este tipo de arte, recorrendo a materiais usados e com esta perspetiva ecológica versus consumismo? Foi um reflexo da sua forma de pensar?
Acho que havia um conjunto de coisas das minhas vivências que me encaminharam para isto. Isto não foi planeado, nem fazer arte, nem fazer arte com consciência, nem com a hipótese de alertar as pessoas. Foi um conjunto de coisas que acabaram por colidir na carreira que tenho hoje. Sempre tive contacto com o espaço público, com pintura na rua, grafitti, etc. E sempre tive interesse pelos animais, preocupação ecológica e ambiental.
Comecei a trabalhar com o ‘lixo’ num estúdio pequenino que tinha em minha casa e comecei a utilizar as minhas coisas que sobravam e que estavam por lá. Como era desarrumado, aquilo ficava por lá e um dia tinha de arrumar. Mas era mais fácil utilizá-las do que arrumá-las na verdade. Arrumá-las seria deitar fora, reaproveitar acabou por ser mais simples. Portanto comecei por utilizar o meu próprio lixo, a colar as coisas, a juntá-las, para construir uma base que seria pintada por cima. Um pouco como faço hoje, mas sem este objetivo na altura. Fazia interpretações de temáticas clássicas de Lisboa ou de outras cidades do mundo e não tinha entendido na altura o potencial que isso tinha em termos de consciencialização ambiental. Portanto, trabalhar com o lixo não me tinha surgido como uma coisa que poderia ter esse objetivo também. Isso surgiu depois. Primeiro a forma e o material e a ideia e o conceito depois. Um bocado ao contrário do que me disseram na escola que era suposto acontecer [risos]. Mas que não deixa de ser interessante por assim ser.
Pode explicar como é o processo para criar uma das suas obras. Como é que, por exemplo, escolhe os materiais que vai usar. Pode estar a andar na rua e ver algo a que pode dar nova vida através da sua arte?
Sim, isso acontece muitas vezes. Muitas vezes mesmo. É óbvio que para a produção de peças de grande dimensão não posso estar dependente das coisas que vou encontrando na rua, então temos de ter alguns contactos de sítios onde sabemos que há esse tipo de resíduos que me são úteis e vamos buscar grandes quantidades. Mas especialmente em relação às peças mais pequenas há muitas coisas que encontro na rua que meto no carro, debaixo do braço ou dentro da mochila e trago para o estúdio porque me vão ser úteis. São coisas que se ignorar naquele momento, um dia vou ter de ir à procura delas e isso seria um bocado parvo.
Acho que é interessante criar uma relação entre as vítimas da contaminação, da poluição e do lixo, por assim dizer, que é a natureza, somos nós também mas nós temos a tendência de achar que não somosTem de perceber que materiais fazem mais sentido em cada parte da escultura? Funciona um pouco como um puzzle? É algo que planeou antes ou isso vai acontecendo naturalmente?
Acho que o puzzle ou o lego é uma comparação que faz todo o sentido. Há coisas que são pensadas atempadamente. Há materiais que se calhar já tenho aí de lado para fazer uma peça que vai ser construída daqui a seis meses, daqui a um ano, ano e meio, mas que estão pensadas. Há muitos materiais que estão aqui no chão e que podem ser utilizados a qualquer momento. O material tem de estar ao dispor. É preciso haver bastante material para conseguir produzir. É impossível idealizar tudo aquilo que vai servir, mas tem de haver material. É como se fossem as tintas. É como ter uma paleta muito grande de cores. Em vez de serem cores é uma paleta muito grande de resíduos.
Tendo em conta que muitas das suas esculturas têm uma escala grande, quando começa o processo de criação já tem uma noção completa de como os materiais vão ser usados? Parece um processo complexo observando as suas obras.
