O atual período histórico e a tradução oferecida pelo amigo e ex-ator da Cornucópia, que já traduzia textos para a companhia fundada em 1973, por Luis Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, foram as "pancadas de Molière" para a encenação do texto do dramaturgo romeno, que "está mais do que atual, está atualíssimo mesmo", como disse o ator e encenador Ricardo Aibéo à agência Lusa.
Os perigos decorrentes dos fenómenos de massa e o crescimento de ideologias populistas estão patentes no texto do dramaturgo franco-romeno Eugene Ionesco (1909-1994), expoente do chamado "teatro do absurdo", numa atualidade evidente sobre a qual o ator prefere "que seja o público a tirar ilações".
A "rinocerite" é uma doença que atinge uma pequena cidade, transformando os habitantes em conformistas e uniformizando-lhes o pensamento até os converter em rinocerontes. Esta é a premissa da peça que chega ao Teatro do Bairro numa encenação de Ricardo Aibéo, que também interpreta, com David Almeida, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Graciano Dias, Rita Durão e Sofia Marques.
Publicada em 1959, 'Rinoceronte' teve como ponto de partida, como o próprio dramaturgo admitiu após a publicação, a vitória do nazismo na Alemanha e do fascismo em Itália, assim como a sua expansão, nos anos de 1930, à semelhança do regime da Guarda de Ferro imposto na Roménia de setembro de 1940 a agosto de 1944, pelo então primeiro-ministro e apoiante de Hitler Ion Antonescu (1882-1946).
Um tema "mais do que atual, atualíssimo mesmo", disse à Lusa o ator e encenador Ricardo Aibéo, numa alusão aos perigos decorrentes dos fenómenos de massa e ao crescimento das ideologias populistas de extrema-direita. "Embora prefira que seja o público a tirar ilações", frisou.
A tradução de Luís Lima Barreto, ator da Cornucópia desde a sua fundação, foi o que levou os sete atores - "o grupo" ou "a grupeta", como se tratam "num tom mais carinhoso", disse Aibéo - a voltarem a juntar-se, depois de a companhia ter cessado atividade em dezembro de 2016.
Por se tratar de um texto extenso e para que fosse viável pôr em cena, "O rinoceronte" foi pensado como um espetáculo "à laia de brincadeira", "uma espécie de ensaio" ou um "espetáculo mal terminado".
O texto original - "longo, muito difícil, inverosímil, mas ao mesmo tempo real" - teve de "levar alguns cortes e algumas adaptações", explicou o encenador.
Antes de o espetáculo começar, Ricardo Aibéo, que ao longo da peça virá a assumir pequenos papéis, apresenta-se como ator e encenador, assumindo-se quase como um observador da peça.
Munido do "calhamaço", apresenta o espetáculo como algo que "logo se vê como corre", assumindo uma pessoa/personagem que remete tanto para o pintor, cenógrafo e encenador polaco Tadeusz Kantor (1915-1990, que entrava sempre nos espetáculos que dirigia, como para 'MacGuffin', dispositivo cinematográfico celebrizado pelo realizador Alfred Hitchcock, que consistia na introdução de um objeto ou de algo que funcionasse como motor da ação e forma de mobilizar a atenção, e que depois se revelava apenas um artifício.
A peça fixa-se num cenário "putrefacto", que remete para trabalhos de Luís Buñuel e Federico García Lorca enquanto jovens, onde pontuam mesas, cadeiras velhas e bancos corridos, que ora servem de assento ora viram cama, à medida que a ação se desenvolve desde a cena inicial, passada num café, numa praça de uma pequena cidade.
Berenger (Dinis Gomes), a personagem antissistema, alcoólico e o único imune à doença que acabará por alastrar, e João (Duarte Guimarães), o respeitador das normas e das convenções sociais, são os protagonistas.
Os restantes atores - Ricardo Aibéo e Rita Durão, Sofia Marques, David Almeida e Graciano Dias - vão vestindo diferentes papéis à medida que a ação decorre.
Com um ponto em cena, funcional por "auxiliar" num texto difícil e longo como é 'O rinoceronte', e responsável por fazer crescer a ideia de que se trata de um espetáculo "pouco estruturado, pouco sólido, pouco cimentado", a peça acaba, todavia, por contrariar a suposta "brincadeira inicial", e acabar por se revelar um caso sério de análise política e social, através dos momentos de humor causados tanto pelo insólito como pelo absurdo das situações.
Seja no estertor e som gutural da primeira personagem que se transforma no grande mamífero que dá título à peça, seja na subentendida transformação que alastra aos habitantes locais, como uma grande epidemia, "O rinoceronte" expõe a facilidade com que setores ou ideologias totalitários, que se querem dominantes, manipulam a seu favor, e os perigos da indiferença, do alheamento ou do mero conformismo perante esses processos.
Com luz e som de Rui Seabra, fotografia de Bruno Simão, gestão administrativa de Patricia André e apoio à produção de Leonardo Garibaldi, "O rinoceronte" é uma produção da Sul - Associação Cultural e Artística e foi viabilizada através de uma candidatura pontual ao fundo Garantir Cultura.
No Teatro do Bairro 'O rinoceronte' terá récitas de terça-feira a sexta, às 21:30, e, ao sábado e domingo, às 18:00.
Dias 04 e 05 de Março, às 21:00 e às 16:00, respetivamente, estará em cena na sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada.
Este versão, estreada em fevereiro de 2022, no Centro de Artes de Lisboa (CAL), teve então três sessões, e mais três récitas: uma em Penela, e duas no salão nobre do Colégio Almada Negreiros, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, ao abrigo de um protocolo com o estabelecimento de ensino.
'A morte de Tintagiles' (2017), de Maurice Maeterlinck, numa coprodução do Teatro do Bairro, Ricardo Aibéo e a estutura Sul, e 'A boda' (2019), de Bertolt Brecht, produzida em conjunto pela Associação Cultural e Artística, pelo Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional de São João, duas encenações de Ricardo Aibéo, são os trabalhos que reuniram o grupo, conhecidos como "cornucópios" e "cornucopianos" (sem que alguma vez se tenham designado como tal), desde o fim do Teatro da Cornucópia, em 2016.
"O rinoceronte" teve estreia portuguesa em 1960 pelo Teatro Experimental do Porto, com adaptação e encenação de António Pedro, e interpretação de Vasco de Lima Couto, Mário Jacques, João Guedes e Madalena Braga, entre outros atores, pouco depois da vinda do dramaturgo a Portugal, quando o Théâtre Studio des Champs Elysées apresentou os seus textos "A lição", "As cadeiras" e "A cantora careca", como indica o Centro de Estudos de Teatro, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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