À boleia de uma viagem atribulada ao Chile nasceu uma reflexão sobre a efemeridade da vida e a iminência da morte, pela mão de Afonso Cruz. É que, em 2019, o escritor português foi protagonista de dois episódios que quase colocaram um ponto final na sua vida, - uma perseguição por dois blindados conduzidos por carabineros, sem motivo aparente, e um acidente de automóvel -, agora retratados em 'O que a Chama Iluminou'.
Pautado por "uma ditadura muito, muito violenta", pelos massacres de indígenas e pelo "problema do clima", este "fim do mundo geográfico" afigurou-se "como um lugar perfeito para falar sobre o fim, sobre a perda, sobre o luto". Quem o garantiu foi o próprio Afonso Cruz, que recordou, em conversa com o Notícias ao Minuto, que "não há maneira de desvincular a natalidade, essa coisa de que há sempre algo a nascer, de algo que está sempre a ser enterrado ou a morrer continuamente".
Apesar desta noção transformadora, o que é facto é que "a perda será sempre uma ferida, [...] a menos que deixemos de amar essa pessoa que perdemos". Aliás, e como salientou o autor, é exatamente "essa dor que não permite o esquecimento", já que, "quando deixa de doer, deixamos de pensar em determinadas pessoas, em determinados momentos".
Mas, na morte, "não estamos nos ossos", nem em qualquer cemitério ou urna. Ao invés, estamos perpetuamente "na tal chama que iluminou", que se encarregará de contar todas as nossas peripécias "enquanto houver luz para as transportar".
Há uma dor que é inevitável e há uma dor que, por vezes, o próprio artista deseja; o artista, ou o atleta, ou muitos de nós noutras atividades mais banais. Quando queremos superar-nos, isso automaticamente provoca alguma dor, porque estamos a tentar atingir o limite ou ultrapassar esse limite do que sabemos ser capazes
Antes de ser publicado em livro, 'O que a Chama Iluminou' foi apresentado num espetáculo que combinou música, dança, narração, fotografia e performance, que decorreu na Capela da Imaculada, em Braga. Porquê que optou por esta primeira via?
Esse espetáculo foi apresentado e foi feito inicialmente para o Festival Utopia, em Braga. Foi um desafio que me foi colocado. Porque tinha este livro já muito avançado, pensei que poderia transformá-lo e cortei algumas partes para poder inseri-las no espetáculo, que é acompanhado de fotografias, algumas que aparecem no livro, mas também de música e de dança, graças à atriz que fez essa adaptação comigo, a Mariana Ramos Correia.
Destes episódios em que se viu frente a frente com a morte surgiu uma reflexão sobre a vida, a humanidade – ou a falta dela – a ditadura, a devastação da natureza, entre outros temas. Ao longo do livro há a sugestão de que vivemos para sofrer e, ao mesmo tempo, para transformar esse sofrimento em arte. Concorda, então, com a máxima de que um artista tem de ser um sofredor?
Não, não necessariamente. Não é tanto isso nesse sentido. Há uma dor que é inevitável e há uma dor que, por vezes, o próprio artista deseja; o artista, ou o atleta, ou muitos de nós noutras atividades mais banais. Quando queremos superar-nos, isso automaticamente provoca alguma dor, porque estamos a tentar atingir o limite ou ultrapassar esse limite do que sabemos ser capazes. Há aqui sempre uma relação com a dor.
No entanto, quando é feita em liberdade, é até uma fonte de alegria e de felicidade quando se consegue. Por isso também digo no livro que a felicidade não é propriamente o objetivo do ser humano, é uma consequência de determinados objetivos que nós nos propomos, de determinado significado que entregamos à nossa vida ou a que nos dedicamos. Depois, há um outro tipo de dor, que não é desejada, mas que, inevitavelmente, haveremos de passar por ela.
Há que saber lidar com essa dor e com essa perda, não para as substituir ou conseguir solucionar, mas para poder continuar a viver sem nos tornarmos demasiado críticos ou amargos. Não é propriamente uma apologia da dor, mas saber que há dois tipos de dores que sofremos; aquelas que, de certa maneira, aceitamos sofrer por algo que desejamos muito, e as outras que nos são impostas.