É claro que para mim não é complicado porque é aquilo que gosto de fazer e estou habituado a fazer. Mas há várias fases de produção. É preciso recolher e ter o material ao dispor como já tinha dito. Antes de começar a fazer uma peça eu já sei o que vou fazer. Sei que alguns materiais vão encaixar de forma 'x' e outros têm de ser cortados, moldados, dobrados, aparafusados para serem torcidos até chegarem a uma forma que é a forma que se procura. E há sempre uma imagem de referência. Uma fotografia, uma página rasgada de um jornal ou de uma revista, algo tirado da internet. É um pouco assim.
Em 2017, quase 30 mil pessoas viram a exposição de Bordalo II 'Attero'© Team Bordalo
Porque é que escolhe representar na maioria das suas esculturas animais?
Para já, porque acho que o ‘bicho’ homem está sempre presente no meu trabalho, porque todo este material, todo este lixo é humano. Portanto, faz mais sentido dar voz àqueles que não a têm. E depois porque acho que é interessante criar uma relação entre as vítimas da contaminação, da poluição e do lixo, por assim dizer, que é a natureza, somos nós também mas nós temos a tendência de achar que não somos, e fazer os animais é uma forma bastante direta de representar a natureza.
Há pouco referiu que quando começou a fazer estas obras não tinha tido esta perspetiva do potencial da consciencialização ambiental, de um certo ativismo até.
Eu tinha a consciência, não tinha era entendido que havia potencial num trabalho artístico para fazer parte desse ativismo.
O trabalho não deve ser meramente estético ou superficial, deve ter alguma coisa a dizerE qual foi o momento em que percebeu que isso estava a acontecer com o seu trabalho?
É uma boa questão. Simplesmente aconteceu. Acho que qualquer artista gosta que o seu trabalho tenha algum significado. Pelo menos para mim é bastante importante que as pessoas olhem para o meu trabalho e que não digam apenas ‘Está muito bonito’. Ainda bem que as pessoas gostam, mas isso é insuficiente. Acho que o trabalho não deve ser meramente estético ou superficial, deve ter alguma coisa a dizer, e principalmente nos dias que correm, e com a hipótese que temos de comunicar com o mundo, é muito importante dizer coisas relevantes.
Toda essa preocupação ecológica e falar sobre coisas sustentáveis, falar sobre o mundo, a parte social também, era aquilo que era mais óbvio e que podia explorar alterando apenas algumas coisas. Por exemplo, inicialmente, nas minhas séries de trabalho mais pequenas, não nos trabalhos de rua, eu fazia interpretações de cidades feitas com o lixo. Mas achava que faltava alguma coisa. Faltava-lhe a vida, as personagens. E percebi que pode fazer-se uma paisagem com personagens que interagindo entre elas possam fazer uma crítica social, uma crítica ambiental, uma chamada de atenção, uma inversão de papéis. Portanto, foi um bocadinho por aí no início. Foi meter as personagens, neste caso os animais, na pele dos humanos, a fazerem os mesmos disparates que nós fazemos. Mas acho que às vezes é um bocado mais fácil nós identificarmos os nossos defeitos se estiverem na pele de outro.
Vivermos num mundo em que se gera muita riqueza mas no qual corremos o risco de deixar de haver mundo, no qual pode não haver uma casa para viver, é algo que não tem lógicaA cultura, a arte, nem sempre estão acessíveis a todas as pessoas. Não é o caso da sua arte, que pode ser vista em vários locais públicos de Lisboa, noutras cidades e noutros países. É uma forma de fazer chegar a arte a todos?
Acho que a arte no espaço público tem essa parte que está completamente ligada ao que tinha acabado de dizer, que é poder comunicar com a população e ter alguma coisa relevante a dizer. Não fazer apenas uma coisa bonita. Acho que quando se trabalha na rua a arte está tão acessível a tantas pessoas diferentes, a tantas gerações, pessoas ricas, pessoas pobres, pessoas de vários sítios e completamente diferentes, que fico com uma responsabilidade extra de ter algo a dizer.
