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Silêncios das famílias que todos sabem mas fingem não saber em livro premiado

O livro de Fernanda Ribeiro, a primeira mulher a vencer o Prémio Revelação Literária UCCLA-CMLisboa é sobre aquilo que todos sabem, mas fingem não saber, dos silêncios das famílias e das várias cores com que a escravatura as pintou.

Silêncios das famílias que todos sabem mas fingem não saber em livro premiado
Notícias ao Minuto

08:29 - 14/09/24 por Lusa

Cultura Literatura

Brasileira de Minas Gerais, o estado onde ocorreu "um dos sistemas de escravidão mais violentos da lusofonia", Fernanda Ribeiro acalentou a história de "Cantagalo" durante uma década, partindo da ideia de uma família mestiça e das suas "desigualdades internas".

 

Este tipo de formação familiar, "muito característica do Brasil" no início do século XX, faz parte de uma "história colonial".

"Existe a família legítima, que era da mulher branca com o pai branco, os filhos brancos, e todos os filhos tinham os criados deles, que eram mulheres negras", de quem nasciam os "bastardos, que geralmente eram criados dos próprios irmãos. Todo o mundo sabia, mas todo mundo finge que não sabe. Então, esse silêncio é isso, é o que todo mundo sabe, mas finge que não sabe", disse.

A família de que parte a história nasce de um casamento arranjado entre Dona Praxedes, um nome mineiro muito comum na época, descendente de europeus e disso mesmo orgulhosa, que se vê obrigada a fazer um casamento com um rapaz que é negro. "Cantagalo" conta as histórias dos descendentes desse casamento.

Fernanda Ribeiro, jornalista de profissão e investigadora em neurobiologia, condimentou esta "história indigesta" com uma linguagem local, de Minas Gerais, que apesar de "parecer inofensivo" e "bonzinho", esconde "uma história muito agressiva, muito violenta".

"Foi um dos sistemas de escravidão mais violentos da lusofonia, que era a escravidão de retirar o ouro de minas; eles escravizavam crianças para escavar ouro de minas. Um brasileiro escravizado não durava mais de dez anos", afirmou.

E acrescentou: "Em contraposição a esse sistema tão violento surgiu essa linguagem que fala em diminutivos, e eu quis usar essa linguagem, que expressa um simulacro de graciosidade, de cordialidade, para fazer essa história, que é uma história indigesta, que passa pela formação das famílias, pelo disturbo familiar, incesto...".

Apesar de o enredo se passar no século passado, Fernanda Ribeiro identifica uma atualidade nestes silêncios. "O mundo demora mais para mudar em Minas. Essas estruturas permanecem lá e com força ainda".

Abolida no Brasil em 1888, a escravatura é uma sombra presente nesta obra, permanecendo ainda real em alguns locais brasileiros, conforme vai atualizando a imprensa.

"Até hoje tem trabalho escravo no Brasil. Não tem na lei, mas tem na prática. No interior do Brasil, em cidades que trabalham com a plantação de cana, volta e meia saem notícias de que tem trabalhadores em regime de escravidão", afirmou.

Fernanda Ribeiro explica que, em alguns casos, o dono do lugar chega, dá alimento para a pessoa e fala que, para pagar o seu alimento, tem de trabalhar, criando "um sistema de trabalho escravo".

"Isto é muito comum no Brasil. Todo mundo sabe, mas não se faz nada de efetivo contra aquilo", observou, adiantando que usa estes temas fraturantes na literatura, porque "não dá para ignorar".

Desses "silenciamentos" faz também parte o próprio processo linguístico brasileiro. "Um país do tamanho do Brasil - é um país muito grande - e não tem uma segunda língua, só o português; mas esse processo de unificação não foi pacífico, essas línguas foram sendo extintas, sendo mortas. Tem uma palavra ou outra que é presente no nosso português, que é a única memória".

Outro tema fraturante que Fernanda Ribeiro aborda na sua obra é o papel da mulher, com vários relatos que mostram os obstáculos que esta teve, e ainda tem, de ultrapassar, sendo a personagem principal uma mulher: Dona Praxedes.

Ser a primeira mulher a vencer este prémio de revelação literária teve, também por isso, um significado "muito especial".

"Eu tive esperança, mas não tinha expetativa, porque não parecia lógico um livro como o meu ganhar, porque é um livro em que a maioria das personagens são mulheres, com personagens que nunca saíram de casa" e palavras locais, como cantoneira (prostituta) ou boiota (pouco inteligente).

"Cantagalo" está publicado em Portugal pela editora Guerra e Paz, estando prevista a sua edição no Brasil. Lançado na última edição da Feira do Livro de Lisboa, em junho, foi apresentado recentemente em Cabo Verde durante o XII Encontro de Escritores Lusófonos, que decorreu entre 05 e 08 de setembro, no qual Fernanda Ribeiro participou.

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