"Amizade entre mulheres é primordial, mas deixamos abaixo do conjugal"

O Notícias ao Minuto conversou com a autora Mariana Salomão Carrara, vencedora do Prémio São Paulo de Literatura 2023 para Melhor Romance.

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© Renato Parada

Daniela Filipe
14/02/2025 09:03 ‧ ontem por Daniela Filipe

Cultura

Literatura

Venceu o Prémio São Paulo de Literatura 2023, acumulou rasgados elogios e chegou, no final do ano passado, a terras lusas. Ainda que curta, a história para a qual 'Não fossem as sílabas do sábado' nos transporta é tudo menos leve: luto, maternidade, saúde mental e amizade entre mulheres são alguns dos temas que moldam este romance de Mariana Salomão Carrara, editado em Portugal pela Companhia das Letras.

 

Apesar de escrever "desde menina", Mariana Salomão Carrara assumiu, em conversa com o Notícias ao Minuto, que ainda não considera possível deixar o trabalho de defensora oficiosa para se dedicar à escrita a tempo inteiro, uma vez que "não existe uma aposta possível e segura neste mundo". Ao invés, a autora brasileira dedica-se ao ofício criativo "nas férias e nos fins de semana", ainda que exija "a mesma entrega" da sua profissão a tempo inteiro.

À boleia de uma escrita desprovida de pontuação, que dá lugar a um fluxo de consciência, Mariana Salomão Carrara pinta a realidade do luto e dos enlutados, cujos pensamentos caóticos, entrelaçados e sem rumo tomam forma não só na construção da narrativa, como nas personagens de Ana e de Madalena, duas vizinhas até então desconhecidas e que, num sábado como tantos outros, a vida - e a morte - uniram. Grávida e viúva, Ana vê-se obrigada a socorrer-se de Madalena, ainda que deposite sobre ela a culpa da sua nova realidade. É que, para Ana, só Madalena "podia ter evitado esse suicídio desabado, esse estatelamento em cima da [sua] vida".

O trabalho toma-me muito tempo, por isso acabo por escrever só nas férias e nos fins de semana, deixa-me a cabeça exausta, mas exige a mesma entrega, no sentido de ver a vida do outro, ver vidas que não a nossa e, a partir de um relato seco que chega no caos do atendimento ao público, entender que aquele problema acompanha a pessoa a vida toda. Humanizar essas situações relaciona-se com a literatura

Formou-se em Direito e é defensora oficiosa. Como é que chegou à escrita? 

Escrevo desde menina. Desde que aprendi a escrever que direcionei essa aprendizagem para a ficção, como se fosse uma brincadeira com bonecos, que tinha o prazer estético da linguagem. Tinha muitos textinhos e tenho ainda alguns contos de quando tinha oito anos, até aos 12 anos. Inclusivamente, usei-os para me basear na linguagem da Maria Carmem, do ‘Se deus me chamar não vou’. Continuei a escrever a vida toda; fiz romances na adolescência, novelas longas que ficaram arquivadas – e ainda bem – e acabei por publicar a última delas, que escrevi no último ano do ensino secundário, assim que entrei na faculdade. Foi uma publicação pequena, essencialmente para ter um grande evento na faculdade com os amigos, sem distribuição.

Fui ganhando vários prémios de contos, que publicava em antologias; publiquei um livro de contos, outro romance, tudo edições pequenas, até que o ‘Se deus me chamar não vou’ acabou por me abrir várias portas. Mas sempre tive isto como uma carreira paralela, porque não existe uma aposta possível e segura neste mundo. Acabei por seguir Direito, até por questões familiares. Há uma ilusão em relação ao mundo jurídico, de que é muito amplo e criativo, mas é uma falácia. Sofri muito na faculdade, porque não tinha afinidade com o meu víeis mais criativo. Nos meus primeiros anos, criaram [a vertente de] defensoria oficiosa em São Paulo – atrasadíssima, porque na Constituição a obrigatoriedade já estava há muito tempo – e foi uma carreira que achei possível [seguir], por trabalhar para a população mais necessitada.

Acho que os temas [da profissão] têm relação com a literatura. O trabalho toma-me muito tempo, por isso acabo por escrever só nas férias e nos fins de semana, deixa-me a cabeça exausta, mas exige a mesma entrega, no sentido de ver a vida do outro, ver vidas que não a nossa e, a partir de um relato seco que chega no caos do atendimento ao público, entender que aquele problema acompanha a pessoa a vida toda. Humanizar essas situações relaciona-se com a literatura. Acho que todas as carreiras jurídicas aproveitariam muito bem a literatura. O juiz, por exemplo, que é leitor, tem de fazer um exercício de empatia muito maior para chegar às suas conclusões.

Então, neste momento, não imagina dedicar-se à escrita a tempo inteiro?

Imaginar, imaginei sempre, e cada vez mais parece uma ilusão possível. Os livros vão saindo noutros países, estou a escrever mais, um livro vai somando-se a outro e tenho a possibilidade de, no tempo livre, dedicar-me a oficinas literárias e a outros eventos. Mas vou depender de as pessoas me chamarem para eventos e para coisas pelas quais não sei se tenho coragem de depender. Por enquanto, não acho possível como decisão total. Posso tentar, eventualmente, um afastamento por um período curto, sem remuneração.

