João Gil acaba de lançar mais um álbum a solo. Desta vez, sobre o fim da ditadura e sobre como vê a democracia. 'Só Se Salva o Amor' é um disco de intervenção, escrito quase integralmente por ele, onde expõe e canta o realmente que sente.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o artista português lembrou o "puto" que era em Abril de 74 e o alívio que o fim do regime e da guerra trouxe à sua geração.
Apesar dos "cabelos brancos" e de a gravidade ter deixado algumas marcas no seu corpo, a "inquietação" continua a ser a mesma que tinha há 50 anos, assim como a crença de que só o amor importa, no final de contas.
Eu acho que o papel dos artistas é levantar questões mais do que apontar caminhos
Lançou recentemente 'Só Se Salva o Amor', um álbum que faz uma reflexão sobre a democracia e a liberdade. Podemos dizer que este é um disco de música de intervenção?
Absolutamente. Aliás, como todos os meus discos. A diferença é que este é mais focado num determinado tipo de intervenção que assinala 50 anos de democracia e assinala o facto de ser escrito por mim. Basicamente, há uma relação direta entre aquilo que eu penso e aquilo que eu canto. É um disco que levanta questões, sem nunca ter a pretensão de ser moralista, lançar dogmas ou dizer que o caminho é só por ali. Vamos fazer 50 anos de democracia. Eu tinha 16/17 anos quando foi o 25 de Abril e já na altura era ativista. Este disco é como o fechar de um ciclo. Como é que passados 50 anos o mesmo miúdo vê o mundo daquela altura, com os mesmos olhos de então, com a maturidade de hoje em dia. Digamos que 'Só Se Salva o Amor' é uma espécie de reencontro, constatando aquilo que está a se passar em Portugal e no mundo.
No decorrer do álbum, que já descreveu como humanista, fala do dia da Liberdade, da mentalidade subserviente e periférica, da falta de sentido coletivo, dos migrantes, dos velhos do Restelo, do Papa, do ódio e da saudade. São temas com que se debate frequentemente e sobre os quais sentiu necessidade de transpor para a música?
Eu acho que o papel dos artistas é levantar questões mais do que apontar caminhos. Levantar questões, ser esponja daquilo que acontece com a nossa vida particular e com o mundo. Há um olhar individual, claro que sim, mas o mundo está aí para todos. A informação está disponível a todo o mundo, no relógio, no telemóvel, no computador. Temos notificações sobre o que está a acontecer em todo o lado, por todo o mundo. É o que há de novo em relação há 50 anos. A velocidade como a informação chega, a notificação, o direto. Uma certa velocidade, rapidez, uma quase dependência de ver o que está a acontecer agora. O Mourinho assinou pelo Fenerbahçe. Ahhh, caramba [risos]. O 'ahh...ah...ah'.
O tempo, a qualidade do tempo foi se alterando um pouco, mas o mundo está aí ao mesmo tempo para todos. Aquilo que eu vejo é o que todos nós vemos. No fundo, constato apenas. Eu falo do Papa, como falo da saúde mental, que é um assunto global e sobre o qual levantamos o tapete e mandamos para baixo o lixo com a vassorinha, tapamos, com esperança de esquecer. São muitos os assuntos que acho que deviam ser lembrados. As pequenas vitórias que cada pessoa tem quando ultrapassa um trauma de infância, ou porque denunciou um abuso, ou porque teve a coragem, por exemplo. Este disco está mesmo carregado de informação, informação - espero que - útil.
Quando acaba a memória do último homem que se lembra da Segunda Guerra Mundial começa novamente um problema
Esse jovem de que falava há pouco teme que, com o passar do tempo e a falta de memória dos tempos de ditadura, a liberdade que conquistamos há cinco décadas corra risco?
