No dia 26 de fevereiro de 1973, Fernando Tordo subia ao palco do 'X Grande Prémio TV da Canção Portuguesa' (o antecessor do Festival da Canção), para interpretar uma canção escrita por José Carlos Ary dos Santos, que denominaram 'A Tourada'. A música viria a ganhar a edição, mas mais do que o ritmo "galopante" ou a própria melodia, 'A Tourada' ficou conhecida pelo impacto que trouxe no panorama musical de então.
Numa altura em que a censura filtrava todo e qualquer conteúdo cultural "para o bem da Nação", 'A Tourada' fugiu ao lápis azul, graças a uma letra repleta de simbolismos subtis e referências satíricas - mais à tauromaquia do que ao Estado Novo, embora as críticas ao espetáculo procurassem espelhar as manchas da ditadura.
Cinquenta anos depois, Fernando Tordo falou com o Notícias ao Minuto sobre as celebrações da música - com concertos no Teatro Tivoli (Lisboa) e na Casa da Música (Porto), nos dias 26 de fevereiro e 11 de março, respetivamente -, sobre o que 'A Tourada' representa na sua carreira, acerca do facto de a música "infelizmente ainda se manter atual" e sobre a influência do Festival da Canção (no qual fará uma participação este ano).
Não havia sequer muitas esperanças de que a canção passasse pela censura
'A Tourada' surgiu há 50 anos, como uma música com um simbolismo muito interventivo, um ano antes de a ditadura cair. Antes, já havia artistas a tentar transmitir mensagens pela música, mas qual foi a importância da vitória de 'A Tourada' num palco como o Festival da Canção?
É uma sensação muito boa. Há canções ainda mais antigas, mas normalmente não se celebra uma canção por ter 50 anos, digo eu. Celebra-se porque ela sobrepõe-se ao simples facto de ser uma canção: é um momento muito importante para o nosso país, estamos a falar de fevereiro de 1973, falta um ano e pouco para o 25 de Abril, mas trata-se de uma canção que aparece numa emissão para 7 milhões de portugueses da televisão única em Portugal, com uma ditadura e uma Guerra Colonial gravíssima e com a censura atívissima.
Quem for assistir a este concerto, ou quem for ao Porto, no dia 11 de março, à Casa da Música, no fundo está a dar-me um abraço
Entretanto, ela passa por esses filtros e instala-se na memória das pessoas e, de alguma maneira, na nossa história. Sem que fosse esse o objetivo, não era, não havia sequer muitas esperanças de que a canção passasse pela censura e é aí que a história se começa a fazer. Daí que se justifica plenamente, em meu entender, que se celebre meio século de uma canção que é também uma referência do que foi o nosso país, e com a diferença do que ele é hoje.
Em relação a esta série de concertos que vamos fazer, eu fiz questão que fosse no próprio dia 26 de fevereiro, é exatamente no dia 26 de fevereiro de 1973 que a canção é apresentada no Teatro Maria Matos, no Festival da Canção da RTP de 1973, e fiz questão que fosse exatamente nesse dia. É um domingo, mas se fosse a meio da semana seria a mesma coisa.
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E quem for assistir a este concerto, ou quem for ao Porto, no dia 11 de março, à Casa da Música, no fundo está a dar-me um abraço. Há muitas pessoas importantes em relação a esta canção que já não estão entre nós há alguns anos, o caso do Ary dos Santos ou do orquestrador, Pedro Osório, portanto desta equipa sobro eu - felizmente, com saúde e ativo profissionalmente -, e saúdo as pessoas que vão estar comigo, porque é realmente muito comigo que vão estar.
E com certeza que vão estar muitas pessoas que ainda não eram sequer nascidas ainda.
'A Tourada' é uma canção que transpôs de facto esse limite da simples canção e passa a entrar no âmbito de uma referência histórica do nosso país
Pegando precisamente nesse ponto. Fala sobre a importância da música no contexto histórico e social, mas qual é a importância do tema na sua carreira, especialmente tendo em conta que, como diz, há muitas pessoas mais novas que conhecem e celebram a canção?
Esse é um outro fenómeno e não tenho uma explicação lógica ou rápida para ela. Vejo gente tão jovem, alguns com idade para serem meus netos. Eu creio que é uma questão cultural e familiar, que terá que ver com uma referência de memória de um determinado tempo do nosso país. E é também uma satisfação muito grande para mim, porque tanto está a pessoa que é da minha idade ou uma pessoa muito mais nova. Há uma abrangência muito grande em relação a este tema, e não tem grande explicação porque não é uma canção que passe numa rádio. É uma canção que transpôs de facto esse limite da simples canção e passa a entrar no âmbito de uma referência histórica do nosso país.
Daí eu querer agradecer muito às pessoas por estarem presentes, porque de facto é uma festa comigo, é para mim uma referência muito importante por ser também uma homenagem àqueles que já partiram.
Próxima desta canção há uma pessoa que ainda está viva e que irá estar connosco que é o maestro Jorge Costa, que é hoje um homem com 80 e muitos anos. É inesquecível, foi ele que dirigiu a orquestra tanto no Festival da Canção como na Eurovisão, no Luxemburgo.
