O derradeiro livro, "Existência", surgido em 2018, que lhe deu, mais uma vez, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE), traduz "uma poderosa reflexão sobre a vida, a memória, o envelhecimento e o espectro da morte", como escreve a editora Assírio & Alvim, na apresentação da obra.
A definição pode estender-se ao seu percurso literário de 60 anos, um dos mais premiados da literatura portuguesa, e à "poesia marcada por forte intensificação do valor da palavra e grande precisão formal", em que "a morte e o corpo", duas das metáforas mais usadas por Gastão Cruz, correspondem afinal "a significados tão diferentes quanto a esperança, o desespero, o amor e o sexo, o caos, o próprio País, a opressão ou a fugacidade", como se lê na página dedicada ao poeta, no Centro de Documentação de Autores Portugueses (CDAP), da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
"Por medo da insónia adio o sono, nas noites em que com um golpe frio, a memória levanta a onda morta do irrecuperável", escreveu no último livro, para concluir que não era o sono de que temia a falta, nem do "sonho feroz nele contido", antes "a história do corpo", "percutindo na fundura impiedosa do vazio".
Gastão Santana Franco da Cruz nasceu em 20 de julho de 1941, no número 20 da Rua de Portugal, em Faro, como se lê na página dedicada ao autor, no 'site' da DGLAB.
Publicou o primeiro livro, "A Morte Percutiva", com perto de 20 anos, e voltaria ao local do começo, em 2002, quatro décadas mais tarde e cerca de vinte livros de poesia depois, numa revisitação da infância e da entretanto desaparecida casa onde nascera, na obra "Rua de Portugal", também distinguida com o Grande Prémio de Poesia da APE e o Grande Prémio de Literatura dst.
"A poesia acompanha-o desde muito novo", recorda a biografia da DGLAB. "O pai recitava, em casa ouvia-se ópera, e o lirismo foi despontando, levando-o a iniciar-se muito cedo na crítica de poesia".
Escreveu para os Cadernos do Meio-Dia, publicados em Faro, sob a direção de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito, lançados em 1958 e que a ditadura havia de encerrar dois anos mais tarde.
O ano de 1958 é aquele em que Gastão Cruz chega a Lisboa, para fazer o curso de Filologia Germânica na Faculdade de Letras, onde teve David Mourão-Ferreira por professor.
Iniciou colaboração com diversos jornais e revistas, escrevendo poemas e crítica literária, como no jornal Grafia, da Pró-Associação de Letras.
Abria então caminho à edição das históricas cinco 'plaquettes' - ou fascículos - que constituíram a "Poesia 61", onde se reuniu a Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta.
"Poesia 61" afirmou-se como "uma das principais contribuições para a renovação da linguagem poética portuguesa na década de 1960", como se lê na DGLAB e nos textos académicos que abordam a sua publicação. Para o poeta foi, porém, "em grande parte, uma reunião de conveniência editorial".
"Não queríamos [na Poesia 61] verdadeiramente fazer uma rutura com a poesia do passado. Naturalmente que nos distanciávamos de alguma poesia que nos parecia mais convencional ou menos viva. Particularmente, uma certa segunda linha nos anos 1950 ou uma poesia com características mais ligadas à Presença, que realmente nos parecia menos estimulante do que a de outros poetas como Sophia [de Mello Breyner Andresen], Eugénio [de Andrade], Carlos de Oliveira", disse Gastão Cruz, numa entrevista à RTP, em 2003.
"O que nós admirávamos nesses poetas era uma certa revalorização do poder da palavra", afirmou.
É aliás nesses poetas - assim como em António Ramos Rosa, que conheceu em Faro (e a quem chegou a pedir um autógrafo) - que reconhece as suas principais influências, como disse na mesma entrevista, sem esquecer Camões, adotando mesmo formas clássicas, como o soneto e a canção, na mais contemporânea das expressões.
Na universidade, não hesitou perante as greves académicas, da crise de 1962, nem perante a prisão da ditadura.
Foi um dos organizadores da "Antologia de Poesia Universitária", em 1964, que deu a conhecer autores como Manuel Alegre, Eduardo Prado Coelho, António Torrado, José Carlos Vasconcelos, Luísa Ducla Soares e Boaventura Sousa Santos, entre muitos outros.
"Este importante papel de Gastão Cruz na divulgação, promoção e crítica da poesia e da literatura em geral, bem como do teatro e da música", prolongou-se ao longo de toda a sua vida, recorda a página da DGLAB, enumerando os seus textos na imprensa (muitos deles reunidos no livro "A Poesia Portuguesa Hoje"), a organização de antologias, a direção de recitais, desde a universidade, até ao trabalho na Fundação Luís Miguel Nava, que dirigiu, assim como a revista Relâmpago, por ela editada.