Também quer confrontar-nos com o elevado impacto do consumismo atual no meio ambiente, no nosso planeta?
Eu acho que as problemáticas ambientais estão obviamente ligadas ao consumismo, ao capitalismo desenfreado, com a maneira como a economia se desenrola nos dias de hoje. Acho que estamos a seguir modelos económicos que olham para os números mas não estão a olhar para a sustentabilidade da nossa vida. Se ficarmos ricos e não tivermos saúde isso não nos serve de nada. Vivermos num mundo em que se gera muita riqueza mas no qual corremos o risco de deixar de haver mundo, no qual pode não haver uma casa para viver, é algo que não tem lógica. Há imensa coisa que tem de ser revista e eu espero com o meu trabalho fazer com que, especialmente os mais jovens, pensem sobre essas coisas e de fazer com que as pessoas reflitam.
Já percebi que tem uma preocupação muito grande em fazer chegar a sua arte às gerações mais novas. Estamos numa fase em que se verificam muitos movimentos estudantis que chamam a atenção e que pedem ações para enfrentar as alterações climáticas, movimentos esses simbolizados pela Greta Thunberg e que estão a ter um impacto diferente, que estão a ganhar força. Como é que está a acompanhar isso? Acha que é um momento decisivo?
Há aqui uma questão muito importante. Os mais novos, mesmo que agora sejam muito novos, são os que vão votar a seguir e acho que termos seres votantes com consciência abre-nos a porta para não haver gerações a votarem em personagens como o Trump ou o Bolsonaro. Ou seja, eu acredito que é a população que decide o que vai acontecer. As pessoas votam. Às vezes é complicado e as pessoas dizem que, seja qual for a pessoa na qual votam, é tudo a mesma coisa. Não é a mesma coisa. A componente de escolha que nos é dada deve ser usada. Acredito que os mais novos devem ser parte importante nisso para mudarem as coisas. Além de alterarem os seus comportamentos também e fazerem algo melhor do que as gerações anteriores. Isso é fundamental.
Podem desde muito cedo aprender com as suas obras? Pelos materiais que utiliza, transportarem isso para o seu quotidiano, de alguma forma.
Acho que sim. É simbólico mas tudo o que chama a atenção das pessoas, se as pessoas gostam de um trabalho, acho que mais facilmente vão refletir sobre isso do que sobre uma coisa que lhes é impingida, como a publicidade. Por isso é que acho que a arte no espaço público tem um papel relevante nos dias de hoje, porque nós somos bombardeados com publicidade, com tanta coisa. Por isso se virmos um anúncio sobre coisas às quais devemos ter atenção, se calhar não tem tanto impacto porque já vimos muitos anúncios. A arte acaba por ser uma coisa diferente. Pode ter mais potencial para chamar a atenção.
Há pessoas que me dizem que parece que isto da ecologia agora é uma moda. Que seja! Se tiver de ser uma moda para as pessoas tomarem consciência e mudarem os seus hábitosNesta questão das alterações climáticas, porque é que é tão difícil para as gerações mais velhas aprenderem com o exemplo das gerações mais novas? Parece que se esbarra sempre numa certa intransigência ou teimosia.
Os velhos do Restelo? Acho que o problema não são só os mais velhos, são os mais velhos no poder, que ainda estão muito ligados a lobbys e interesses económicos escrotos e mesquinhos com empresas em relação às quais têm coisas a ganhar. A questão é essa. O Trump é uma besta obviamente, mas o facto de ele negar coisas óbvias em relação às alterações climáticas não é apenas por ele ser velho. Acho que isto não tem nada a ver com a idade. Se calhar há pessoas com uma consciência ecológica e social fantástica desde sempre. Não é só uma questão de geração ou de idade. Tem a ver com o ramo ao qual as pessoas estão ligadas e se admitir que existe um problema em relação à poluição, por exemplo, se isso vai afetar o seu pequeno mundo, o seu pequeno emprego, os seus dinheirinhos, por assim dizer.