A morte permite-nos olhar para as coisas mais importantes em determinado prazo que podemos imaginar para nós e, portanto, é uma boa conselheira. É uma figura à qual podemos perguntar o que é que devemos fazer do futuro
É o caso do luto, por exemplo.
Sim, exatamente.
E ganhou uma nova perspetiva sobre a morte e o luto depois dos incidentes que sofreu ou já pensava sobre estas questões?
Sim, já pensava nelas, evidentemente. Já tinha escrito bastante sobre a perda e sobre a morte, e claro que este é um tema muito universal, que nos preocupa a todos. Até há muita gente que acredita que somos o único animal que tem consciência da sua própria morte, o que é algo em que não acredito.
Aliás, nunca acredito nessas tentativas de dizer que o ser humano é o único animal que cozinha, ou que é cruel, etc. Normalmente, essas ideias estão erradas e, passado uns tempos, conseguimos perceber que encontramos em alguns animais comportamentos muito semelhantes aos do Homem, que achamos que são típicos do ser humano.
Para alguns monges, é muito importante a lembrança da morte; o 'memento mori', que é essa constante recordação de que somos mortais. Isso traz-nos um estado de urgência, porque tenho de agir antes que me aconteça alguma coisa, mas também nos mostra melhor qual o caminho que queremos seguir. Se colocarmos determinado prazo a nós mesmos – vamos imaginar que só tenho um dia ou cinco anos de vida – o que é que faríamos se o conhecêssemos? São urgências diferentes; se só tiver um dia, escolherei determinadas coisas que serão inevitavelmente diferentes daquelas que escolheria se tivesse um prazo de cinco anos.
O riso também pode ser usado como uma arma. Quando uma pessoa se ri de algo, é porque não a teme. Tenho perfeita consciência disso porque, quando me zangava com o meu filho mais novo, ele ria-se. Não havia nada mais agressivo do aquele riso, porque não levava a sério a nossa zanga. Muitas vezes é isso que nos resta face à morte, rirmo-nos dela
A morte permite-nos olhar para as coisas mais importantes em determinado prazo que podemos imaginar para nós e, portanto, é uma boa conselheira. É uma figura à qual podemos perguntar o que é que devemos fazer do futuro. A morte acompanha-nos sempre, é um tema recorrente, muito comum na literatura. A perda também, porque é algo com o qual é muito difícil de lidar. Já pensava nisso muito antes, porque também fui perdendo ao longo da vida uma série de pessoas muito importantes para mim, incluindo, por exemplo, a minha mãe e todos os meus avós, por isso não há como escapar à reflexão sobre a morte.
Vivemos numa sociedade que se alia cada vez mais à positividade e ao otimismo excessivo e que encara a morte e o luto como tabu, apesar de serem processos pelos quais todos vamos passar e que são amplamente abordados em diversas formas de arte, desde a literatura à música. No Chile esta realidade é diferente?
Depende. Mesmo dentro da própria sociedade há muitas maneiras de lidar com a morte e, de facto, há uma corrente que pretende que toda a gente seja feliz, mesmo que, por vezes, seja à custa de fechar os olhos ao sofrimento do próximo. O que acontece hoje em dia é que existe espaço para tudo e mais alguma coisa, mas também existe muito trabalho a ser feito por pessoas especializadas no acompanhamento de doentes terminais, por exemplo, e que aprenderam a lidar com a morte de outra maneira.
Sempre tivemos uma relação de sátira com a morte e, por vezes, até fazemos dela divertimento. Acontece descrevermos cenas macabras em muitas pinturas, mas também na arquitetura – nas igrejas encontramos exemplos desses – e no nosso entretenimento mais corriqueiro. As pessoas veem filmes de terror e veem formas incríveis de morrer, trabalham esse lado espetacular da morte, [que mostra que] a morte pode ser um espetáculo, como sempre foi, nos circos romanos, por exemplo.
