"A arte visa basicamente o tabu e a forma como este se torna bom"

As três primeiras novelas da escritora argentina Ariana Harwicz, reunidas num livro intitulado 'Trilogia da Paixão', são histórias viscerais que têm em comum a natureza e as relações filiais selvagens, com que a autora rompe todos os tabus.

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© Simone Padovani/Awakening/Getty Images

Lusa
22/02/2025 15:01 ‧ há 6 horas por Lusa

Cultura

Escrita

Considerada pela crítica internacional como uma das vozes mais singulares e disruptivas da literatura argentina, Ariana Harwicz é pela primeira vez publicada em Portugal, pela Elsinore, que dá assim a conhecer uma autora que fala sobre aquilo de que "não se deve falar".

 

"O tabu dá-me vontade de escrever muito, porque eu penso: 'Ah, é disto que não se pode falar. É vergonhoso e embaraçoso, dá medo, portanto é disso que se trata. Funciona muito bem como um motor de escrita e de arte. A arte visa basicamente o tabu e a forma como este se torna bom", disse a escritora, em entrevista à Lusa, durante o encontro Correntes d'Escritas, no qual está a participar, na Póvoa de Varzim.

'Trilogia da Paixão' reúne as novelas 'Mata-te, amor', 'A Atrasada Mental' e 'Precoce', todas elas passadas num ambiente de campo, rude e selvagem, explorando as relações entre mãe e filho e mãe e filha, em histórias que chegam a roçar o grotesco.

Escritos em texto corrido, mesclando discurso direto e indireto, num fluxo verbal que parece expulsar um monólogo interior, transgressor e imoral, estes três pequenos romances compõem o que a autora designou de "trilogia involuntária sobre a maternidade e os seus tabus".

No primeiro uma mãe vive com o marido e com um filho bebé, de quem anseia fugir, por se sentir presa a um papel que a destrói e no qual não se enquadra: "Quero ir à casa de banho desde o fim do almoço mas é impossível fazer outra coisa além de ser mãe. E ele insiste no choro (...) Sou mãe, pronto. Arrependo-me, mas nem sequer posso dizê-lo", escreve no início de um dos capítulos.

Em 'A Atrasada Mental', a narrativa centra-se numa mãe e numa filha, que vivem uma relação entre o ódio e a ofensa mútua e a cumplicidade e o companheirismo, numa história de disfuncionalidade familiar, que gira em torno de uma sexualidade excessiva, que levou um editor a perguntar à autora a razão de tanto sexo, ao que ela respondeu: "não é sexo, é ânsia, é comédia".

A terceira novela, 'Precoce', que Ariana Harwicz descreveu como "a mãe extasiada com o filho alto e pesado em cima dela" explora a relação perturbada e obsessiva entre uma mãe e o filho adolescente, que inclui incesto.

"A relação filial é o coração pulsante de todos os meus livros, porque as relações de filiação, mãe-filha, mãe-filho, são relações muito teatrais, muito exageradas muito escandalosas, de uma telenovela melodramática, que vai do amor ao ódio e do ódio ao amor infinitas vezes, permitindo todo o arco de sentimentos humanos", disse a autora.

Mas estas são relações "não domesticadas, porque, como vivem no campo, são marginais, roubam, ninguém olha para eles, não são relações convencionais, são livres e quando se deixa o ser humano livre, aparece tudo: o crime, o incesto, o ódio", explicou, revelando que para si os "extremos são muito tentadores para escrever" e "por ser tão ultrajante e tão extremo, permite jogar muito".

Ariana Harwicz admite que gosta do confronto e de causar desconforto, porque senão sente que está a "fazer uma literatura morta", que "não tem vida, é como se estivesse morte cerebral".

A vontade de tirar a maternidade do espaço de ternura para o qual é frequentemente relegado na literatura é também uma vontade que subjaz à sua escrita, porque é preciso "desconfigurar a maternidade e voltar a montá-la".

"Para mim, escrever é isso, é desmontar o puzzle e voltar a montá-lo", acrescentou.

As mulheres das suas histórias, que não têm nome para além do "ela", são construções que fogem à "convenção estereotipada da mulher".

"A mulher que tento tornar numa mulher é um Frankenstein, é um Golem, é um monstro. É por isso que a política das identidades é hoje antiliterária, porque o que é que os homens e as mulheres têm a ver uns com os outros? Nós, mulheres, sabemos que somos todos hermafroditas, que uma mulher pode ser extremamente masculina e um homem extremamente feminino, extremamente delicado e uma mulher extremamente guerreira e selvagem".

A sua heroína é "uma espécie de travesti, homem ou mulher", que a autora gosta de trocar.

A transgressão da sua escrita luta contra a tentação de arrumar a literatura num lugar seguro e assético, que tem vindo a ganhar terreno em alguma literatura contemporânea.

"Essa é uma arte muito menor, limita-se, restringe-se, limita-se a mostrar um catálogo de autores com mais ou menos uma ideologia, com uma identidade. Trata-se de uma ordem de mercado, o que funciona para os festivais, as traduções, para o mapa geopolítico do mercado".

Ariana Harwicz considera que isso "não tem a ver com literatura", e gosta mais do facto de não se saber o que o autor pensa.

"Não sei se os poemas de Sylvia Plath ou Rilke eram comunistas, anticomunistas, pró-feministas, pró-identidade. Há muitos sinais dentro de uma obra, mas hoje em dia a literatura é moderada. Os autores têm todo o interesse em ser moderados. Quanto mais identificável for, mais se vende, mais se traduz. Além disso, os editores optam por comprá-lo, porque sabem que há prémios".

Ariana Harwicz contou como o livro 'Mata-te amor' foi levado a julgamento, durante o seu processo de divórcio, e usado pelo juiz como um "exemplo de como um livro em que a personagem odeia a maternidade faz da autora uma má mãe".

"Voltamos ao século XIX e aos séculos anteriores, em que o autor é culpado pelo que escreve, essa amálgama, essa mistura voluntária de dizer 'Ah, o que o autor escreve é ele'. É uma péssima maneira de ler livros, mas hoje em dia é muito utilizada para dizer: "vejam como este autor é bom e solidário'. No meu caso, foi usado contra mim como exemplo de ser uma má mãe. Tivemos de explicar ao juiz que se tratava de ficção".

Para a escritora, "não separar o autor da sua obra é um desastre" e, como deixou plasmado no prefácio do livro, "escrever não é, como nos querem fazer acreditar hoje, aderir a uma ideologia, pugnar por uma ideologia, submeter-se a uma identidade; escrever é opor-se ao mundo".

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