Gulbahar esteve num campo de reeducação na China. Esta é a sua história
Quando Gulbahar Haitiwaji voltou a Xinjiang, China, em novembro de 2016, após uma década em França, mal podia imaginar o pesadelo que estava prestes a começar.
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Cultura Uigures
Novembro de 2016. Gulbahar Haitiwaji vivia há mais de uma década em França com a família. Tinham 'fugido' de Xinjiang na China.
O marido, Kerim, cansado de ser tratado de forma diferenciada por ser uigur (minoria muçulmana) saiu do país para procurar trabalho e arrastou a família para a Europa, onde pediram - todos menos Gulbahar - o estatuto de refugiados políticos. A filha tinha acabado de casar numa cerimónia cheia de amigos em França. De repente, o telefone toca.
Gulbahar acabava de ser convocada pelo governo chinês para resolver uma questão administrativa sobre a reforma - estava há 10 anos no estrangeiro com uma licença sem vencimento. Ainda tentou que uma amiga na China resolvesse o tema por si, mas não foi possível. A voz do outro lado disse tinha mesmo de se deslocar lá em pessoa.
Poucos dias depois de chegar a Xinjiang foi detida.
Gulbahar só seria libertada em agosto de 2019, depois de o governo francês intervir em seu nome. Durante 3 anos sofreu vários tipos de tortura. Esteve detida e num campo de reeducação. Porquê? O governo chinês dizia que a filha e o marido eram terroristas, mas Gulhubar acredita que foi vítima de maus-tratos como forma de vingança. Em 2012 e 2014, o governo chinês quis que o marido, que tem nacionalidade francesa, lhes desse informações sobre a comunidade uigur em França. Kerim recusou-se sempre.
A história de Gulbahar e como a sua família nunca desistiu da sua libertação é contada no livro 'Sobrevivi ao Gulag chinês'.
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O Notícias ao Minuto entrevistou a autora, Rozenn Morgat, e a filha de Gulbahar- Gulhumar.
Gulhumar tinha apenas 24 anos quando a mãe foi detido na China. Tinha acabado de casar e a última coisa que imaginava que ia acontecer era perder o rasto à mãe durante 3 anos. Três anos de incertezas, mágoa, e muita luta política para trazer à luz do dia a questão uigur.
"Tudo aconteceu tão depressa, entre a chamada da companhia, a sua decisão de lá ir e a reserva do voo. Quando a minha mãe estava a sair de casa, ela disse 'espero não desaparecer como aquele avião malásio' e isso fez-me sentir tão mal de repente, que nos rimos, mas eu senti-me mal. Talvez tenha sido uma premonição do que ia acontecer", conta ao Notícias ao Minuto.
Logo após a primeira chamada da mãe, em que esta relatou que lhe tinha sido confiscado o seu passaporte, começou o cavário de Gulhumar. "Ela disse-me que a polícia lhe mostrou uma fotografia minha numa manifestação [uigur] e considerámos a seriedade da situação. Contatámos a embaixada francesa em Pequim, com quem mantive contato durante quase 2 anos".
No verão de 2018, encontrou-se com o pessoal do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Paris. Para fazer face à "lentidão dos intercâmbios diplomáticos e ausência de reação por parte da China", lançou uma petição no Change.org, começando assim uma batalha mediática em outubro de 2018.
A cara de Gulhumar passou a aparecer em noticiários franceses, pedindo a libertação imediata da mãe e alertando o mundo para a questão uigur.
Na China, Gulhubar imaginava que a família estaria a lutar por ela, mas mantinha-se detida sem acesso a qualquer tipo de informação.
Gulbahar sofria em Xinjiang e a família angustiava em França sem notícias dela. "Vi o meu pai a perder tanto peso, e a ganhar ainda mais logo a seguir. Ele estava a esforçar-se por esconder a sua depressão, mas o seu corpo não conseguia", relata-nos Gulhumar. A irmã mais nova, por sua vez, "optou por viver a sua dor em silêncio".
"Falámos sobre a situação da mãe e o que fazer, quem contactar, etc., mas nunca falámos dos nossos sentimentos uns aos outros", conta a filha, dizendo que por vezes se convenceu de que a mãe tinha mesmo morrido.
A chegada a França e a decisão de contar a verdade ao mundo
As últimas semanas de detenção na China pouco se assemelham a isso mesmo. Gulbahar foi tendo cada vez mais liberdade, numa vivência que contrastava com os dias acorrentada obrigada a entoar cânticos patrióticos.
Perante a pressão política, as autoridades de Xinjiang tentavam agora 'apagar' os registos dos últimos três anos daquela mulher no país. Gulbahar podia estar com a família, mas vigiada e impedida de falar sobre a sua detenção. Poderia voltar a França, mas antes teria que fazer com que a sua família apagasse posts nas redes sociais e quaisquer vestígios da luta que haviam travado.