Há muitas maneiras de lidar com a morte, há muitas maneiras de olhar para a morte, e estes últimos exemplos muitas vezes têm um pouco que ver com o riso. O riso também pode ser usado como uma arma. Quando uma pessoa se ri de algo, é porque não a teme. Tenho perfeita consciência disso porque, quando me zangava com o meu filho mais novo, ele ria-se. Não havia nada mais agressivo do aquele riso, porque não levava a sério a nossa zanga. Muitas vezes é isso que nos resta face à morte, rirmo-nos dela. Ou, pelo menos, essa é uma das formas de lidar com a morte; a maior parte das vezes é a tristeza do luto e o enorme pesar que convoca e que nos afeta.
Já sabia que o Chile estava em convulsão social, que havia muitos problemas; os meus amigos chilenos todos me avisaram para não ir, a maior parte nem sequer estava lá, mas até brinquei com a situação, porque tinha acabado de vir de Bagdade e disse que não ia ter medo de ir ao Chile. A brincadeira acabou por não correr assim tão bem
[No Chile não é diferente], porque as sociedades ocidentais são todas elas muito parecidas. A maneira de lidar com a morte também encontra os seus nichos, os seus segmentos, ainda que todos muito semelhantes entre si. Se retirasse um prédio de Tóquio e o construísse em Portugal, seria japonês, mas, hoje em dia, qualquer prédio moderno construído em Portugal também podia ser construído no Chile e ninguém acharia que era um prédio português.
O campo ainda mantém alguma tradição face à cidade e é um lugar de resistência em relação a essa homogeneidade, que é aparente, porque há cada vez mais maneiras de abordar cada um destes problemas. A cultura também se democratizou muito, as pessoas têm acesso a uma série de coisas que antes não tinham.
O que pode ser encontrado no Chile como uma forma bem diferente de olhar para a morte é o mesmo que aqui encontramos nalguns lugares do campo; tem que ver com a maneira como os povos indígenas lidam com a morte e, nesse caso, há uma distinção grande, porque filosófica e eticamente o modo como se relacionam com o mundo à sua volta é bastante diferente do que conhecemos.
Quando a minha avó se lembrava da mãe, vinham-lhe as lágrimas aos olhos sistematicamente. Há aqui uma dor associada e é também essa dor que não permite o esquecimento. Quando deixa de doer, deixamos de pensar em determinadas pessoas, em determinados momentos
E como é que foi parar a este "fim do mundo" nas circunstâncias em que se encontrou?
Celebravam-se os 500 anos que Fernão de Magalhães iniciou a viagem de circum-navegação e convidaram-me para uma residência artística. Já sabia que o Chile estava em convulsão social, que havia muitos problemas; os meus amigos chilenos todos me avisaram para não ir, a maior parte nem sequer estava lá, mas até brinquei com a situação, porque tinha acabado de vir de Bagdade e disse que não ia ter medo de ir ao Chile. A brincadeira acabou por não correr assim tão bem.
Foi por isso também que decidiu focar o livro no Chile?
Sim. O Chile representa muito bem, ou representou, a determinada altura, esse fim do mundo geográfico. Teve uma ditadura muito, muito violenta, houve os massacres de indígenas, o problema do clima também está muito presente. Portanto, o Chile apresentava-se como um lugar perfeito para falar sobre o fim, sobre a perda, sobre o luto. Por isso começou a nascer este livro, a partir dessa confluência de fins.
A imagem das mulheres de Calama que procuram os restos mortais dos familiares no deserto fica-nos inevitavelmente gravada na memória. Como escreveu, "desenterrar aqueles ossos é uma forma de palpabilidade que adia a morte absoluta, a morte em que a pessoa que amamos foi esquecida", atuando como um "consolo para a ausência". Considera, assim, que passamos a vida a tentar adiar a morte e a lidar com esse vazio que, ao mesmo tempo, se alia ao amor – e daí o sofrimento de que falávamos?
Claro! Tentamos obviamente não morrer e, por vezes, usamos algumas batotas, tentamos distrair-nos da ideia de morte. Algum sofrimento está sempre presente na recordação. Quando a minha avó se lembrava da mãe, vinham-lhe as lágrimas aos olhos sistematicamente. Há aqui uma dor associada e é também essa dor que não permite o esquecimento. Quando deixa de doer, deixamos de pensar em determinadas pessoas, em determinados momentos.
