Eis que a tetralogia 'Irmãos, Ilhas e Ausências' chegou ao fim. Volvidos dois anos desde o lançamento de 'As doenças do Brasil', o escritor Valter Hugo Mãe tirou, este mês, 'Deus da Escuridão'. É que, apesar de confessar não acreditar no divino, o seu lado irracional fá-lo ponderar quanto à existência de uma entidade mística. Propôs-se, por isso, a colocar por escrito "o testemunho de uma passagem pela vida feita inteiramente de boa-fé", depois de ter sido exposto ao "linguajar típico" madeirense e à conduta espiritual da matriarca de uma família sua amiga.
Tendo como cenário a freguesia de Campanário, na ilha da Madeira, 'Deus na Escuridão' concede-nos, a par da devoção religiosa, um vislumbre da vida entre dois irmãos, cuja união é apenas comparável ao amor de uma mãe. Isto porque, para o escritor galardoado com o Prémio Literário José Saramago de 2007, o exponente máximo do amor é atribuído às progenitoras que, tal como Deus, amam de forma intensa, sofredora e na escuridão, que é "a única maneira de estar no pleno exercício da humanidade".
Em conversa com o Notícias ao Minuto, Valter Hugo Mãe confidenciou que este romance, editado duas décadas após a sua estreia enquanto escritor, representa, em todas as suas facetas, um regresso às origens, qualquer que seja a forma que tomem. Resultado de mais de 12 anos de trabalho, a obra dita também o fim de mais um ciclo, deixando o autor "apaziguado" e "arrumado" face à marca que conseguiu deixar na literatura. Mas, assegurou, ainda quer "escrever outras coisas".
Acho que, a maioria das vezes, as pessoas que lidam com uma dimensão espiritual não estão à altura de uma conduta adequada àquilo em que supostamente acreditam. Têm uma excelente intenção, têm uma excelente vontade, mas têm um gesto que falha
Mencionou nas notas de autor de 'Deus na Escuridão' que este é o resultado de mais de 12 anos de trabalho. Qual a inspiração por trás desta obra?
O livro arranca a partir do encontro com uma senhora chamada Luísa Reis Abreu, que vivia no Campanário, na ilha da Madeira. Ao mesmo tempo que trazia um linguajar típico daquela região, impressionou-me muito com a sua conduta, a forma como acreditava e como exercia a sua espiritualidade. Tenho para mim que encontrei poucas vezes na vida alguém que acreditasse na transcendência e na ideia de Deus como a senhora Luísa acreditava. A espiritualidade é um tema que sempre me interessou e que sempre me deixou intrigado, mas a senhora Luísa acabou por trazer-me um exemplo da coincidência entre aquilo que se acredita e aquilo que se faz.
Acho que, a maioria das vezes, as pessoas que lidam com uma dimensão espiritual não estão à altura de uma conduta adequada àquilo em que supostamente acreditam. Têm uma excelente intenção, têm uma excelente vontade, mas têm um gesto que falha. Parecia-me que tudo o que a senhora Luísa fazia era de boa-fé. Então, o meu livro é uma tentativa de ir ao encontro desta energia ou deste testemunho de uma passagem pela vida feita inteiramente de boa-fé.
Já manifestou noutras ocasiões que não é religioso nem acredita em Deus, mas este é, talvez, o seu livro mais espiritual. Porquê essa inclinação?
Tenho alguma dificuldade em acreditar, mas gostaria muito de acreditar. Por isso, tenho a sensação de que convoco a temática espiritual e, de algum modo, uso Deus como personagem, como se tivesse um pouco a expectativa que ele se pronuncie ou que me dê algum tipo de prova de que, afinal, existe. Não consigo ficar indiferente.
Às vezes, meio a brincar, digo que, se pensar sobre o assunto, tenho a convicção de que Deus não existe. Mas se não pensar sobre o assunto, estou convencido de que Deus existe. É como se, de facto, racionalmente não faz sentido e não posso acreditar, mas há uma dimensão nossa que é irracional e que, no meu caso, me impulsiona para achar que estamos acompanhados por essa divindade, por uma entidade divina.
