Especialistas destacam luta de Eça contra provincianismo português

A trasladação de Eça de Queirós para o Panteão é um "reconhecimento", mas não beneficia particularmente o autor nem a obra, consideram dois especialistas, que lembram o papel marcante do escritor na luta contra a mentalidade provinciana de Portugal.

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© Octavio Passos/Getty Images

Lusa
07/01/2025 18:58 ‧ há 21 horas por Lusa

Cultura

Eça de Queirós

O professor da Universidade de Coimbra e especialista em estudos queirosianos Carlos Reis e a também professora universitária e especialista na obra de Eça de Queirós Isabel Pires de Lima falaram à Lusa, a propósito da trasladação dos restos mortais do escritor para o Panteão Nacional, em Lisboa, que acontece na quarta-feira, 125 anos após a sua morte e quatro depois de aprovada pelo parlamento.

 

A trasladação esteve envolvida numa luta judicial, na sequência de ações interpostas por alguns dos bisnetos do escritor que não queriam que os restos mortais de Eça de Queirós saíssem da aldeia de Santa Cruz do Douro, onde estão depositados, para o Panteão Nacional.

Para Carlos Reis, a relação de Eça com Portugal é "a relação de um escritor com um país que ele conheceu no seu tempo, e talvez só não só no seu tempo, melhor do que ninguém".

Apesar de viver fora de Portugal, desde jovem que se habituou a "lançar sobre o nosso país, sobre a nossa gente, sobre a nossa cultura, sobre a nossa sociedade, um olhar extremamente crítico, no fundo, com o propósito de tentar uma reforma de costumes e de mentalidades de que o país tanto precisava e, de certa forma, continua a precisar".

É neste "continua a precisar" que está aquilo a que se chama a "atualidade de Eça" e que se pode ver em dois planos, um dos quais diz respeito às situações e às figuras que é possível encontrar no dia-a-dia e que parecem saídas de romances do Eça, afirmou.

A segunda é, na opinião do especialista, "mais importante", porque é uma "reflexão mais ampla, mais abstrata, sobre a condição humana, sobre a relação com a História, sobre a relação com a memória, sobre a relação com a técnica e com a ciência, que hoje está tanto na ordem do dia e que é uma coisa que ele faz várias vezes nas suas obras".

Carlos Reis apontou como exemplos: 'A cidade e as Serras', 'Os Maias' - uma grande reflexão sobre a sociedade portuguesa da época e sobre a vivência do tempo pessoal, familiar e histórico - ou 'A correspondência de Fradique Mendes', essa personagem que "lança um olhar um pouco sobranceiro, um pouco arrogante, sobre a nossa sociedade e sobre o nosso tempo, que tem muito de desconstrução irónica, que tem muito de processo de olharmos para nós com sentido de humor e de autocrítica".

Para o ensaísta português, através desta figura, Eça denunciou também aquilo que é um dos problemas de Portugal "e que Eça muito bem retratou, que é o do provincianismo na relação com os outros e, sobretudo, com o mundo que está lá fora".

Na opinião de Isabel Pires de Lima, Eça de Queirós foi "determinante para a construção de identidade" de Portugal e foi "um escritor absolutamente único no século XIX" português, com repercussões que se estendem até hoje.

Não querendo com isto afirmar que o considera "o mais importante", a ex-ministra da Cultura portuguesa defende que o autor de 'O Crime do Padre Amaro' e de 'A Tragédia da Rua das Flores' foi "extremamente marcante para a reflexão sobre o Portugal e para a constituição de uma espécie de consciência nacional muito ligada a uma certa perceção da decadência de Portugal, que para o bem e para o mal ficou numa certa consciência que atravessou as elites culturais portuguesas durante todo o século XX".

"É também marcante na forma como conduz a uma consciência irónica, uma visão irónica do mundo, uma visão irónica da realidade, com tudo aquilo que a ironia comporta, que é, muitas vezes, apresentar a realidade com um intuito de a desgastar, [...] de apontar alternativas às avessas do que a realidade nos dá, e projetivas também", acrescentou.

Apesar disto, e de admitirem que a trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional - que o põe a par com outras figuras nacionais como Aquilino Ribeiro, Almeida Garrett, Sophia de Mello Breyner, João de Deus ou Guerra Junqueiro - é um símbolo de reconhecimento, os dois especialistas não consideram que este gesto sirva para beneficiar a obra, sendo "mais um tributo à história coletiva do que outra coisa", nas palavras de Carlos Reis.

"Isto é uma coisa que eu acho que é preciso ter presente: O significado, a presença do Eça ou de outro escritor como o Eça na nossa cultura, não é, digamos, melhorado nem beneficiado drasticamente por ir para o Panteão", afirmou.

Na opinião do especialista, "não é propriamente o Panteão que honra o Eça, é o Eça, e outros como ele, que honram o Panteão como repositório da nossa memória coletiva".

Também Isabel Pires de Lima reconhece que colocar um nome maior da cultura portuguesa no Panteão "é sempre um gesto simbólico da maior relevância", que confirma a grandeza do vulto em causa.

Porém, entende que, tratando-se de uma ida para o Panteão mais de 100 anos após a sua morte, não tem o mesmo significado que teria se esse gesto tivesse acontecido há 100 anos.

"Eu tenho a perceção de que Eça poderia ter ficado tranquilamente em Tormes, mas não me perturba particularmente que ele vá para o Panteão. Eu não me entusiasmei em momento nenhum com essa polémica que se gerou. E como já assisti à trasladação, há 30 anos, de Eça de Lisboa para Tormes e agora assisto à trasladação de Tormes para Lisboa, fico um pouco perplexa, é verdade, mas não propriamente contrariada", afirmou.

Para a atual presidente da Fundação de Serralves, Eça de Queirós passaria bem sem essa "confirmação", pois é hoje "completamente reconhecido pela cultura portuguesa e pela população portuguesa", mas não tem "nenhuma reticência".

"A única reticência que porventura me resta é a de que a criadora da Fundação Eça de Queirós, nos finais da década de 1980, fez um esforço extremamente grande para que Eça de Queirós tivesse um jazigo em Tormes devidamente digno, coisa que não tinha em Lisboa", pelo que é também pela memória de Maria da Graça Salema de Castro que Isabel Pires de Lima fica "um bocadinho perplexa".

Eça de Queirós morreu em 16 de agosto de 1900 e foi sepultado em Lisboa. Em setembro de 1989, os seus restos mortais foram transportados do Cemitério do Alto de São João, na capital, para um jazigo de família, no cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião.

A resolução aprovada em 2021 surgiu em resposta a um repto lançado pela Fundação Eça de Queirós, nos termos da lei que define e regula as honras de Panteão Nacional, destinadas a "homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade".

Leia Também: Movimento contra trasladação de Eça critica Câmara, Governo e ex-autarca

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