Depois há a questão dos ossos e dos objetos; tendemos a lembrarmo-nos de pessoas através de objetos. Especialmente antes da existência da fotografia e do filme, mantínhamos alguns objetos – e ainda o fazemos – que pertenceram a pessoas de quem gostávamos muito ou que foram importantes para nós de alguma maneira. Esses objetos relacionam-nos com as memórias que temos dessas pessoas.
A necessidade de ter alguma coisa material como suporte da memória é, acho eu, universal. Todos tendemos a procurar objetos que nos relacionem com o passado. Por esses objetos somos capazes de nos sacrificar ou, pelo menos, de arriscar
Com o aparecimento da fotografia, temos algo que nos aproxima de uma forma ainda maior ou mais direta do que, por exemplo, o relógio que pertenceu ao avô, ou a cadeira de baloiço da avó. De qualquer modo, é algo que nos une à perda, às pessoas que perdemos e, como tal, é muito importante para nós. Essa relação háptica, de pele, de sentir algo físico ou material que nos relaciona com a memória é muito, muito importante. Há uma necessidade de tocar, de ter alguma coisa presente.
Aliás, percebemos isso claramente com a pandemia; é muito diferente estarmos a comunicar através de ecrãs e estarmos a comunicar fisicamente. Costumo brincar e dizer que a maior parte das pessoas não se lembra de nenhuma conversa que teve por Zoom, por exemplo – eu, pelo menos; não me lembro da quantidade de festivais que me convidaram, nos quais tive debates e conversas, e não me lembro de praticamente nada das pessoas, nem do que é que se falou, ao contrário de alguns encontros que têm essa fisicalidade e que duram muito mais tempo.
A necessidade de ter alguma coisa material como suporte da memória é, acho eu, universal. Todos tendemos a procurar objetos que nos relacionem com o passado. Por esses objetos somos capazes de nos sacrificar ou, pelo menos, de arriscar, porque têm um valor muito maior do que pode ser medido fisicamente.
Podemos ter o azar de morrer antes das pessoas que amamos e não passamos por essa dor. Mas lá está, a vida é assim mesmo e a importância das pessoas existe também porque somos efémeros. Se não fossemos, não éramos de todo importantes; essa eternidade retira-nos valor, retira-nos importância
A dado momento, diz que "o mundo está todo ele riscado por cicatrizes" e que "a perda é uma ferida aberta para sempre". Ainda assim, há uma expectativa de que os enlutados regressem 'ao normal', que nasce de uma incompreensão do que é a perda – e prova disso são os períodos de licença de nojo e a patologização do luto. Como é que podemos fazer a sociedade ver que, quando toca alguém, o luto já não a deixa, nem é algo para ultrapassar? Ou estamos condenados a ter de viver esta dor visceral para a compreender?
Acho que não é algo que tenha uma solução e que cheguemos a um ponto da nossa vida em que está tudo bem. A perda será sempre uma ferida; poderá estar aberta, poderá estar mais ou menos cicatrizada. É algo que sentimos, a menos que deixemos de amar essa pessoa que perdemos, por nos apercebermos de alguma coisa relativamente às nossas memórias, por termos sido ludibriados, ou porque descobrimos algo sobre essa pessoa, o que for.
De uma maneira geral, não resolvemos essa situação e, de certo modo, ainda bem, porque é uma maneira de não esquecer, como já falámos. O que é necessário e o que é muito importante para todos nós e para todos aqueles que perdem é terem capacidade para continuar a viver e a serem felizes, se se sentirem assim, e a viver as suas alegrias, tristezas, e por aí fora. O que é preciso é saber continuar a viver e não ficar encerrado nesse lugar horrível de dor, que normalmente acontece imediatamente a seguir à perda.
