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'Top Girl' e 'Distante' inauguram Ciclo Caryl Churchill no Dona Maria II

Os espetáculos "Top Girls" e "Distante" estreiam-se hoje no Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa, integrados no Ciclo Caryl Churchill, que é também uma homenagem à encenadora Fernanda Lapa, que morreu no ano passado.

'Top Girl' e 'Distante' inauguram Ciclo Caryl Churchill no Dona Maria II
Notícias ao Minuto

18:55 - 20/05/21 por Lusa

Cultura Teatro

Encenado por Cristina Carvalhal, "Top Girls" vai estar em cena até ao dia 05 de junho, na Sala Garrett, e "resgata ao silêncio a voz de um grupo de mulheres notáveis que a História raramente refere", com as atrizes Alice Azevedo, Beatriz Brás, Jani Zhao, Nádia Yracema, Sandra Faleiro, Sara Carinhas e Sílvia Filipe, a darem corpo a dezasseis personagens.

Cristina Carvalhal conta que releu esta peça -- que já tinha feito como atriz sob direção da Fernanda Lapa --, e achou que resistia completamente ao tempo, sendo dos anos 1980, mas "pertinente nos temas que aborda, como a desigualdade de género nas diversas áreas da sociedade e os efeitos perniciosos de um capitalismo selvagem".

"No fundo, a peça segue a história de uma mulher que ascende ao topo de uma empresa e do que ela abdicou para chegar aí, mas também do seu comportamento, o que foi obrigada a fazer para conseguir lá chegar", disse, em entrevista à Lusa.

A narrativa é "muito fragmentada", constituindo-se como uma "espécie de fantasia em que aprece para o jantar de comemoração da promoção da protagonista, na empresa, uma série de mulheres que são uma espécie de linhagem desta mulher", acrescentou.

Sentadas à mesma mesa, para jantar, encontram-se: a Papisa Joana (séc. IX), que chefiou a igreja católica disfarçada de homem; Isabella Bird (séc. XIX), viajante, investigadora, fotógrafa e escritora; Gret, pintada por Brueghel, o Velho, que, liderando um exército de mulheres, enfrenta os demónios no inferno; Nijo (séc. XIII), dama japonesa educada na corte para ser concubina do Imperador; e a paciente Griselda, personagem do conto X do Decameron de Boccaccio.

"Todas estas mulheres têm uma história de imperialismo e colonialismo, de uma sociedade patriarcal hierarquizada e que elas tiveram de ultrapassar para conseguirem existir. São mulheres que não conhecemos, porque a História é sempre escrita por metade da humanidade e Caryl Churchill traz esta outra metade da humanidade à cena e dá-lhes voz", explicou.

Cristina Carvalhal destaca que esta peça é uma homenagem a Fernanda Lapa, "uma mulher extraordinária", que fez muito Caryl Churchill, e que "lutou pela representatividade das mulheres nas artes performativas, entre muitas outras coisas".

"Foi uma mulher muito importante para mim, no meu percurso enquanto atriz e depois como encenadora. Eu tive a oportunidade de chegar a dizer que ia voltar a fazer esta peça e tenho mesmo pena que ela não esteja entre nós", afirmou.

Teresa Coutinho, a criadora de "Distante", a partir do texto de Caryl Churchill, tem a mesma perspetiva, apesar de não ter trabalhado tanto e não ser tão próxima de Fernanda Lapa, quanto Cristina Carvalhal.

No entanto, considera que faz sentido dedicar-lhe o espetáculo, porque Fernanda Lapa gostava muito de Caryl Churchill e foi das poucas pessoas a levar esta dramaturga à cena.

"Também porque Caryl Churchill representa uma série de valores, que punha nos seus textos - defesa do livre-arbítrio, do pensamento independente, da liberdade -, e o facto de ser uma dramaturga mulher. Tudo isso tem a ver com a Fernanda, que foi uma mulher à frente do seu tempo, em muitos aspetos, que criou uma companhia para pôr mulheres a trabalhar, o que naquela altura foi muito importante".