A paixão pelo teatro nasceu da proximidade com a escritora Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), com quem foi casado.
No início da década de 1970, estiveram ambos na génese do Grupo Teatro Hoje, companhia que dirigiu desde 1991 até à extinção, em 1994.
Traduziu e dirigiu para cena, levou a palco autores como Fernand Crommelynck, August Strindberg, Albert Camus, Anton Tchekhov, e até mesmo a sua adaptação do romance de Carlos de Oliveira "Uma Abelha na Chuva".
Para Gastão Cruz, só valia "a pena traduzir poesia, se da tradução [resultasse] um poema português de um poeta português". Assim abordou "As Doze Canções de William Blake", que também fazem parte da sua bibliografia poética, e assim transpôs também Jean Cocteau, Jude Stéfan e William Shakespeare, entre outros autores.
O ensino esteve sempre presente no seu caminho. Foi professor do Ensino Secundário desde 1963, Leitor de Português no King's College da Universidade de Londres, de 1980 a 1986. Aqui lecionou igualmente cadeiras de Poesia, Drama e Literatura Portuguesa.
Em 1972, quando teve de falar da sua própria poesia, não hesitou em dizer: "Chama-se 'Escassez' um grupo de quinze poemas que publiquei em 1967. Poderia ser esse o título de toda a minha poesia, que é antiexplicativa, antidescritiva", numa resposta à crítica literária, que lhe apontava um certo hermetismo.
A mesma preocupação levou-o, anos mais tarde, a reconhecer ter "caminhado no sentido de tornar [a sua] poesia mais legível, pela necessidade de [se] libertar" dessa classificação de autor "hermético ou difícil".
Foi, no entanto, um dos mais premiados da literatura portuguesa.
Recebeu o Prémio P.E.N. três vezes, em 1985 ("O Pianista"), 2007 ("A Moeda do Tempo") e em 2014 ("Fogo"), além do Prémio D. Diniz, em 2001 ("Crateras").
Em 2009, foi distinguido com o Prémio Literário Correntes d'Escritas.
O Grande Prémio de Poesia da APE foi-lhe atribuído em 2002, pela primeira vez, e novamente em 2019, pela obra derradeira, "Existência".
A Fundação Inês de Castro atribuiu-lhe o Prémio Tributo de Consagração, em 2013.
Em 2018, recebeu também a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura.
A tradução de "Troco a Minha Vida por Candeeiros Velhos", do colombiano León de Greiff, valeu-lhe o Prémio da Casa da América Latina, em 2015.
A carreira enquanto ensaísta ficou marcada pela publicação de "A Poesia Portuguesa Hoje", em 1973, que atualizou seis anos mais tarde e que, de algum modo, teve continuidade em "A Vida da Poesia -- textos críticos reunidos", em 2008.
Na sua obra destacam-se títulos como "Doença" (1963), "As Aves" (1969), "Teoria da Fala" (1972), "Campânula" (1978), "Órgão de Luzes" (1990), "As Leis do Caos" (1990), "Transe" (1992), "As Pedras Negras" (1995), "Repercussão" (2004), "A Moeda do Tempo" (2006), "Escarpas" (2010), "Observação do Verão" (2011), "Fogo" (2013), "Óxido" (2015).
Fez quatro recolhas de toda a poesia (1974, 1983, 1990/1992, 1999), que acabam por corresponder a fases temáticas da obra, como destaca a biografia do autor, na DGLAB.
A sua poesia, lê-se nessa página, "é marcada por forte intensificação do valor da palavra e grande precisão formal, mas sempre num registo extremamente contido, nítido e rigoroso".
Para Gastão Cruz, como diversas vezes afirmou, a questão estava na "procura do peso certo para cada palavra".
"Um verso é uma zona proibida", escreveu no poema selecionado para a "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa", organizada por E.M. de Mello e Castro e Maria Alberta Menéres, em 1971.
Cerca de 40 anos mais tarde, em "Crateras", a zona inundava-se de "Árvores": "plátanos palmeiras castanheiros jacarandás amendoeiras e até as oliveiras que quando a noite cai na infância formam uma cortina escura na estrada frente à casa, árvores apagando os dias que a memória avidamente esconde".
Leia Também: Governo lamenta "profundamente" morte do poeta Gastão Cruz