Há uma quadra da música em que canta que "Com bandarilhas de esperança / afugentamos a fera / Estamos na praça / Da Primavera". Também Zeca tinha cantado o 'Coro da Primavera' em 1972, fazendo esta referência. Porquê a referência à época do ano e a crítica à tauromaquia como um espelho apontado ao Estado Novo?
No meu trabalho com o Ary dos Santos, em 98% dos casos, fiz a música primeiro e isso aconteceu também com 'A Tourada'. Enquanto estávamos a trabalhar, enviámos cinco canções para este festival de 1973, e o Ary dos Santos perguntava-me sempre se me lembrava de algum tema. E eu recordo-me de lhe ter dito que me lembrava de uma tourada. Não pensava que a canção fosse revestir-se desta atmosfera do nosso país, sugeria-me que podia ser uma sátira, mas não no sentido de ir aprofundar tanto.
Muita gente diz que, infelizmente, ela ['A Tourada'] ainda é muito atual. E nalguns aspetos, ela está completamente atual
O Ary dos Santos disse que não percebia nada de touradas, e eu conhecia o vocabulário da tourada. Recordo-me de ser miúdo e de assistir à televisão única, a RTP fazia transmissões em direto do Campo Pequeno dos espetáculos, e recordo-me inclusivamente do nome do senhor que fazia os comentários. Então, fixei a terminologia da tourada e escrevi numa folha de papel os termos todos.
De repente, o Ary verifica que há a possibilidade de escrever mais qualquer coisa, ir um bocadinho mais longe do que a canção satírica. Aí passava a ser algo do interesse do país, de como se utilizava esse vocabulário e como é que ele serve para descrever uma situação social e política.
O que resulta daí é o facto de estarmos hoje a falar desta canção 50 anos depois. E muita gente diz que, infelizmente, ela ainda é muito atual. E nalguns aspetos, ela está completamente atual.
Entram empresários moralistas
Entram frustrações
Entram antiquários e fadistas
E contradições
E entra muito dólar muita gente
Que dá lucro aos milhões
E diz o inteligente
Que acabaram as canções
O Ary dos Santos fica particularmente atraído pelo termo 'inteligente' no final da canção, quase que escreve a galope, e escreve que "diz o inteligente que acabaram as canções". Isso tem que ver com um discurso televisivo de um governante. Há uma utilização muito inteligente desta terminologia para chegar a outros discursos. Só que acontece que também a junção com a melodia que fiz é muito alegre, é muito jocosa; não é sequer a chamada canção política ou canção de intervenção. Não se trata disso. É uma coisa que vai um pouco mais longe, e tanto é que resiste após décadas e décadas e resistirá muito para além de mim.
Para quem é compositor, intérprete, profissional destas coisas durante quase seis décadas, é um momento muito importante na vida, é uma coisa à qual não se vira as costas, que se deve proteger e é nesse sentido que fiz muita força para que estes concertos acontecessem durante este ano de 2023, justamente para homenagear, não o autor ou o compositor, mas uma coisa que aconteceu inesperadamente e que marcou tanto o país.
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O Festival da Canção continua ser um palco para músicas com um caráter mais social, mais ativista. Como é que vê o facto de esse caráter se manter em muitas das músicas que continuam a passar - sendo que, nos últimos anos, tivemos o óbvio exemplo dos Homens da Luta, entre muitos outros?
E porque não dizê-lo: especialmente em Portugal? Nós fomos muito ligados ao Festival da Canção até uma determinada altura. O Festival da Canção era realmente o grande acontecimento televisivo do ano. Eu recordo-me de uma capa de um jornal, creio que era o 'Capital', que pela primeira vez publica uma espécie de sondagem, em que se escrevia que seis milhões e 400 mil portugueses assistiram ao Festival por todo o país. Isto é uma coisa que nunca mais será alcançada ou registada, mas era no Festival da Canção que a própria RTP tinha o seu topo de audiência anual.
Teve sempre essa importância, mas perdeu-a muito a partir dos anos 80, 90, por aí fora. Mas é curioso que a RTP nunca abdicou da sua colaboração no Festival da Canção, justamente também pela importância que tem. Porque muita ou pouca, melhor ou pior, reúne sempre muita gente em torno da televisão. Não é o que já foi, como é evidente, mas nota-se que, nos dias de hoje, há outra vez uma apetência muito grande para o Festival da Canção, porque realmente ele continua a ser muito promovido e prestigiado. Quer dizer, há uma máquina de décadas para promover o Festival da Canção.
E há outra vez um interesse crescente de gente com qualidade de concorrer com as suas canções, porque não há espaço, as televisões não dão espaço para as pessoas cantarem na televisão. Deixou de haver concertos nas televisões, que antes havia e que agora são substituídos por estes concursos, como o 'The Voice', em que os artistas profissionais não têm presença.
Foi também anunciada a sua presença no Festival da Canção, onde vai atuar na primeira meia-final, a 25 de fevereiro.
Sim, serei convidado para estar presente no dia 25, na véspera do meu concerto a 26 fevereiro. Pediram-me inclusivamente para cantar a canção. Não sei ainda qual é o programa, mas vou estar presente.
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