"Acho que a música é um instrumento poderosíssimo para o ativismo"
Foi a partir de Luanda, em Angola, que Aline Frazão falou com o Notícias ao Minuto sobre o seu país, a ligação entre a música e o ativismo e o novo single 'Luz Foi'.
© Valentim de Carvalho
Cultura Aline Frazão
É com uma doçura poética na voz que Aline Frazão tem exigido transformações reais, para uma sociedade mais justa e equilibrada no mundo e na sua Angola. Tem sido uma voz ativa na luta pelos direitos humanos e não se coíbe de nos contar o que lhe vai na alma, mesmo que isso não agrade a todos.
Nasceu em Angola, viveu em Lisboa e há quatro anos decidiu voltar às raízes, tendo regressado a Luanda. Foi a partir de lá que falou com o Notícias ao Minuto sobre o estado do seu país, a ligação que faz entre a música e o ativismo e o seu novo single 'Luz Foi'.
O tema é lançado esta quarta-feira, 11 de novembro, o Dia Nacional de Angola, a propósito do 45.º aniversário da Independência.
Como descreveria a música que compõe?
O tipo de música que faço é autoral, muito ligada à palavra, às letras que escrevo, com influências da música tradicional angolana, da música brasileira, em grande parte e também do Jazz. Serão esses os três grandes pilares, cruzando com uma tradição de cantautora, com violão e com essa importância que tem a palavra e a poesia.
Já com 10 anos de carreira, que balanço é possível fazer do caminho até aqui?
É um balanço muito positivo. Lembro-me que quando começou o ano em 2020, fui fazer um concerto a Portugal, em janeiro, e de entrar em palco com um estado mental de: ‘Deixa-me ver se ainda gosto disto, se ainda faz sentido na minha vida, se desfruto realmente de cantar, de estar no palco’. Fiz esse exercício e no final saí com essa confirmação de que cantar é a coisa que mais prazer me dá fazer e ter a possibilidade de que isso seja a minha profissão, que funcione e que possa ter os meus meios de subsistência da música parece-me um imenso privilégio.
É muito bom poder tocar um instrumento, poder cantar, poder expressar e canalizar todas essas questões pessoais, humanas, que toda a gente tem, num espaço como a música é mesmo um privilégio muito grande.
Tem sido um ano de colocar as coisas em perspetiva, de reavaliar prioridades, de muitas reflexões, desafios, muita ansiedade (...) Há uma espécie de lição de humildade aprendida da pior formaDe que forma é que a pandemia a tem afetado profissionalmente?
No meu caso, já tinha planeado tirar alguns meses no início do ano, por isso quando começou já tinha planeado parar, já me tinha organizado para isso. Já previa que fosse um ano mais calmo para mim a nível de concertos e de viagens, mas houve alguns concertos cancelados e adiamentos. Pessoalmente não posso dizer que tenha tido um impacto mas ao mesmo tempo não posso deixar de ver o impacto que tem no setor em geral. É pura sorte que a mim não me tenha afetado. Se tivesse calhado num ano de lançamento de disco ou se estivesse a trabalhar num disco este ano teria sido bastante complicado, nem consigo imaginar.
O que é que se retira desta pandemia?
Acho que tem afetado todo o mundo, tem sido um ano de colocar as coisas em perspetiva, de reavaliar prioridades, de muitas reflexões, desafios, muita ansiedade. Provavelmente esses sentimentos são partilhados entre praticamente todo a gente no mundo. Mesmo estando em Angola, é uma coisa que sinto que me aproxima de amigos e familiares que estão noutras partes do mundo, porque é uma coisa coletiva - lidar com as dúvidas, com a incerteza, que são superiores à nossa vontade. Há uma espécie de lição de humildade aprendida da pior forma.
Às vezes tenho a sensação de que a cultura e os próprios trabalhadores da cultura têm uma certa aura especial, há um certo romantismo inerente e agora a pandemia põe as coisas muito assentes sobre a terraSente que no caso do setor da Cultura, a pandemia ajudou a criar soluções e novas formas de levar a arte às pessoas?