Se Deus ama a criação de uma forma intensa como amam as mães, de uma forma infinita, então Deus tem de ser um sofredor. [...] Acho que a proposta do livro é a de que Deus, se existir, não pode ser um indivíduo, não pode ser uma entidade que existe numa inteireza de alegria, tem de existir também numa profunda aflição
Esta obra fecha a tetralogia 'Irmãos, Ilhas e Ausências'. O que é que o levou a querer abordar a ilha da Madeira?
Até admito que, durante muito tempo, achei que escreveria sobre os Açores. Ainda não conheço todas as ilhas, mas são dos lugares que mais me comoveram no mundo, de todos os que já visitei. No entanto, a vida levou-me a estar mais próximo da Madeira, a ter ali amigos, e a encontrar várias oportunidades de deslocação e, então, acabou por se me impor.
[A Madeira] é uma ilha que entrou na minha biografia e que se transformou numa prática muito frequente. De facto, o livro precisava de ser ali, porque é o lugar da senhora Luísa Reis Abreu, é o lugar dessa família minha amiga, e foi ela que me inventou este livro, de alguma forma, embora quisesse escrever sobre os Açores. Foi ela que me inspirou inteiramente a este livro.
Há várias manifestações de amor no livro – amor entre pais e filhos, amor entre irmãos e amor entre parceiros, por exemplo. Foi a sua relação com a sua mãe, a quem dedica a obra, que o levou a equiparar o amor de uma mãe ao amor de Deus?
É inevitável que a minha mãe possa ser uma equação que passarei a vida inteira a resolver. De algum modo, aquilo que penso sobre as mães, aquilo em que acredito sobre as mães vem comprovado pela relação que estabeleço com a minha própria mãe.
O livro, sendo uma trama entre dois irmãos, digamos assim, é um estudo ou uma meditação acerca do amor materno, e precisava de ser dedicado à senhora Luísa. Mas não podia escrever um livro sobre o amor materno sem que ele fosse também dedicado à minha mãe, por tudo. Ela é a prova dos nove à qual eu acedo quando me coloco algum tipo de questão acerca da maternidade.
As pessoas que amamos, quanto mais precisarem de ser amadas, eventualmente mais nós as poderemos saber amar, mais aumentaremos de coração. O Pouquinho nasceu desafiado nesse sentido e, por isso, solicita um amor mais extremo, solicita um amor maior
O próprio amor que Felicíssimo sente por Pouquinho é, também, quase transcendente, o que é comprovado com aquilo que o mais velho faz pelo "santo", em detrimento da sua própria saúde mental e do seu bem-estar. Pode ser esta uma imagem de que o amor incondicional também pode ser corrosivo?
Sim, sobretudo no sentido em que o amor acarreta, eminentemente, um sofrimento. Ou seja, amar é padecer por alguém. Acho que a grande tese do livro vem desta ponderação de que aquele que ama coloca-se em perigo. Por isso, se o extremo do amor é o praticado pelas mães para com os seus filhos, esse amor das mães para com os seus filhos poderá ser ele apenas comparável com o amor de Deus. Se Deus ama a criação de uma forma intensa como amam as mães, de uma forma infinita, então Deus tem de ser um sofredor.
Acho que a proposta do livro é a de que Deus, se existir, não pode ser um indivíduo, não pode ser uma entidade que existe numa inteireza de alegria, tem de existir também numa profunda aflição. A dada altura diz-se no livro que, no instante em que Deus cria seus filhos, cria, ao mesmo tempo, o medo. Com os filhos nasce o medo, nasce essa vulnerabilidade que é, no fundo, fruto do próprio amor. Então, sim, o amor de que se fala neste livro é um amor que impõe um certo perigo. Não diria que imediatamente traz uma agressão, mas que nos deixa à mercê e nos faz obrigatoriamente completos.