Há esse risco na Europa. Quando acaba a memória do último homem que se lembra da Segunda Guerra Mundial começa novamente um problema. E acho que a Europa está outra vez a desenterrar velhos fantasmas, que levaram à II Grande Guerra, desta vez com contornos complicados porque pode mexer com armas nucleares e representar o fim da espécie. Ainda não acordamos todos para essa realidade e eventualidade, que pode ser fatal para todos. Isto, agravado com o facto das alterações climáticas serem uma realidade em crescendo. Isso vai provocar êxodos enormes, as migrações não vão ser só pelo facto de conquistar vidas melhores, vão ser também para fugir do sol a mais, do calor a mais, fogo a mais, da chuva a mais, do frio a mais. São muitas coisas novas que estão a acontecer. Não sou pessimista, antes pelo contrário, mas acho que quanto mais falarmos dessas coisas mais acordamos para elas e, eventualmente, fazemos parte de movimentos que possam alterar o rumo das coisas e passarmos desta fase da tinta em cima das empresas, dos ovos podres a cair em cima dos políticos, dessas coisas um bocadinho primárias para passarmos a uma segunda fase, muito mais organizada e consciente. Está a faltar ecologistas radicais pela luta contra as alterações climáticas, contra o abuso dos combustíveis fósseis, está a faltar isso mas com 'fato e gravata'. Com outro patamar, outro tipo de movimento. Mais institucional. Não vemos partidos a serem militantes com algum radicalismo justo para confrontar as empresas e poderes instituídos em relação às alterações climáticas. Não temos ainda. Está tudo alocado a um grupo de jovens de cabelo cor de rosa e umas rastas. E é fixe, não critico. Mas acho que enquanto esta luta não sair dali, eles estão a fazer um esforço enorme de alerta, têm razão, às vezes perdem-na porque as formas de lutam não são muito mobilizadoras. Afastam e acabam por ser contraproducentes. Falta um passo objetivo, organizado, efetivo, político, com cabeça, tronco e membros.
Até nestes casos acha que 'Só Se Salva o Amor'?
Sim. Em todos os casos só se salva o amor, mesmo, porque isto parece um neo-hipismo, parece um 'neo-make love not war' [façam amor, não a guerra]. Podia ser, mas não é. Quando eu digo que só se salva o amor, refiro-me não só ao amor que se tem entre as pessoas que se amam, como filhos, netos pais, avós e amigos, laços sociais de amigos, que muitas vezes são a causa da longevidade das pessoas, mas também das grandes causas do clima, da capacidade de calçar os sapatos dos outros, de termos um comportamento mais coletivo do que individualista, de sermos mais preocupados com ser do que ter. É isso que eu quero dizer com 'Só Se Salva o Amor'.
Se levantamos uma espécie de balão metafórico e observarmos cá para baixo, as camadas de civilização, desde que há vida na terra, desde os primórdios até hoje, as páginas da história escritas a sangue, os países, as revoluções, vamos ver que, no final, só se salva mesmo o amor. Os amigos têm razão quando brindam e dizem que é isso que levamos da nossa vida. É realmente! Parece idílico mas não é. A espécie humana só se salva devido à capacidade que temos de fazer coisas boas. O mundo está cheio de coisas boas.
Há uns tempos fiz parte de uma equipa, com a Ana Mesquita e o Mia Couto, 'A Viagem pelo Esquecimento' e o Mia Couto falava disso mesmo, daquilo que já nos esquecemos enquanto humanidade e que foi extraordinário. Portanto, há todo um esquecimento, essa informação está em nós enquanto espécie humana, lá atrás no cérebro enquanto pessoas que habitam num planeta, que respiram oxigénio e é importante realçar isso. Temos a capacidade de fazer coisas boas. De outra maneira não ficamos na história nem dos filhos e muito mais do país.
Conheço e tenho visto muitos jovens com pensamentos mais retrógados que o meu bisavô
Já que fala em recordações, que lembranças é que tem do dia 25 de Abril de 74, quando era um jovem de 17 anos?
Tenho muitas lembranças. Sem demagogia queria também dizer uma coisa que constatei e isso não tem nada a ver com autoelogio nem com conversa da treta: continuo a ser o mesmo puto que era na altura [risos]. Ok, tenho cabelos brancos, o corpo já não é o mesmo, a gravidade… está-se bem! [risos]. Mas eu sou o mesmo. Tenho a mesma inquietação, sou a mesma pessoa, é inacreditável e essa é uma boa nova que temos de dar às pessoas que têm a minha idade [risos]. Quando se é jovem, é-se jovem. Não há um estado só porque as células estão mais fresquinhas. Quando se é, é-se. Porque eu conheço e tenho visto muitos jovens com pensamentos mais retrógados que o meu bisavô, que já cá não está, e estão agora na flor da idade.