Podemos ter o azar de morrer antes das pessoas que amamos e não passamos por essa dor. Mas lá está, a vida é assim mesmo e a importância das pessoas existe também porque somos efémeros. Se não fossemos, não éramos de todo importantes; essa eternidade retira-nos valor, retira-nos importância. Se estivéssemos sempre presentes para outra pessoa durante uma eternidade, deixaríamos de ter valor. Essa eternidade que nos é roubada ou subtraída de alguma maneira transforma-se ela própria em importância. Como tal, uma vida sem isto é uma vida sem significado.
A maior parte dos povos indígenas nem sequer tem a palavra 'ter' e não conhece essa noção de propriedade. Têm uma noção de usufruto, mas a palavra para 'pertencer' significa mais que o objeto lhes faz companhia, o que até tem uns laivos poéticos
Seria um pouco a distopia de José Saramago, que também mencionou no livro; se ninguém morresse, colocar-se-iam outros problemas.
Claro. Há um conto de Borges que gosto muito e que cito muitas vezes a respeito disto; [fala de] uma terra de imortais onde um homem, quando lá chega, cai num buraco e ninguém o salva. Tem que ver com essa urgência de agir quando somos mortais. Para um imortal não há qualquer urgência; ele pode salvar aquela pessoa amanhã, daqui a mil anos ou a um milhão de anos. É igualzinho, porque tem toda a eternidade pela frente. Face à eternidade, um milhão de anos não é nada, é um segundo, um pestanejar. A vida perde o seu significado.
Abordou, também, o capitalismo, que acaba por "transformar seres humanos em coisas, e o seu trabalho em botões que jamais verão". "Os mesmos europeus que reduziam os indígenas a uma espécie de símios eram, eles próprios, reduzidos a uma extensão das máquinas que manobravam, não tendo, para quem lucrava com eles, mais valor do que uma roldana, um botão, uma rosca, uma alavanca." Afinal, não evoluímos assim tanto, uma vez que continuamos a encarar pessoas como ferramentas para produzir riqueza, não acha?
Evoluímos alguma coisa. Hoje em dia, a maior parte das pessoas têm algumas condições no seu trabalho, mesmo quando esse trabalho nos é imposto. Mas é uma imposição muito mais leve do que é, por exemplo, a escravidão. Há gradações diferentes no que respeita uma desumanização que antes o poder impunha a quase todos e com isso havia hierarquias entre seres humanos, que eram desumanizados ao ponto de serem considerados inferiores. Hoje em dia, a maior parte das pessoas não pensa assim, ainda que muita gente ainda tenha alguns resquícios de uma idade média qualquer. É um caminho que temos vindo a fazer, um caminho penoso e lento; podia ter sido muito mais rápido. As alterações são sempre lentas, especialmente quando lidam com a ética, mas são muito necessárias.
Claro, mas agora temos pessoas em condição de sem-abrigo que têm emprego e, mesmo assim, não conseguem ter um teto e comida, por exemplo.
Sim, na medida em que não escolhemos nascer e nascemos num mundo onde tudo é privado, tudo pertence a alguém. A maior parte dos povos indígenas nem sequer tem a palavra 'ter' e não conhece essa noção de propriedade. Têm uma noção de usufruto, mas a palavra para 'pertencer' significa mais que o objeto lhes faz companhia, o que até tem uns laivos poéticos. No caso de pessoas que nascem no meio da natureza, numa natureza que não está privatizada, tudo o que natureza dá pertence a todos; não há um dono daquela mangueira, daquelas mangas, daquele rio e dos peixes que lá habitam.
O Bertrand Russell tinha dado o exemplo da galinha e do avicultor: há uma galinha que tem a crença que o avicultor gosta mais dela do que das outras, porque a alimenta mais. Todos os dias mostra isso às outras galinhas e todos os dias a sua crença é fortalecida, porque todos os dias acontece a mesma coisa; é esta linha de uma sociedade a evoluir para melhor, até ao dia em que chega o Natal e o avicultor mata aquela galinha, o que corresponde ao colapso desta sociedade
Quem nasce numa sociedade como a nossa não tem acesso à comida, porque a comida está fechada à chave. A comida não é acessível a toda a gente e só é acessível por meio de dinheiro ou da caridade, por exemplo, quando devia ser um direito que todos temos quando nascemos.