Foi também por isso que criou Pouquinho sem "origens", para assoberbar esse sentimento por parte não só de Felicíssimo, mas também de Mariinha, neste caso?
Sim, quis muito que alguém fosse objeto de um amor incondicional, que o merecesse e que urgisse por ele. Ou seja, que alguma das personagens precisasse de ser amada mais do que o comum dos cidadãos. A dada altura diz-se isso [no livro], que quem ama aumenta do coração segundo a necessidade do ser amado. As pessoas que amamos, quanto mais precisarem de ser amadas, eventualmente mais nós as poderemos saber amar, mais aumentaremos de coração. O Pouquinho nasceu desafiado nesse sentido e, por isso, solicita um amor mais extremo, solicita um amor maior.
De algum modo, sabemos que devemos voltar à origem e que esse é, no fundo, o objetivo da vida de cada um de nós, mas não conseguimos aclarar exatamente o que se entende por origem
O "menino sem origens" é, também, elevado a figura mítica, precisamente por aquilo que lhe falta. A certo ponto, começa até a fazer "milagres" ao ouvir os problemas da comunidade; não será isto um sintoma da solidão e do individualismo, por um lado, mas também da mistificação da diferença e da necessidade de acreditarmos em algo maior do que nós, por outro?
Sem dúvida. Creio que o Pouquinho é, sobretudo, uma alma gentil que, subitamente, ouve os outros. Creio que aquilo que significa na trama é a posição de alguém que chega ao mundo como um amigo, que recebeu afeto e, de repente, tem apenas afeto para retribuir. Por isso, a postura dele em relação aos outros é a de alguém que está disponível para os ouvir, e esse já seria o milagre, ou esse gesto por si só opera um milagre.
Outra questão prevalente é a ausência, que acontece através da emigração e do desejo de abandonar a ilha. Deixar a ilha pode ser visto no sentido literal, enquanto território, e metafórico, enquanto símbolo deste isolamento?
Sim. O partir, essa ideia de partir que acarreta eminentemente uma tragédia, porque há uma fratura, há um corte, há uma perda, já que quem parte perde, é uma ansiedade do ilhéu. Praticamente em todas as almas que vivem em ilhas existe essa pergunta; se devem partir, se devem sair. Ao mesmo tempo, o livro parece ensinar-nos que o sentido da vida é voltar à origem, e por isso é que também é muito relevante dizer-se que Pouquinho nasceu sem origens. Não sabemos exatamente para onde é que ele deverá voltar e problematizamos o que é que é o conceito de origem. Volta-se para onde? É a casa da mãe? É a casa do pai? É um lugar? Ou, então, é um conceito, uma ideia, um pressentimento, um espaço de fé, de crença?
De algum modo, sabemos que devemos voltar à origem e que esse é, no fundo, o objetivo da vida de cada um de nós, mas não conseguimos aclarar exatamente o que se entende por origem. Essa ansiedade por sair da ilha levanta imediatamente o problema de saber se na ilha está a origem de alguém ou se alguém só se pode encontrar numa certa multidão; se é a partir da multidão, dessa vastidão que pode simbolizar a universalidade da humanidade, se é aí que todos nós nos encontraremos. É uma pergunta que fica sem resposta, não a sei dar.
Amamos todos sem garantia de sermos amados de volta. Então, todos nós amamos na escuridão. [...] Julgo que, de algum modo, é a única maneira de se amar. Mais do que isso, será a única maneira de estar no pleno exercício da humanidade. Ninguém está no pleno exercício da humanidade se não amar e, por isso, se não estiver na escuridão
Curiosamente, depois de ter escrito vários textos passados em ilhas, chego à conclusão de que a partida é sempre uma questão, mas há ilhéus que passam a vida inteira lutando para fugir, lutando para partir. Há outros que, pensando partir, fazem um esforço para não partir. Ou seja, acham que o objetivo é conseguir dotar a ilha de uma espécie de globalidade, totalidade, que seja bastante. O caso do madeirense, como o caso do cidadão português continental, tem mais que ver com a necessidade de sair. Podemos regressar mais tarde, mas acho que os portugueses têm uma alma que pede lonjura, que pede fuga.