Devo admitir que tenho estado um pouco isolada, não tenho falado assim tanto com outros artistas e por isso também não tenho acompanhado tanto o que tem acontecido aí em Portugal. Mas acho que os artistas foram um pouco apanhados desprevenidos, a nível de uma compreensão de que aquilo que nós fazemos é um trabalho, é um trabalho como qualquer outro. Às vezes tenho a sensação de que a cultura e os próprios trabalhadores da cultura, de uma forma ampla, têm uma certa aura especial, há um certo romantismo inerente e agora a pandemia põe as coisas muito assentes sobre a terra. Acho que o setor foi apanhado desprevenido e para quem não olhou para a sua carreira de uma forma prática, tendo em conta o que são direitos, a Segurança Social, impostos, a importância do Estado Social, de acordo com o trabalho que faz, tem sido um pouco uma lição.
As histórias são mesmo muito importantes para os angolanos, a questão da oralidade, da vida social e familiar, há sempre muitas histórias a circular à nossa volta. É muito intenso e cómico e a literatura angolana reflete bem isso Fala por várias vezes do poder de atuar ao vivo, como é que tem contornado isso?
Não contornei de muitas formas, porque para mim as ‘lives’ são de uma artificialidade que não me convence e de que não gosto, não desfruto disso. Mas isso também tem a ver com a minha própria relação com as redes sociais e a tecnologia em geral. Sinto que a música, desde sempre, tem no seu centro a partilha de momentos especiais da vida, de pôr toda a gente numa sala cheia, pessoas que não se conhecem mas que estão unidas a ouvir a mesma música. Esse lado social é um lado fundamental para o nosso cérebro, para o nosso bem-estar.
Mas considera que a música e a arte tornaram-se basilares para combater o isolamento?
Não sei se as pessoas se deram conta disso, eu dei-me conta disso, mas para mim as ‘lives’ não substituem as atuações ao vivo. Não me consigo sentir preenchida com esse tipo de performance. O que a pandemia veio trazer em vários aspetos foi acelerar os processos, mas estamos a viver muito com os ecrãs e não sabemos as consequências que isso pode ter. Podemos ver concertos, teatro, programas de televisão, falamos com a nossa família, mas não é a mesma coisa. A corporalidade tem importância para o ser humano, para o nosso bem-estar, para as nossas vidas. Ao longo deste tempo essa tem sido a minha reflexão, que essa corporalidade nos concertos, por exemplo, é algo que prezo muito e que obviamente todos os artistas, e o público também, vão viver de uma forma diferente depois da pandemia.
Nunca tive muitas expetativas em relação ao presidente João Lourenço, então não me sinto defraudada, mas acho que há muita gente que se sente assim e que pensava que a mudança ia ser maiorSente que conta bem as histórias da sua Angola?
Não, por acaso não me considero uma boa contadora de histórias, porque faz-me comparar com outros contadores e contadoras de histórias angolanos que prezo muito, estimo muito e que admiro muito. Aqui em Angola, realmente, encontra-se muita gente excelente a contar histórias, há um talento nato.
Acho que a minha área é mais a poesia, é um outro campeonato, porque não uso tanto o ponto de vista narrativo. As histórias são mesmo muito importantes para os angolanos, a questão da oralidade, da vida social e familiar, há sempre muitas histórias a circular à nossa volta. É muito intenso e muito cómico e a literatura angolana reflete bem isso.
Tem sido, publicamente, uma ávida defensora do feminismo. De volta a Luanda, como tem visto a evolução da situação das mulheres?
Existem muitas mulheres angolanas, existem muitos grupos dentro desse grupo de mulheres angolanas, e há a tentação de querer generalizar e obviamente é possível fazê-lo em determinadas circunstâncias, mas noutras nem tanto. As mulheres em Angola estão sujeitas a uma opressão patriarcal, como todas as mulheres do mundo mas, no caso, há ainda outros tipos e sistemas de opressão como a questão da classe, da cor da pele, a questão da religião.
