"O que ouço sempre em José Mário Branco é o coração da utopia a falar"

O entrevistado desta terça-feira do Vozes ao Minuto é JP Simões. O artista lançou recentemente um álbum com oito músicas de José Mário Branco do qual está muito orgulhoso. A 24 de abril, sobe ao palco do Tivoli para o cantar, no âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos.

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© Tiago Fezas Vital

Natacha Nunes Costa
16/04/2024 10:30 ‧ 16/04/2024 por Natacha Nunes Costa

Cultura

JP Simões

O músico JP Simões editou recentemente um álbum de homenagem ao lendário cantautor português José Mário Branco, que é o culminar de um trabalho que já vinha a desenvolver há alguns anos e começou com uma revisitação de 'Inquietação'.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o artista recordou a primeira vez que ouviu esta voz de Abril no rádio dos seus avós, que ainda hoje em dia guarda.

Já na altura, apesar da tenra idade, sofria de alguma "inquietação". Não só pelas 'Mariazinhas' da sua vida, mas por outras tantas questões que, tal como cantava José Mário Branco, a Revolução acabou por não resolver na sua plenitude.

No ano em que se celebra os 50 anos do 25 de Abril e em que o mundo está "mais confuso", o lançamento de 'JP Simões canta José Mário Branco', ganha ainda mais significado, uma vez que, como descreveu JP Simões ao Notícias ao Minuto, continua a ser "fundamental não perder as noções básicas sobre os direitos e a integridade de cada um, mesmo que a pessoa escolha ter três pernas".

Desta forma, dia 24 de abril, o público poderá ouvir JP Simões a cantar José Mário Branco no Tivoli, em Lisboa, no âmbito das comemorações da Revolução dos Cravos.

'JP Simões canta José Mário Branco'. Como é que surgiu esta ideia de fazer um disco de homenagem a um dos maiores nomes de sempre da música nacional? Foi durante as várias revisitações avulsas que foi fazendo da obra de José Mário Branco?

Sempre gostei muito das músicas de José Mário Branco e há uns anos integrei num dos meus primeiros discos a solo uma versão de 'Inquietação' que gostei muito, que me soube muito bem cantar e que, inclusivamente, tive o prazer de o José Mário Branco me interpelar numa situação pública a dizer que gostava muito da minha versão. Algo que me deixou muito feliz.

Depois, lá para 2019 - ano em que José Mário Branco faleceu -, tive a proposta de pegar num cancioneiro de Abril. Estive a analisar as coisas e acabei por escolher José Mário Branco para grande parte do repertório. Era o mais relevante e era o que gostava mais de cantar. Sentia-me mais próximo da respiração, das palavras e da música de José Mário Branco.

Paralelamente a isto, o Hugo Ferreira, que é agora o diretor da Omnichord - editora que lançou este disco - mas que há muitos anos era da Rádio da Universidade de Coimbra, queria muito levar na altura José Mário Branco ao aniversário da rádio e ele não se mostrou muito disposto e eu disse que ia e levava a guitarra e tal. E fui. Ele gravou e ficou muito feliz com esse concerto. As condições de gravação não foram suficientemente boas para conseguir editar o concerto mas ficou sempre ali alguma coisa. E pronto, ele achava que, numa altura como esta, com tantas contradições sociais e políticas, José Mário Branco continuava a ser uma voz muito forte e muito presente e que era importante relançá-lo de alguma maneira e apareceu-me com o repto: ´Não queres fazer uma versão deste concerto ao vivo?'. Eu ouvi e gostei imenso, mas como já tinha um repertório com bastantes músicas de José Mário Branco e uma banda já pronta, com excelentes músicos para o fazer, sugeri-lhe fazer um álbum mais por aí, sem ser baseado no concerto ao vivo. E assim foi. Começámos a trabalhar o ano passado e está aí o disco.

Estou muito satisfeito porque não é um disco grande, é um disco com oito canções e eu acho que elas são bastante representativas do trabalho de José Mário Branco e, na minha modesta opinião, acho que estão também bem tocadas e interpretadas

E quando é que este fascínio por José Mário Branco surgiu? Ainda se lembra da primeira vez que o ouviu?

Ouvi 'Inquietação' na rádio, no belíssimo rádio dos meus avós, que ainda hoje em dia guardo na sala onde costumava estudar, e a música ficou-me guardada sempre. Isso deve ter sido logo quando ela saiu, em 82, talvez. Era muito miúdo mas já devia ter a minha inquietação [risos]. Ao longo dos anos fui ouvindo sempre José Mário Branco, entre outras coisas. E fiz qualquer coisa nesse sentido, quando fiz a minha versão de 'Inquietação'. Mas agora a coisa foi diferente. Para fazer este disco, para preparar estes espetáculos, tive de pesquisar mais, fui conhecê-lo melhor. Percorri tudo o que há disponível de José Mário Branco, discografia, entrevistas, depoimentos.

Como escolheu as oito canções de José Mário Branco que fazem parte do álbum?