Ao contrário de Cristina Carvalhal, Teresa Coutinho não conhecia o texto "Distante" e conta que, quando o leu, lhe causou "forte impressão", porque é uma "peça que tem muito a ver com pressões que atualmente nos são muito próximas: o medo, a relação entre o poder e o indivíduo, um poder maior que nos controla, como gerimos o livro arbítrio, o terreno familiar e o que nele se pode inscrever de malévolo".

"Apesar de estarmos a falar de relações familiares, há muito manipulação a acontecer e há uma pessoa que é corrompida por um ente querido, que a obriga a compactuar com uma coisa terrível", exemplifica a encenadora, em conversa com a Lusa.

O espetáculo é montado em três quadros e, em cada um deles, o público tem acesso a uma situação específica.

No primeiro quadro há uma tia e uma sobrinha, e a sobrinha vê o tio "fazer uma coisa terrível", que vai descrevendo a tia, que por usa vez convence a sobrinha de que "viu mal" até não ter outra hipótese senão admitir que é verdade, mas que vai sendo dizendo que viu mal até admitir que é uma coisa secreta e um motivo de orgulho, "porque está a compactuar com pessoas que estão a endireitar as coisas".

O que é descrito pelas crianças é o tio a espancar pessoas e a pô-las em camiões e barracões, e quem vê questiona-se "o que será aquilo, que sistema será aquele em marcha".

"Mas é muito interessante, porque a Caryl Churchill faz muitas perguntas, mas não nos dá essas respostas. Aquele é o primeiro momento em que percebemos como se corrompem indivíduos", explica.

Depois há mais dois quadros que apresentam as questões da manipulação, do medo, de compactuar, de fechar os olhos a opressores, e que vão aumentando estas questões, até ao quadro final, que apresenta "um mudo apocalíptico, em que a própria natureza tem uma orientação política", mas em que tudo é dito "por duas pessoas que estão fechadas numa casa, e podemos perguntar-nos se é verdade ou se estarão numa histeria coletiva em se têm tanto medo, que até os animais representam uma ameaça".

"São discursos que conhecemos de generalizações, de atribuição a grupos, de características generalizadas e que estigmatizam esses grupos", e todas essas questões e reflexões são lançadas sem apresentar respostas, intenção que Teresa Coutinho respeitou e manteve.

"A Caryl Churchill é muito económica não nos dá muitos pontos de apoio, por isso também é muito interessante, porque dá uma liberdade criativa muito grande a quem quiser pegar no texto e levá-lo à cena", defendeu.

Foi isso que fez, ao acrescentar uma "espécie de ambiente e alguns elementos" com uma "ligação forte com a nossa realidade de hoje".

"Há um trabalho de sonoplastia, por exemplo, que tem muito a ver com este excesso de informação, com os telejornais que nos entram pelos olhos todos os dias, com as 'apps' dos telemóveis. Há uma massa sonora que é evocada diversas vezes no espetáculo, que tem a ver com este excesso de informação que nos chega e que nós digeriremos muito rapidamente, fazemos juízos de valor muito rapidamente sobre uma série de coisas, não as sabemos a fundo, e muito rapidamente estamos a pôr-nos de um lado ou de outro das coisas", revelou, adiantando que trabalhou vários outros elementos em vídeo e sonoplastia, "que enraízam o presente, mas não trazem respostas".

Além de não dar respostas, Teresa Coutinho quis "reforçar o questionamento e um certo desconforto", criando "um espaço de arena e um fora de arena onde os atores estão: quando vão fazer estes quadros da Caryl Churchill, estas parábolas, vão para a arena e os que não estão a fazê-las, estão de fora a ver o público".

"Ou seja, não há só uma relação unívoca do espectador a olhar para o espetáculo, mas há também o espetáculo a olhar para o espectador, quase como se estivesse a perguntar: o que é que vocês pensam disto?".

A peça "Distante", que vai estar na Sala Estúdio até 06 de junho, conta com as interpretações de Inês Dias, Inês Vaz, Nuno Pinheiro, Tânia Alves e Maria João Vaz, bem como Tanya Ruivo (em vídeo).

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