Desde que voltei para cá faço parte de um coletivo que se chama Ondjango Feminista e no fundo esta visão que tenho tem a ver com coisas que aprendi na troca de ideias com outras mulheres. Somos todas muito diferentes, mas dá para entender de que forma é que esses sistemas vão moldando as suas vidas. Acho que há mudanças a acontecer que são muito importantes, de mentalidade, conquistas importantes feitas, que têm a ver também com o contexto mundial. Aqui o que sinto é que às vezes medimos a força das mudanças pela força da resposta, pela reação por vezes até violenta. Mas considero que há um caminho muito promissor pela frente.
Acho que a música é um instrumento poderosíssimo para o ativismo. O ativismo vive bem sem a música, mas acho que quando a música se junta pode ser muito poderoso, a história confirma-nos isso Depois de José Eduardo dos Santos, esta Angola de João Lourenço está a ser tudo aquilo que prometia ser?
Na minha perspetiva está a ser tudo aquilo que prometia ser, nunca tive muitas expetativas em relação ao presidente João Lourenço, então não me sinto defraudada, mas acho que há muita gente que se sente assim e que pensava que a mudança ia ser maior. Houve uma mudança, ninguém nega, nem tão pouco o tamanho dela. Depois de quase 40 anos com um presidente termos uma cara nova, foi uma mudança muito grande e além da cara nova houve realmente mudanças ao nível da liberdade de expressão, de imprensa, que se notou muito nos primeiros tempos. A questão do combate à corrupção, também foi muito visível, apesar de por vezes parecer seletiva.
Mas mais recentemente, ao longo destes anos, fomos entendendo que o rumo que o presidente João Lourenço quer dar ao país é que beneficia muito pouco os angolanos do ponto de vista social, do ponto de vista das políticas públicas para melhorar as condições de vida das pessoas, para retirar as pessoas da pobreza, da exclusão social e sem um Estado que tenha vontade política para fazer isso, por mais medidas de incentivo ao empreendedorismo, de privatização, de endividamento que se tenham a nível macroeconómico, a sociedade não consegue acompanhar e por vezes poderá ser contraproducente e gerar mais desigualdade.
Para juntar a isso, neste momento também vemos uma resposta um pouco musculada demais às manifestações que houve no dia 24 de outubro. Há ainda uma manifestação marcada para hoje, quarta-feira, que foi proibida, mas deverá acontecer na mesma e onde também deverá acontecer violência policial. Ou seja, há uma espécie de déjà-vu quando olhamos para esta situação. Dia 24 detiveram mais de 100 pessoas, muitas delas não tinham nada a ver com a manifestação, numa coisa arbitrária, de uma violência desproporcional e isso traz-nos recordações de 2015 e do caso dos 15+2, de todo aquele aparato que se gerou em redor e que foi muito simbólico para o que é a democracia angolana, de facto.
Tem um novo single - ‘Luz Foi’ - lançado esta quarta-feira, no dia o Dia Nacional de Angola e que foi feito a propósito do 45.º aniversário da Independência, como uma reflexão sobre o país. Voltar a viver em Luanda motivou a necessidade de fazer esta canção ou já sentia que era devida há algum tempo?
Escrevi esta canção assim que voltei para cá, provavelmente em 2017 e nunca a lancei. Não cabia no meu álbum anterior, o ‘Dentro da Chuva’, porque era um álbum mais intimista e esta música com a sua natureza rítmica, ligada a sons aqui de Luanda, da rebita e da macemba, tinha de ter banda, mais ritmo, outra sonoridade. Quando se foi aproximando o 11 de Novembro pensei que fazia todo o sentido lança-la nesse momento. Quando a escrevi pensei que fosse ficar desatualizada, porque havia cada vez menos cortes de energia - ‘Luz Foi’ é a expressão que utilizamos quando há um corte de energia - e que qualquer dia a minha canção deixava de valer. Mas há uns dias estava a dar uma entrevista e fiquei sem energia em casa [risos]. Fez-me muita graça pensar que ainda acreditei que a canção ia ficar desatualizada. É uma canção que tem esse tom muito prático, muito do dia a dia, do que é a vivência de Luanda e fiz questão de organizar as coisas para que saísse nesse dia.
