As declarações foram feitas por Annie Ernaux, de 82 anos, em Estocolmo, durante o discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, que lhe foi atribuído no dia 6 de outubro.
Defendendo que a escrita é um ato político, a autora francesa de romances como "O acontecimento", "Os Anos" ou "Uma paixão simples", fez um discurso entrelaçando a sua história pessoal, com os motivos que a levaram a escrever e com as suas ideologias.
Recordando que cresceu na geração do pós-guerra - após a Segunda Guerra Mundial -, quando escritores e intelectuais se posicionaram face às políticas francesas e se envolveram em lutas sociais, Annie Ernaux considera que no mundo de hoje, onde a multiplicidade de fontes de informação e a velocidade das imagens condicionam uma forma de indiferença, "concentrar-se na própria arte é uma tentação".
"Mas, entretanto, na Europa, uma ideologia de abandono e exclusão está em ascensão, ainda encoberta pela violência de um guerra imperialista travada pelo ditador à cabeça da Rússia, e de forma constante a ganhar terreno em países até agora democráticos. Fundada sobre a exclusão de estrangeiros e imigrantes, o abandono dos economicamente desfavorecidos, a vigilância dos corpos das mulheres, esta ideologia requer um dever de extrema vigilância, para mim e para todos aqueles para quem o valor de um ser humano é sempre e em todo o lado o mesmo", afirmou.
Para Annie Ernaux, a atribuição do Nobel da Literatura não foi "uma vitória individual", mas sim "uma vitória coletiva", que partilha com "aqueles que, de uma forma ou de outra, esperam por maior liberdade, igualdade e dignidade para todos os seres humanos, independentemente do seu sexo ou género, da cor da sua pele e da sua cultura; e com aqueles que pensam nas futuras gerações, de salvaguarda de uma Terra, onde uns poucos sedentos de lucro a tornam cada vez menos habitável para todas as populações".
"Quanto ao fardo de salvar o planeta, destruído em grande parte pelo apetite dos poderes económicos, não pode recair, como é de recear, sobre aqueles que já estão desamparados. O silêncio, em certos momentos da História, não é apropriado", acrescentou a escritora.
Annie Ernaux fez da sua literatura um compromisso com a defesa dos direitos dos mais desfavorecidos e das mulheres, que recordou constantemente num discurso que começou precisamente com a lembrança da promessa que fizera a si mesma há 60 anos: "Escreverei para vingar a minha raça".
Foi a partir dessa promessa e dos seus antepassados, "homens e mulheres trabalhadores acostumados a tarefas que os fizeram morrer cedo", que ganhou "força e raiva suficientes para ter o desejo e ambição de lhes dar um lugar na literatura", e para se rebelar de modo a inscrever a sua voz de mulher e de desertora social, naquilo que ainda se apresenta como um espaço de emancipação, a literatura".
Por isso mesmo, a autora assinalou que foi assim que concebeu o seu compromisso com a escrita, que consiste em escrever não 'para' uma categoria de leitores, mas a partir 'da' sua experiência como mulher e imigrante do interior, e da sua experiência e memória mais longas, dos anos que viveu, e do presente, "um interminável fornecedor das imagens e das palavras de outros".
Este compromisso é "suportado pela crença, que se tornou uma certeza, de que um livro pode contribuir para a mudança na vida privada, ajudar a estilhaçar a solidão das experiências suportadas e reprimidas, e permitir que as pessoas se reinventem".
"Quando o indizível é trazido à luz, é político", frisou a escritora, apontando como exemplo o que se "vê hoje na revolta das mulheres que encontraram as palavras para perturbar o poder masculino, e que se levantaram, como aconteceu no Irão, contra a sua forma mais arcaica".
Mas mesmo num país democrático, como aquele a partir do qual escreve, Ernaux continua a interrogar-se "sobre o lugar que as mulheres ocupam no campo literário", considerando que "ainda não ganharam legitimidade como produtoras de obras escritas" e desejando que o reconhecimento do seu trabalho pela Academia Sueca seja um sinal de esperança para todas as escritoras, pois "há homens no mundo, incluindo nas esferas intelectuais ocidentais, para quem os livros escritos por mulheres simplesmente não existem, e nunca os citam".
Nascida em Lillebonne, na Normandia, em 1940, Annie Ernaux estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, sendo formada em Letras Modernas.
Começou a ler muito cedo e desde sempre se recorda dos livros como os seus companheiros e a sua ocupação natural fora da escola, recordou.
Este gosto foi-lhe incutido pela mãe, grande leitora de romances nos momentos mortos, entre clientes, na sua loja, que preferia ter a filha a ler do que a coser e a costurar.
Ao escolher estudos literários -- contou -- elegeu manter-se dentro da literatura: "A literatura era uma espécie de continente, que eu inconscientemente coloquei em oposição ao meu ambiente social. E concebi a escrita como nada menos do que a possibilidade de transfigurar a realidade".
Annie Ernaux confessou que passou por um período inicial em que se afastou da escrita, por "situações de vida em que o peso da diferença entre a existência de uma mulher e a de um homem era profundamente sentida, numa sociedade onde os papéis eram definidos por género, onde a contraceção era proibida e a interrupção da gravidez era um crime".
Mais tarde regressou e fez desta mesma realidade a sua matéria de escrita, e do recurso ao ''Eu' -- forma masculina e feminina -- uma ferramenta exploratória para captar sensações'.
Atualmente é considerada uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes.
Em Portugal, estão publicados 'Os anos', 'O acontecimento', 'Uma paixão simples' e 'Um lugar ao sol seguido de Uma mulher'.
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