O primeiro critério foi escolher as que eu achava que podia interpretar melhor. Aquelas com que me sentisse mais confortável a cantar, que me fizessem mais sentido usar o meu ser como ferramenta para as reinterpretar. Pensámos em vários temas, os que ficaram foram os que achei que estavam mais bem feitos, tão simples como isso. Eram mais naturais. Depois, outro critério foi estudar um pouco mais do repertório menos conhecido de José Mário Branco. Acabámos por dividir o disco entre temas mais emblemáticos, mais conhecidos, e temas que não eram muito desenvolvidos, mas que eram temas belíssimos. Há canções que temos agora nos concertos, que são mais dos que as do disco. Poderia, eventualmente, tê-las colocado no disco se tivesse tido mais tempo. Mas estou muito satisfeito porque não é um disco grande, é um disco com oito canções e eu acho que elas são bastante representativas do trabalho de José Mário Branco e, na minha modesta opinião, acho que estão também bem tocadas e interpretadas. Portanto, estou muito satisfeito com o trabalho final.

É sempre necessário falar destes temas, como se vê agora. É sempre necessário falar-se do fascismo para se evitar que ele se repita. Pelos vistos não falámos o suficiente

Acha que o lançamento de um álbum que recorda José Mário Branco ganha ainda mais relevância por este ano se celebrar os 50 anos do 25 de Abril e por estarmos a assistir a uma ascensão da extrema-direta?

Creio que sim. Sempre achei que o José Mário era relevante e o que dizia, com mais ou menos cuidado, dentro de determinadas conjunturas políticas e sociais, sempre muito relevante. Portanto, se o disco tivesse sido lançado o ano passado ou nos 43 ou 54 anos do 25 de Abril teria sempre relevância. Mas creio que faz ainda mais sentido quando é integrado num movimento maior, onde haja muita gente, principalmente da área cultural e musical, a puxar um pouco essa música e a puxar música nova, naturalmente, porque há muita gente a fazer trabalho muito relevante em termos de intervenção social e política. E isso tem de ser trabalho conjunto. No final de contas, estou aqui a apresentar uma voz que é extremamente válida e tem muita relevância neste momento em que nos encontramos.

Um dos temas que escolheu para sair neste disco é 'Mariazinha', uma canção emblemática de José Mário Branco, incluída na obra de 1971 'Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades', que relata uma vivência feminina cheia de desafios e dificuldades, como a pobreza, a opressão e a exploração. O que o levou a escolher esta música?

É sempre necessário falar destes temas, como se vê agora. É sempre necessário falar-se do fascismo para se evitar que ele se repita. Pelos vistos não falámos o suficiente [risos]. Há ainda muito desequilibro, muita repetição do passado. Muitos clichés e muitas ideias e situações que perduram. É evidente que, em Portugal, as coisas mudaram muito, mas se olharmos para o resto do mundo, o papel da mulher é ainda extremamente inferiorizado. Em muitas, muitas sociedades ainda.

Apesar disso, um dos temas que tem dado que falar nos últimos dias tem sido o lançamento de 'Identidade e Família', um livro que reúne um conjunto de textos de várias personalidades da vida pública, apresentado pelo antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, e que ataca a "ideologia de género" e alerta para a "destruição da família". Acha que isso é a prova viva de que é necessário voltar a trazer 'Mariazinha' para a boca do povo?

Sim. Não é o facto de as pessoas se obrigarem a fazer quotas na vida política e empresarial que muda as coisas. Tem de ser um trabalho conjunto, entre todos os géneros. O que eu vivi e eu cresci com os meus avós. A maior parte das pessoas da minha infância são pessoas que passaram praticamente a vida inteira no interior de um regime diferente, muito condicionado por valores tradicionalistas, especialmente ligados à Igreja Católica, e com uma versão muito rígida do que é hierarquia social e a dignidade de cada condição, onde, claramente, a mulher era secundarizada e tinha um papel muito preciso. E parece que agora o ex-primeiro-ministro apareceu a tentar devolver a mulher ao seu íntegro papel de fada do lar.

Há sempre em todas as canções de José Mário Branco o coração da utopia a falar. É aquilo que eu ouço (...) O que ele fala claramente é, acima de tudo, da continuação, mais ou menos subtil, das opressões e acho que isso é e, infelizmente, será sempre assunto do dia

E por que razão acha que isso aconteceu?

As pessoas têm medo das mudanças de valores. E é por isso que, quando o mundo fica um pouco mais confuso, como está agora, onde há uma espécie de quase protagonismo individual - toda a gente tem o seu jeito, o seu género e o seu modo - isso assusta as pessoas. Assusta as pessoas porque, tendencialmente, nós procuramos alguma ordem onde nos encaixar e grande parte das pessoas não está a encaixar nesta ordem mundial. A vida humana nunca foi fácil. Teve sempre convulsões, teve sempre agressores e agredidos. E continuará sempre a haver desafios. Talvez num mundo semelhante ao 'Admirável Mundo Novo', onde as pessoas estejam todas sob o efeito de químicos, todos sejam felizes. Essa é uma questão que eu coloco sempre quando penso nesse livro.