Houve vezes em senti que precisava de fazer mais canções políticas e outras em que senti que já não aguentava mais o tema e que precisava de falar sobre outras coisas. São várias fases Considera que a música é um instrumento essencial ao ativismo?
Por vezes, num contexto de tanta tensão, como atualmente, com a questão das manifestações, de que falava antes, tenho uma certa esperança que a música seja uma forma de protesto que não pode ser impedida pela polícia, que não pode resultar em violência e que ao mesmo tempo tenha algum efeito de união, dessa ideia de que gostaríamos que Angola fosse diferente e de que temos o direito de dizer isso, temos o direito de cantar isso e de nos manifestarmos por causa disso. Acho que a música é um instrumento poderosíssimo para o ativismo. O ativismo vive bem sem a música, mas acho que quando a música se junta pode ser muito poderoso, a história confirma-nos isso.
Sempre quis que assim fosse para si ou tratou-se de uma questão de necessidade?
No meu caso, talvez se não fosse angolana não sentisse tanta necessidade de o fazer, mas também sou assim, sou uma pessoa política. O meu trabalho acaba por refletir aquilo que penso, as minhas escolhas, os meus valores, por ter tido uma educação que sempre me ensinou a olhar para além da minha janela. Obviamente que depois há vezes em que não reflete de todo, em que canto sobre solidão, amor, desamor, tristeza, a saudade, coisas que não têm porquê de ter um cunho politizado. Houve vezes em senti que precisava de fazer mais canções políticas e outras em que senti que já não aguentava mais o tema e que precisava de falar sobre outras coisas. São várias fases.
A ideia para o próximo disco é que seja mais feito em casa, no que é mais familiar, com conforto e vamos ver onde leva Este é o segundo lançamento que faz em 2020. Ainda este ano assinou a banda sonora original de ‘Ar Condicionado’, a primeira longa-metragem de ficção, realizada por Fradique, sobre a Luanda pós-guerra civil. Como foi essa experiência?
Foi maravilhosa! Foi divertidíssima! Nunca tinha feito nada do género e quando aceitei tinha diante de mim um imenso vazio. Mas que não era bem vazio porque, na verdade, já tinha alguns livros sobre bandas sonoras que tinha comprado há uns anos e foram esses livros que me deram uma primeira grelha de trabalho para me organizar. Depois de ter organizado uma estrutura e de perceber como me ia relacionar com o guião do filme, tive de perceber onde ia entrar a música, onde era o silêncio, que instrumentos faziam sentido. Mas foi um processo delicioso e só de falar disso fico muito contente e o que me faz também ficar contente foi não ter entrado num bloqueio de ansiedade por nunca ter feito. Chegou a um momento em que me deixei levar pela minha intuição musical, aceitei que se tratava de música e de música eu entendo um bocado [risos]. A partir daí foi preciso encontrar a música para as personagens e saber comunicar com o Fradique, saber entender a respiração e o ritmo do filme.
Para quando é que os fãs podem esperar um novo disco?
A ideia é gravar no primeiro quadrimestre de 2021. Este vai ser gravado em Lisboa [os dois anteriores foram gravados na Escócia e no Rio de Janeiro], até porque a minha banda está aí. Vou gravar com uma equipa muito familiar, que já trabalha comigo há algum tempo e a ideia para este disco é que seja mais feito em casa, no que é mais familiar, com conforto e vamos ver onde leva. Pode ser esperado para meados do próximo ano.
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