O Governo aprovou, na quinta-feira em Conselho de Ministros, um decreto-lei -- promulgado já hoje pelo Presidente da República - que altera o Estatuto dos Profissionais da Cultura, "no sentido de simplificar e tornar mais proporcional o seu funcionamento", sem mais detalhes e sem tornar o documento disponível.
À agência Lusa, fonte oficial do Ministério da Cultura apenas explicou hoje que o decreto-lei aprovado "compreende alterações cirúrgicas e pontuais que pretendem agilizar e desburocratizar alguns procedimentos previstos no mesmo, designadamente para agilizar a comunicação dos contratos de prestação de serviços".
Contactadas pela agência Lusa, três estruturas representativas dos trabalhadores da Cultura mostraram-se surpreendidas pela aprovação do decreto-lei e disseram desconhecer o teor do documento, tendo tido acesso apenas a uma proposta, enviada no início de setembro pelo Ministério da Cultura, solicitando-lhes um parecer.
O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, "propôs esta alteração do estatuto, sem reunir a comissão [de acompanhamento], sem nunca estabelecer nenhum diálogo, desde que é ministro, sobre este assunto. Dá-nos dez dias para fazer um parecer. Esta alteração não é inócua. Não conseguimos perceber porquê esta alteração e porque não outras", afirmou à agência Lusa Amarílis Felizes, da Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas.
Também Maria João Garcia, da REDE -- Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, explicou à Lusa que "estranharam" a ausência de qualquer reunião da comissão de acompanhamento do estatuto, tendo sido "surpreendidos" com a aprovação do decreto-lei e com a publicação, hoje em Diário da República, de uma portaria que altera o sistema de emissão de faturas, recibos e faturas-recibo da Autoridade Tributária, no contexto do Estatuto dos Profissionais da Cultura.
"É muito estranho que as entidades recebam isto sem a comissão ser reunida primeiro", declarou Maria João Garcia, que lamentou que haja "um diálogo que não estará a correr da melhor forma", disse.
Sobre o documento com alterações ao estatuto, enviado no início de setembro pelo Ministério da Cultura, a REDE, a Plateia, assim como a Ação Cooperativista, a Acesso Cultura, a Associação Portuguesa de Realizadores, a Performart e o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, de Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) assinaram um parecer conjunto, ao qual a Lusa teve acesso, apelando a Pedro Adão e Silva para que convocasse "com a máxima urgência" a Comissão de Acompanhamento do Estatuto, "sede própria para a reflexão e discussão da implementação da legislação e de eventuais alterações".
Segundo a legislação, a comissão de acompanhamento da implementação do estatuto conta com a participação "das associações representativas e sindicais do setor da cultura", e deve reunir-se, no mínimo, a cada trimestre.
O estatuto entrou em vigor a 01 de janeiro e aquela comissão ainda não teve qualquer reunião.
Hoje, as entidades representativas foram informadas pelo Ministério da Cultura de que a primeira reunião da comissão acontecerá a 12 de outubro, disse Amarílis Felizes à Lusa.
"Esperamos que não seja o simulacro de uma conversa", disse.
Segundo os representantes contactados pela agência Lusa, a principal alteração proposta para o estatuto dizia respeito às entidades contratantes dos trabalhadores.
"Pelo que nós sabemos, [o decreto-lei] altera a presunção e a obrigação das entidades contratantes a demonstrar que o trabalhador a quem são pedidos serviços é de facto um recibo verde ou não. Deixa de ser uma preocupação. [...] Agora a responsabilização da Segurança Social fica do lado de quem o patrão quiser. Isto é o caminho direto para o fim da utilidade do estatuto", afirmou à Lusa Rui Galveias, do Cena-STE.
"Não é nenhum pormenor. Era o único instrumento do estatuto que visava combater os falsos recibos verdes, que é uma das principais razões de precariedade e da falta de proteção social do setor", sublinhou Amarílis Felizes.
A confirmar-se, porque desconhece o teor final do que foi aprovado, a dirigente da Plateia lamenta que o Governo esteja a "agir para responder a interesses de setores minoritários dentro da área da Cultura", nomeadamente "os grandes festivais e outro tipo de estruturas deste género".
"É o fim da única coisa boa que o estatuto tinha, que ajudava a tentar mudar alguma coisa. [O ministro da Cultura] respondeu a um apelo dos patrões do setor, que pediam para não terem de ser eles a demonstrar se um trabalhador deve ou não ser recibo verde. Transformou o estatuto num objeto inerte", afirmou Rui Galveias.
O estatuto, que entrou em vigor a 01 de janeiro, abrange profissionais das artes do espetáculo, do audiovisual, das artes visuais, da criação literária e da mediação cultural, e abrange três eixos: o registo dos trabalhadores; a estipulação de contratos de trabalho; um regime contributivo e de apoios sociais, nomeadamente o acesso ao subsídio em caso de "situação involuntária de suspensão da atividade cultural".
Em maio passado, numa audição parlamentar, a propósito do Orçamento do Estado para 2022, Pedro Adão e Silva admitiu que havia procedimentos no estatuto que podiam ser melhorados a tempo da entrada em vigor da fase de proteção social, em julho.
"Há um caminho a fazer, nomeadamente de simplificação de procedimentos. É possível simplificar procedimentos das empresas" até julho, altura em que entra em vigor a legislação sobre proteção social, e até outubro, quando os beneficiários podem começar a receber apoios sociais, disse.
Em matéria de combate à precariedade, Pedro Adão e Silva admitiu que não era possível "ter como ambição acabar com todos os vínculos precários da Cultura".
"Acho que não é desejável, do ponto de vista de muitos trabalhadores da Cultura. Tenho muita dificuldade em perceber isso. Há profissões que, pela sua natureza, têm de manter esta possibilidade de ter vínculos precários. A precariedade, em muitas situações, não é um mal absoluto, mas devemos concentrar-nos em corrigir e contrariar a precariedade que efetivamente é um problema", afirmou.