Os lobbys continuam a ser o obstáculo mais difícil de ultrapassar relativamente à questão das alterações climáticas?
São uma das questões mais difíceis. Mas acho que vão ser ultrapassadas. Não há outra hipótese.
Durante a campanha para as eleições europeias falou-se muito na questão das alterações climáticas e agora com as eleições legislativas a caminho já se nota que muitos partidos estão a dar mais ênfase a este tema de uma forma que antes não acontecia.
Agora todos falam porque tem de se falar. Se houver meia dúzia deles que falam, os outros vão atrás. Mas que seja. Às vezes há pessoas que me dizem que parece que isto da ecologia agora é uma moda. Que seja! Se tiver de ser uma moda para as pessoas tomarem consciência e mudarem os seus hábitos, mais vale que seja por ser uma moda do que não ser de todo.
A arte de Bordalo II quer dar que pensar às pessoas© Team Bordalo
A exposição ‘Attero’ em 2017 foi um sucesso enorme, com quase 30 mil visitantes. Esperava que suscitasse o interesse de tantas pessoas e quão importante foi o reconhecimento da sua arte?
Sinceramente, esforcei-me para fazer uma boa exposição. Queria que o público viesse, não esperava que tivesse tanto impacto. Fiquei muito contente por isso por vários motivos. Não só pelo motivo profissional, nem só pelo meu ego, de perceber que as pessoas gostam do meu trabalho, mas também por perceber o potencial que o meu trabalho pode ter, de ser um trabalho simbólico mas que fala de questões relevantes e que pode levar as pessoas a pensar.
Por exemplo, os mais novos, os pequeninos, eles não me compram peças. Eles não fazem parte da minha economia enquanto artista, mas para mim é fantástico perceber que os miúdos ficam parados a olhar para as peças, tentam entender, e que para eles é um trabalho que faz sentido. Se nós conseguimos comunicar assim com os mais novos com este tipo de trabalho e com estas questões relevantes, acho que temos uma oportunidade super importante de falar sobre o que realmente interessa e de não lhes estar a impingir as mesmas porcarias do que as marcas. Isso para mim é muito importante, sem dúvida.
Há algum sítio, alguma cidade, onde gostasse de ver a sua obra exposta, que tivesse mais significado para ti?
Não sei, nunca pensei nisso. Quero fazer coisas em todo o lado, acho não haja um sítio específico.
A arte permanece, perdura nem que seja na memória das pessoas. Como quer que a sua arte seja recordada, que perdure?
Nada dura para sempre. Apesar de haver aqui um ponto interessante, supostamente grande parte da arte pública feita nos dias de hoje não dura para sempre. O sol queima a tinta, a chuva leva, mas nós estamos a trabalhar com um material terrível. A maior parte das peças tem muito plástico e supostamente não desaparece assim. Por isso estou curioso para perceber o que vai acontecer às peças de rua, provavelmente não vão desaparecer tão cedo.
Que impacto quer que a sua obra tenha na vida das pessoas?
Quero que as faça pensar. Que não seja apenas fazer coisas bonitas com o lixo, mas que as pessoas possam olhar para as peças e entender que estamos a dar cabo do mundo com o estilo de vida que temos, e que está na altura de fazer coisas que mudem isso realmente, para quem quer ter filhos, netos. Para que eles possam continuar a ter um sítio para viver e para que não odeiem as gerações anteriores, e dizerem um dia que os seus pais, avós foram desleixados por interesses mesquinhos e deixaram o mundo chegar a um ponto sem retorno.
Vai continuar a utilizar estes materiais para fazer a sua parte?
Eu sou artista, não quero ficar preso a nada. Mas tenho imensas coisas que ainda quero explorar dentro destes mesmos materiais, diferentes séries de trabalho. Quero continuar a fazer coisas que possam comunicar com as pessoas.