O problema das pessoas em situação de sem-abrigo é um pouco complexo, porque tem que ver com muitas coisas. Há muitos problemas associados e, por vezes, nem sequer é um problema, há pessoas que escolhem sê-lo. Mas, sim, de uma maneira geral, é indigno que ainda hoje exista fome, é indigno que ainda hoje uma pessoa não tenha lugar onde pousar a cabeça, para usar a expressão bíblica.
Esta ideia do botão surge devido à captura de quatro indígenas de duas tribos, que acaba por ilustrar a tese de que o ser humano é "um bicho com essas duas possibilidades: a de ser o que é, humano, ou o contrário de si mesmo, desumano". Aliás, como escreveu, "Vonnegut também disse que somos a primeira sociedade a não se salvar a si mesma, por isso não ser lucrativo". Esta pretensão da produção e do lucro acima de tudo será o nosso fim, tendo em conta a conjetura em que vivemos?
É possível. Na verdade, o mundo tem vindo a estar cada vez melhor, as sociedades vão melhorando, temos cada vez mais conforto, há cada vez menos fome. Há muita coisa por resolver, mas a sociedade tem vindo a melhorar. Isso não quer dizer que, de repente, não entre em colapso, e pode acontecer por vários motivos. Pode ser algo que tenha que ver com o clima, com a guerra ou com outra coisa qualquer. Apesar de termos vindo a melhorar, com as suas flutuações, a verdade é que isto é um pensamento indutivista. Ou seja, vamos observando determinadas coisas que corroboram esta ideia ao longo do tempo, mas não quer dizer que, a determinada altura, não surja algo que destrói toda esta crença.
O Bertrand Russell tinha dado o exemplo da galinha e do avicultor: há uma galinha que tem a crença que o avicultor gosta mais dela do que das outras, porque a alimenta mais. Todos os dias mostra isso às outras galinhas e todos os dias a sua crença é fortalecida, porque todos os dias acontece a mesma coisa; é esta linha de uma sociedade a evoluir para melhor, até ao dia em que chega o Natal e o avicultor mata aquela galinha, o que corresponde ao colapso desta sociedade. Isso é algo que pode vir a acontecer e até julgo que é muito provável que aconteça.
Quando saímos de um lugar, começamos noutro. Tal como digo no prefácio, não há maneira de desvincular a natalidade, essa coisa de que há sempre algo a nascer, de algo que está sempre a ser enterrado ou a morrer continuamente. É precisamente por morrer continuamente que se nasce continuamente
Somos demasiados e estamos aqui numa corda bamba; sempre estivemos, mas agora de uma maneira que pode facilmente pender para uma tragédia global, como pode também pender facilmente para algo impensável para nós, mas que seja uma espécie de sociedade perfeita – o que também nos mataria, de alguma maneira. Pode acontecer termos a possibilidade de resolvermos os nossos problemas tecnologicamente, e podemos estar a falar de todos os problemas, incluído a morte. Por outro lado, pode ser a própria tecnologia, o clima ou alguma catástrofe natural que nos destrua. Como cada vez temos mais armas e potencial para o fazer, essa destruição é mais possível.
Sabemos que a Terra será eventualmente engolida pelo Sol; se o ser humano estará cá para ver isso é outra história, por exemplo.
Sim, mas falta tanto, tanto, tanto tempo que, em termos tecnológicos, não é uma ameaça, de todo. O que evoluímos nos últimos 10 anos é uma loucura, comparando com o que evoluímos nos últimos 100. Tudo o que evoluímos nos últimos 100 anos é uma loucura, comparando com o que evoluímos nos mil anos anteriores, e por aí fora. A partir de metade do século passado, aconteceu o que se chamou de grande aceleração e as coisas estão a crescer a uma velocidade vertiginosa em termos tecnológicos. Dentro de poucas décadas, creio, teremos encontrado um fim ou uma solução para nós. Nesse caso, estamos muito longe dessa morte cósmica.
