O regresso aos festivais de verão fez-se pela voz de Pedro Mafama. O cantor português, nascido e criado nos bairros típicos da cidade de Lisboa, abriu o palco principal do NOS Primavera Sound, no passado dia 9 de junho.
Mafama apresentou o seu último álbum e a sua música inspirada nas tradições de Portugal - não só as portuguesas, mas todas aquelas que ajudaram a construir a identidade cultural do país.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, já depois do concerto no palco do Primavera Sound - o mesmo que acolheu, nesse mesmo dia, Nick Cave e Tame Impala -, o artista elogiou a nova geração de músicos jovens, que procuram "revisitar" as tradições locais e modernizarem-nas num espaço global.
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Comecei a querer perceber melhor e a ficar fascinado pela multiculturalidade que tem o nosso país
Acabou de abrir o palco principal, no primeiro concerto num festival de verão pós-pandemia. Como é que correu o concerto e o que achou deste regresso?
Há três anos, estava aqui a assistir ao festival, neste mesmo relvado, a coisas que admiro muito, por isso foi incrível estar do lado de cá e num festival que eu admiro imenso. Correu muito bem o concerto! E acho que as pessoas estavam com a energia certa para o festival.
Trouxe cá o último álbum, 'Por Este Rio Abaixo', que faz agora um ano em junho. Que balanço faz ao álbum, sendo que, apesar de já ter saído em 2021, a apresentação acabou por ser muito condicionada pela pandemia?
Foi uma descoberta. Foi um álbum que eu fiz sem grande perspetiva de tocá-lo ao vivo: naquela altura era uma grande incerteza, e, de repente, quando começam a abrir as coisas, passei um ano todo a tocar pelo país fora. Não só em Lisboa, de onde eu sou e a cidade que me inspira, mas também com todas as outras inspirações que eu tenho de Portugal inteiro em termos musicais, de norte a sul, e foi incrível tocá-lo em outras partes do país. Toquei algumas vezes em Espanha também, portanto foi um ano muito surpreendente.
Mencionou aí as suas influências. O site NiT descreveu-o como "bairrista, português e do mundo" e disse que a sua música "tanto pode ser folclórica como fado, africana ou árabe". De onde veio esta ideia de querer aproveitar a infância por Lisboa, pelos bairros, e transpô-la para este tipo de música?
Foi exatamente isso, de crescer em Lisboa e em Portugal, num sítio que eu comecei a querer perceber melhor e comecei a ficar fascinado pela multiculturalidade que tem o nosso país. Tu vais às tradições das adufeiras de Castelo Branco e tu vês as melodias árabes lá. A nossa cultura está cheia de uma antiga mestiçagem, que se relacionou com a minha vivência da Lisboa atual, da Lisboa multicultural de agora.
O que eu quis fazer foi uma ponte entre a Lisboa multicultural na qual eu cresci, e a tradição musical do meu país, que eu também vejo como multicultural.
Pensando em artistas que aproveitam as influências da música tradicional dos locais de onde são, para criar música mais modernas - como os casos de Conan Osíris, David Bruno, entre outros -, sente que há cada vez mais essa tendência de explorar essa construção cultural?
Sem dúvida. Na música portuguesa e não só. Em todo o sul da Europa, e no mundo, está a acontecer esta coisa de revisitar a tradição e de perceber como é que cada local se relaciona no global. Eu acho que é uma pergunta que muita gente está a fazer: há uma geração inteira que cresceu com a globalização, com a música norte-americana e de todo mundo e, a certa altura, estávamos todos fascinados com a música anglo-saxónica, e muita gente ao mesmo tempo percebeu que tinha de se encontrar.
A minha proposta é um ponto de interrogação: estou aqui a tentar perceber o que é que é isto de nascer em Portugal, na Península Ibérica, o que é isto de ser daqui. E relaciono-o com o mundo, ou seja, eu não tento fazer uma coisa fechada, a dizer que 'a música portuguesa é a melhor música do mundo'. Não, eu tento dizer que a música e a tradição portuguesas se relacionam com a música do mundo. É um conjunto de pontes, e não de muros.
É muito importante num cenário global haver um bocadinho esta libertação do domínio anglo-saxónico
E em termos de representatividade? Falamos disto, do processo criativo e do que isso representa para os artistas, mas para as pessoas, qual é a importância do seu tipo de música para essas culturas - neste caso específico, na zona de Lisboa?
A música portuguesa também não é só portuguesa, e tem herança em vários sítios que se calhar as pessoas não sabem - o fado tem provavelmente origens africanas, a nossa tradição está cheia de influências árabes. E a minha proposta relaciona o meu sítio com toda a gente: não é algo para dizer que a música é 'nossa, para nós'; isto é música que eu suponho que seja da minha cultura, mas que quero que seja de todas as culturas.
Acho que, numa outra perspetiva, é muito importante num cenário global haver um bocadinho esta libertação do domínio anglo-saxónico. Sinto que estou um bocadinho a lutar para chegar a um cenário global e devolver ao mundo uma música que já não é só anglo-saxónica, que já não é só hip-hop, que já não é só os géneros que nós crescemos a ouvir.
Pedro Mafama abriu o palco principal no Primavera Sound no Porto© Hugo Lima
Tento desbloquear novos géneros, misturando estes ritmos folclóricos com as sonoridades, os 'auto-tunes' árabes, com o trap, com a música pop global, e estou a tentar criar uma coisa nova. Não estou a tentar salvar a nossa tradição, estou a querer atualizá-la.
As suas futuras ideias e projetos estarão sempre dentro deste âmbito?
Não sei. Por agora, este é o meu foco de interesse. Mas lá está, a minha missão aqui não é salvar a música portuguesa, não se trata disso, trata-se de responder a uma coisa que eu, como jovem que cresceu num mundo globalizado, sinto que é urgente devolver este lado local à cultural global.
Se calhar, daqui a três anos, isso vai estar feito e aí parto para outra coisa. E espero que, durante a minha carreira toda, esteja sempre a partir para outra coisa porque não sou uma pessoa que se fixe. Não é uma defesa da música nacional, é uma pergunta: o que é que é a música nacional neste momento? E como é que ela se relaciona com a música popular portuguesa e do mundo?
Falamos no início de atuar neste palco. Sendo um fã confesso do festival, o que saltou à vista neste cartaz?
O que me tem saltado à vista nestes festivais é que os novos músicos portugueses, e a nova música feita em Portugal, são tão entusiasmantes como a de fora. Acho que isso é uma coisa incrível, que se calhar há cinco anos, como fã, não sentia.
Há muitos nomes. Prefiro não dizer nomes, prefiro dizer que acho fascinante que haja música feita em Portugal que rivaliza hoje em dia, que é tão entusiasmante e tão nova, como a música global.
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