Considera que essa ideia está relacionada com o nosso passado e com as necessidades históricas que tivemos, ou é simplesmente uma questão da alma?
Acho que a nossa nação é construída nessa coisa de vaguear, desde as naus que partiram e que, de algum modo, traçaram caminhos nunca antes traçados. Acho que o nosso imaginário enquanto nação e enquanto cultura autónoma no mundo é muito feito da viagem. O nosso imaginário inclui a viagem como uma identidade própria do português. De facto, ao longo de todo o século XX, a história também levou a que as pessoas saíssem não por motivos de grande aventura, mas por necessidade de sobrevivência, o que acaba por intensificar a nossa relação com o estrangeiro, a nossa relação com as culturas exteriores. Acho que somos um povo feito disto, feito desta relação e desta cíclica, constante necessidade de partir. Não creio que tão cedo possamos curar esta condição viajante. Vamos ser assim.
O próprio título do livro tem essa conotação de querer sair; 'escuridão' é uma palavra associada a sentimentos negativos e há, inclusivamente, o exemplo da Alegoria da Caverna, em que os homens se libertam da escuridão. Também foi esse o significado que quis dar?
Este Deus na escuridão significa que, de alguma forma, se está também à mercê. Tem um pouco que ver com aquilo que dizia há bocado sobre Deus se existir amando e, para amar, tem também de sofrer. Por isso, esta escuridão é uma falta de garantia. Amamos todos sem garantia de sermos amados de volta. Então, todos nós amamos na escuridão. Poderia ser outro título – 'Amar na Escuridão', 'Os que Amam na Escuridão'. Julgo que, de algum modo, é a única maneira de se amar. Mais do que isso, será a única maneira de estar no pleno exercício da humanidade. Ninguém está no pleno exercício da humanidade se não amar e, por isso, se não estiver na escuridão.
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E é o que Pouquinho faz, ama sem esperar nada em troca.
Exatamente. Quer o Pouquinho, quer o Felicíssimo acabam por ser exemplos desse amor sem garantias.
Este ano marcará duas décadas desde a publicação do seu primeiro romance, que também aborda Deus. Foi o 'fechar' de um ciclo? Que balanço faz deste período temporal?
Tenho a sensação de que é uma espécie de regresso. Curiosamente, este livro fala do sentido da vida como regresso à origem e tenho um pouco a impressão de que esta obra regressa à origem. Tenho sempre a intenção de escrever outras coisas, outros livros que me vão sobrando na memória, numa espécie de fila de espera, mas nunca estou muito certo do que vou escrever e com que resultado é que cada livro vai ficar. Fico um pouco convencido de que, com este livro, fecho vários ciclos – fecha-se uma tetralogia, a segunda que escrevo, e deixa-me mais ou menos apaziguado. Não significa que esteja satisfeito, que seja suficiente, porque quero ainda escrever outras coisas, mas tenho a impressão de que nunca me senti tão arrumado como agora, no sentido de ter conquistado algum tipo de equilíbrio em relação ao que a vida me fez, ao que a vida me deu e ao que consegui deixar na literatura.
E que outros projetos tem em mãos? Podemos esperar outra obra em 2024?
Este ano não devo publicar mais nada. Há um romance que estou também há muitos anos a querer escrever, a tomar notas, que é um livro passado em Angola, e tenho estado a trabalhar nele. Não estou certo se será o próximo livro que publicarei; é o livro que estou a escrever, mas há outras ideias. Sempre trabalhei um pouco assim. Vou avançando num livro mas, depois, há outras ideias que me são sedutoras e há uma espécie de disputa amorosa. Por vezes, quero estabelecer uma relação, mas sou conquistado por outra. Por isso, não sei até que ponto é que me manterei fiel ao livro de Angola. Não sei se vou ficar a escrevê-lo, ou se vou partir para outra relação.
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