Apesar de tudo, o livro deixa uma mensagem de esperança, quando diz que "não é a cera da vela que fica, é o que a chama iluminou", ou seja, "todas as histórias são contadas enquanto houver luz para as transportar". Há forma de mostrarmos à sociedade que, quando falamos sobre a morte, falamos, na realidade, sobre a vida?
Sim, há, porque não é possível falar da morte sem falar da vida. Quando saímos de um lugar, começamos noutro. Tal como digo no prefácio, não há maneira de desvincular a natalidade, essa coisa de que há sempre algo a nascer, de algo que está sempre a ser enterrado ou a morrer continuamente. É precisamente por morrer continuamente que se nasce continuamente. É por que morre alguma coisa que nasce alguma coisa dessa própria morte. O ser que eu era há um segundo morreu para que nasça o ser que sou agora, neste preciso instante. As duas faces estão sempre envolvidas em qualquer acontecimento.
Vamos sendo pessoas diferentes e vale a pena pensar nisto como o que chama ilumina, o que fica de facto de nós, como é que nos vamos trocando ao longo da vida, como é que a nossa cera vai desaparecendo, sendo transformada em luz. O que é que queremos iluminar ao longo da vida?
Mas acha que as pessoas, no geral, encaram a morte nesse sentido ou, por outro lado, ainda veem apenas o lado negativo da perda, esquecendo-se de que a morte faz parte da vida?
Tendemos a olhar para os lados negativos da morte e é exatamente por isso que a lembrança da morte é tão necessária, porque ela também nos coloca face às coisas positivas. Facilmente somos dominados por esse lado negativo.; isso acontece com alguma frequência e durabilidade. Essas noções negativas face à morte persistem, se calhar a vida toda, e é exatamente por isso que é importante, de alguma maneira, contrabalançar o peso que essas ideias têm em nós, especialmente o medo de morrer e de perder o outro, que andam a par.
É um pouco como escreveu no episódio em que estava no hospital e a enfermeira mencionou que teve uma "segunda oportunidade" na vida. A sua vida não parou; o acidente foi um episódio que a interpelou.
É a tal transformação. Desaparece uma pessoa com determinadas características para surgir outra, muito semelhante àquela, evidentemente, mas transformada por um acontecimento. Há aqui algo de novo precisamente porque houve algo que desapareceu também.
E acontece o mesmo com o luto; o Afonso que tinha a mãe provavelmente é um Afonso diferente sem a mãe.
Exatamente. Vamos sendo pessoas diferentes e vale a pena pensar nisto como o que chama ilumina, o que fica de facto de nós, como é que nos vamos trocando ao longo da vida, como é que a nossa cera vai desaparecendo, sendo transformada em luz. O que é que queremos iluminar ao longo da vida? É, uma vez mais, importante perguntar isso à morte, tendo a certeza de que, como idealizou Mário Quintana para o seu túmulo, "eu não estou aqui".
De facto, não estamos; não estamos nos ossos, ainda que possam ter uma relação com a memória, estamos na tal chama que iluminou. No caso da minha mãe, ela está muito mais presente no que sou hoje do que em qualquer cemitério. Não seria aí que encontrariam a minha mãe, mas em mim e nalgumas pessoas que ela pôde iluminar ao longo da sua vida.
No caso do acidente que sofreu e da perseguição de que foi alvo, o que é que leva consigo?
Não sei; há algumas transformações que são interiores e que nem damos conta que surgiram por causa desses acontecimentos. Depois há uns que são fáceis de olhar, porque não teria escrito esse livro se não tivesse passado por esses acontecimentos. Portanto, foram tão importantes que me fizeram escrever sobre eles.
E que outros projetos tem em mãos neste momento?
Para o ano, há de ser publicado o livro que escrevi para o Público, de 25 de abril de 2023 até 25 de abril de 2024, em que escrevi todos os dias úteis um capítulo de um romance. Depois, tenho vários livros na calha; alguns de não ficção, que precisam apenas de uma edição, e tenho ainda um compromisso com uma pseudo-biografia, – não é uma biografia convencional –, que tem a ver com a vida de uma pessoa que, para já, preferia não revelar. E, claro, sairão mais livros ilustrados.
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