Mas voltando à 'Mariazinha'. O que me tocou mais nesta canção é que eu sou produto de muitas Marias. Trisavó, bisavó, avó, mãe. Eram todas Marias e todas elas com o seu particular destino de mulher. A minha avó era de facto uma fada do lar típica dos anos 50 e daquela ideia, mais ou menos salazarista, conservadora e uma pessoa triste. Queria ter desenvolvido uma outra vida, de outro modo. Podia ter sido pianista, mas teve de ser dona de casa. Ela dizia: 'O que toco agora são tachos e panelas'. Ela começou por ter formação em piano e era uma excelente música. Contudo, teve de lidar com todos os desequilíbrios dos papéis de homem e mulher. Todos os silêncios que ficam na casa. Todas as solidões. Todos os abandonos. A falta de realização pessoal, fui assistindo a tudo isso à minha volta. Não excessivamente, mas sempre fui um puto esperto e aquilo tocava-me um bocado. Perguntava-me porque é que tem de ser assim. Porque é que há sempre esta tristeza em todas estas mulheres da minha família. Uma espécie de contenção. Medo de existir. Creio que a 'Mariazinha' sempre conseguiu resumir muito uma série de sentimentos que fui trazendo também da minha vida familiar e tenho a certeza de que não é só a mim que provoca este sentimento, esta revisitação do mundo que não precisamos de repetir.

Mesmos os problemas de identidade de género...

O fundamental é dar um passo atrás e salvaguardar o direito de toda a gente a ser o que quer ser desde que não chateie ninguém. Independentemente de todo o fogo de artifício, onde as pessoas acham o que está certo e está errado, e esta vigilância moralista a que toda a gente está a ser sujeita. Acho que, neste momento, as pessoas estão a evoluir para reagir a estas coisas de outro modo. Mas o que é certo é que, na confusão desta luta desenfreada sobre o que está certo e o que se pode ou não dizer-se, o fundamental é não perder as noções básicas sobre os direitos e a integridade de cada um, mesmo que a pessoa escolha ter três pernas. E é isto que eu sempre vi e ouvi em grande parte da obra de José Mário Branco. É essa vontade de, primeiro, emancipação de velhos hábitos, de respeito mútuo e, acima de tudo, de compaixão e humanidade. E, depois, aquela coisa que ele teve, aquele longo período de indignação pelo facto de a Revolução não ter chegado tão longe quanto o coração queria. Há sempre em todas as canções de José Mário Branco o coração da utopia a falar. É aquilo que eu ouço. Mesmo que às vezes não seja muito claro do que deveria haver. O que ele fala claramente é, acima de tudo, da continuação, mais ou menos subtil, das opressões e acho que isso é e, infelizmente, será sempre assunto do dia.

Fico feliz por estar a cantar estas canções. E a fazê-las reviver. Elas são precisas. Fazem sentido e são boas músicas e muito bonitas

Qual é a sua música preferida do disco? Aquela que mais gostou de interpretar?

Durante algum tempo queria que o single fosse 'Sopram Ventos Adversos'. É um tema que descobri mais recentemente, durante toda esta pesquisa. E essa canção, que vem de um poema de Manuela de Freitas, sempre me tocou bastante. Nem sei explicar porquê. É um pouco abstrata, no sentido em que há também um certo tom de utopia dececionada. A realidade não esteve à altura do sonho. Essa foi a música que mais me custou gravar porque me emocionava. Mas eu gosto de todas. O critério para escolher estas músicas, como já disse, foi conseguir cantá-las com amor, carinho e empenho. Nenhum deles, felizmente, foge a esta regra.

No dia 24 de abril, no âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, apresenta o disco ao vivo, no Teatro Tivoli, em Lisboa. Este espetáculo ganha ainda mais significado por ser nesta data?

Pela minha parte não posso garantir o que o público sente ou não sente. Tenho tentando que tudo o que faça implique alguma presença honesta e sincera da minha existência [risos]. E este disco não foge à regra. Só que, de facto, esta é uma matéria que é muito mais abrangente, toca muito mais pessoas. Como dizia o Fernando Pessoa, quando era acusado de ser frio: 'Sinta quem lê'. Pela minha parte este tem sido um processo belo de reencontro e esclarecimento. Tem-me permitido pensar em muita coisa por entre as palavras de José Mário Branco, pelo prazer de cantar estas músicas. Tem mexido comigo enquanto cidadão, ser humano, intérprete, e acredito que vai fazer isso com as outras pessoas.

Os concertos têm sido extraordinariamente bem frequentados [risos]. Têm ido muitas pessoas. Vão lá por mim, mas também para ouvir as músicas de José Mário Branco. É uma espécie de parceria. E é preciso que isto fique claro. É também pela escolha do reportório e fico feliz por isso. Fico feliz por estar a cantar estas canções. E a fazê-las reviver. Elas são precisas. Fazem sentido e são boas músicas e muito bonitas.

Leia Também: Brigada Victor Jara assume legado da revolução desde 1975

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