Acedendo a todos os pedidos e mantendo-se submissa às vontades das autoridades de Xinjiang, Gulbahar conseguiu regressar ao país que a acolhera. No dia 21 de agosto de 2019, chegou ao aeroporto, onde a esperavam amigos e família.
"Estávamos todos extremamente nervosos com a reunião e com a sua reacção. Concordámos em não lhe perguntar nada até que ela quisesse falar. A minha mãe chegou, chorámos e vivemos um momento de reencontro extremamente poderoso. Logo após voltarmos para o carro, a minha mãe começou a contar-nos tudo, começou por dizer: 'eles disseram-me para manter tudo em segredo, mas sabem que mais, eu vou contar-vos tudo agora mesmo'. Acho que ela precisava de o partilhar e sentiu-se finalmente segura depois de se ter juntado a nós", recorda a filha.
É aqui que entra Rozenn Morgat, a jornalista do Le Figaro que passou para o papel a história de Gulbahar Haitiwaji.
Encontrou-se com a sobrevivente "alguns meses após a libertação, em novembro de 2019". Rozenn conheceu a história através da filha Gulhumar, durante a luta desta para libertar a mãe.
"Já a conhecia há um ano, quando comecei a entrevistar uigures que viviam em França sobre a política de assédio do Partido Comunista da China. Eles tinham medo de falar com jornalistas", conta-nos em entrevista.
"Mas quais seriam as consequências para as suas famílias em Xinjiang? Este não era o caso de Gulhumar. Ela já tinha perdido a sua mãe, pelo que nada a poderia impedir de falar livremente sobre o que já estava a acontecer em Xinjiang", recorda.
Rozenn e Gulhumar estavam "convencidas de que o testemunho de Gulbahar deveria ser conhecido".
Gulbahar estava a recuperar de um trauma. Os campos deixam-lhe cicatrizes profundas. Mas "quando ela percebeu o quanto o mundo estava preocupado com a sua história, quantos uigures tinham subitamente desaparecido", começaram a falar de escrever este livro.
"Após três anos de vida num mundo fechado e paralelo, ela não compreendeu realmente a magnitude e o drama da sua história. Ela pensava que se sentia presa, mas isso não importava", lembra Rozenn.
A jornalista recorda ainda como a memória de Gulbahar estava "esgotada". "Aqui compreendi como a reeducação quebra os seus pensamentos, as suas memórias". A recolha de informações para o livro decorreu, portanto, ao ritmo de Gulbahar.
"Improvisámos outra forma de recolher todas estas informações. Por vezes, apenas falávamos sobre aquilo de que Gulbahar queria falar. Uma pessoa. Um pormenor. Um momento. Não importa quando é que isso aconteceu na sua história. Noutra altura, ela levantou-se do sofá para imitar as pessoas que conheceu. Polícias. Professores. Em todos estes detalhes dramáticos, estávamos a rir. E essa foi uma forma perfeita de Gulbahar manter o seu trauma a uma boa distância", desvenda Rozenn.
Impossibilitadas de contatar com família na China
Segundo Gulhumar, desde a publicação do livro em França, em janeiro de 2021, que não podem contatar a família que ficou na China.
"Não sabemos o que lhes está a acontecer. A China publicou textos oficiais e propaganda, acusando a minha mãe de terrorismo e família e amigos bloquearam-nos nas redes sociais. Nunca tentámos telefonar-lhes para evitar colocá-los em perigo. A minha mãe tinha colegas de detenção que foram presos por causa de telefonemas com países estrangeiros", revela.
Desde 2017 que o mundo sabe da existência de campos de reeducação nos quais o governo chinês detém mais de 1 milhão de pessoas da minoria muçulmana uigur. Pouco se sabe sobre as condições nesses locais, onde os raros relatos os comparam a campos de concentração.
No final de maio, a alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, esteve na China, e exortou o país a evitar "medidas arbitrárias" nas suas ações "anti-terroristas" na região noroeste de Xinjiang. Esta visita foi considerada um passo importante mas a ex-presidente chilena esclareceu que uma visita de “alto nível” como a sua não permite a “metodologia detalhada” de um “trabalho de natureza investigatória”.
A China nega todas as acusações e diz que esses campos são medidas antiterroristas necessárias.
Rozenn assevera que esta "visita sem precedentes e ultra-controlada mostra como as Nações Unidas são fracas para enfrentar a China".
"Há tantas evidências hoje em dia que ninguém pode negar. Mas a China é super poderosa entre as instituições internacionais, especialmente no Conselho dos Direitos Humanos da ONU", afirma.
Para Gulhumar, a história da mãe e as "outros sobreviventes dos campos participaram na decisão de vários países que acusaram a China de ter cometido um genocídio".
"Mas queremos o nosso país independente, a nossa liberdade é o que temos vindo a lutar desde há muito tempo. E ainda estamos longe disso", termina.
Leia Também: Bachelet garante que "levantou preocupações" sobre direitos na China
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