Mas vamos até 74. No dia 25 de Abril recebi uma chamada muito cedo a dizer: 'Prepara-te que não sabemos ainda muito bem se vai pender para um lado se vai pender para o outro'. A segunda chamada que eu recebo é: 'Rua!' E quando vou para a rua e cheguei àquela zona de Lisboa entre o Carmo, o Chiado, éramos muito poucos ainda. E a ideia era fazermos número, para que os soldados sentissem apoio humano, não se sentissem sozinhos. Passados minutos, meia hora, uma hora, o povo começou, começou, começou... e tornou-se irreversível. A memória que eu tenho é que foi realmente 'O Dia Mais Bonito' [canção que faz parte do álbum] porque, para um miúdo novo, se não tivesse acontecido o 25 de Abril ia para a Guiné. O fim da guerra e a mudança de regime significou uma libertação enorme para todos e um alívio enorme para a minha geração. Significou também o início da construção de tudo. Quando este processo nos apanha nessa idade dos 16/17 anos tem um significado diferente porque eu senti-me completamente a voar. Acho que não dormi durante dias. Pelo menos até a 1.º de maio não dormi. A felicidade era tão grande, tão grande que era uma euforia coletiva. Grande comunhão de celebração, acho que está para vir algo assim... nem se ganharmos o Campeonato do mundo vai ter aquela expressão [risos].
A certa altura, em 'O Dia Mais Bonito', diz que é do 'tempo do porque sim e do porque não'. Que importância teve a música na revolução?
Muita coisa. Quando vem o 25 de Abril, nós já participávamos em sessões de esclarecimento do MDP/CDE, com cantores de intervenção como o Zeca Afonso, Rui Mingas. Encontros estudantes, associações de estudantes, fizemos muitas reuniões onde se cantava e, portanto, a música já era uma ótima auxiliar emocional de grande comunhão entre nós, como se fosse uma proteção, como se ao cantarmos aquelas canções sentíssemos um conforto espiritual bastante grande, uma comunhão entre todos.
Em que palcos poderemos agora ouvir 'Só Se Salva o Amor'?
Dia 6 de junho vamos atuar em Torres Vedras, que é um local que tem uma história incrível. Fiz um hino especial para celebrar o 109.º aniversário da Caixa Agrícola de Torres Vedras, que é uma instituição muito ligada à região, ao povo. É uma casa mutualista, não é um banco normal, é muito afetivo, afetuoso, ligado às pessoas. E também não podemos esquecer da história de Torres Vedras, daquilo que aconteceu, que é uma espécie de aldeia gaulesa que resistiu e que com os ingleses construiu as linhas de torres. Este concerto vai assinalar isso e vai ser assim o próximo espetáculo. Recentemente estivemos em Leiria…
E qual foi o feedback desse concerto?
Muito bom! Há uma identificação com aquilo que se diz nas letras, sinto uma empatia muito grande. Há muita gente que pensa assim, que se preocupa. Muitas pessoas que não aceitam nem paternalismo, nem moralismo. E isso é o que eu gosto mais. O que eu gosto mesmo é de verificar que muito do público que eu encontro é pessoal como eu. Que é insubmisso, não diz que sim a tudo, que pensa também pela sua cabeça, que gosta de ser informado mas não gostam nada que lhe digam que tem de ser por ali.
Gosto de sentir que os portugueses estão, de uma maneira geral, cada vez mais sofisticados, tanto no mundo rural como nas cidades cosmopolitas. Quem viu Portugal naquela altura viu um país a preto e branco, sem qualquer tipo de sofisticação, sem qualquer tipo de mundo, era muito atrasado, tacanho. E quando vejo alguém a dizer que antes é que era bom, acho estranho. Estranho e bizarro, não viveu no mesmo país que eu com certeza. Portugal está agora a cores. Temos uma democracia com problemas, mas não se compara com o que tínhamos. Temos a hipótese de falar deles de construir um Portugal melhor, todos juntos.
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