Penso muito na morte, sou uma pessoa muito assustada. Achava que isso era universal, mas há pessoas que saem de casa [e não pensam nisso]. Ainda para mais no Brasil, em que corremos realmente riscos sociais. Meto o pé fora de casa e já me sinto em risco; não que deixe de fazer coisas por causa disso, mas faço pensando. É um pensamento que me tumultua e acaba por ser um tema que vem em qualquer dos livros

‘Não fossem as sílabas do sábado’ é marcado por uma escrita de fluxo de consciência, por vezes desprovida de pontuação, que ilustra a ideia dos pensamentos caóticos, entrelaçados e sem rumo dos enlutados. Como é que nasceu este estilo? Usa-o na generalidade das suas obras ou apenas em contextos específicos?

Acho que as narrativas em primeira pessoa, com este ritmo do pensamento, estão presentes desde que comecei a escrever. Em 2017, publiquei um romance em pequena escala, que tinha escrito na faculdade, que se chama ‘Fadas e copos no canto da casa’. Também é uma menina a narrar o dia a dia e, cada vez que ela se emocionava mais e estava mais nervosa, as vírgulas iam e o ritmo ficava mais apressado. Fui modificando este estilo conforme os anos e os textos; é influenciado por uma amalgama de coisas, mas não está presente em todos os livros, porque há uma relação com a narradora. No ‘Se deus me chamar não vou’, como a menina está a escrever um livro, cada vez que ela fica muito irritada ou ansiosa esquece-se das vírgulas.

Também há um pouco disto no ‘É sempre a hora da nossa morte amém’, embora esteja mais ligado a frases muito longas, separadas por vírgulas. O último [‘A árvore mais sozinha do mundo’], que vai sair em Portugal este ano, já é muito diferente. São quatro narradores, por isso cada um tem uma voz, cada um tem uma forma de falar. A árvore é depressiva e mais lenta, o que é o contrário do que acontece no ‘Não fossem as sílabas do sábado’. Não é necessariamente uma marca de estilo; acho que, para qualquer dos livros, [a ausência de vírgulas] funciona nos narradores a quem quero imprimir esse nervosismo e velocidade, mas não vai aparecer nos que não têm essa marca, com um fluxo menos íntimo de consciência ou tumultuado.

O que é que a levou a abordar o luto e a morte, que continuam a ser questões tabu na sociedade, apesar de serem inevitáveis?

Penso muito na morte, sou uma pessoa muito assustada. Achava que isso era universal, mas há pessoas que saem de casa [e não pensam nisso]. Ainda para mais no Brasil, em que corremos realmente riscos sociais. Meto o pé fora de casa e já me sinto em risco; não que deixe de fazer coisas por causa disso, mas faço pensando. É um pensamento que me tumultua e acaba por ser um tema que vem em qualquer dos livros. Em ‘Se deus me chamar não vou’, temos uma criança que tem medo de morrer e não entende a temporalidade em relação aos idosos, o ‘É sempre a hora da nossa morte amém’ é totalmente sobre isso, com uma senhora que não se lembra como é que filha morreu e apresenta diversas possibilidades de mortes acidentais que acontecem mesmo, ainda que sejam muito raras, e o ‘Não fossem as sílabas do sábado’ surgiu, na verdade, de uma vontade de falar sobre a amizade entre mulheres, de uma amizade familiar.

É um vínculo que acho que é primordial, talvez o nosso vínculo mais importante que, por vezes, deixamos abaixo do conjugal, como uma coisa secundária, que ocupa todos os outros espaços, mas não as nossas prioridades automáticas. A lei automatiza isso, pelo menos aqui no Brasil; os dependentes são o filho e o marido, o plano de saúde é ligado ao conjugal. Isto incomoda-me.

Misturando com estes meus pensamentos de morte, tinha um vizinho de 59 anos, médico, que era viciado em anestésicos. Várias vezes abri a porta da casa dele para desligar o gás, desligar o fogão, e ele caído no chão. Estava muito preocupada com ele, mas também com o facto de que eu podia morrer por causa de alguém que não foi amparado e provocou um acidente grave. Isto deu-me a ideia de unir estas duas viúvas num acidente que deixasse uma delas tão ressentida, que não conseguisse aceitar plenamente a chegada da outra na sua vida. Até porque ela tem essa impressão de que, se ela gostar tanto quanto da outra vida, de uma vida que só veio por causa do acidente, tem culpa. Então, simboliza a resistência que às vezes temos nos vínculos quotidianos, que se vão rasgando, porque não entendemos que aquilo já é uma família – a amiga que nos está a ajudar a criar um filho é uma entidade familiar, se quisermos. Nunca sei traçar de onde veio a ideia, mas em algum momento estes dois mundos juntaram-se e surgiu esta premissa.

Se qualquer instantezinho daquele sábado tivesse sido diferente, a vida da Ana seria completamente diferente; ela seguiria os projetos iniciais dela. Ela fica presa nos detalhes daquele sábado, por isso o título transparece exatamente isso, essa mastigação de cada detalhe que não aconteceu como ela tinha planeado

Referiu em várias entrevistas que se sentiu apavorada por saber que enlutados leram esta obra. Porquê? Por não ter essa vivência?

Sim, não sei. Tinha a ilusão de que, se estamos muito abalados com a morte de alguém, não procuraríamos reviver todos os detalhes numa outra história. Descobri que é o contrário; as pessoas acharam muito bom, inclusivamente em lutos recentíssimos, passarem por esta leitura, porque organizaram as sensações, colocaram em caixinhas os sentimentos tumultuados, identificaram-se com algumas coisas e foram sentindo o seu próprio luto, talvez escrevendo dentro da própria cabeça. Acabou por ser terapêutico, ainda que não tivesse a menor intenção disso. Se tivesse intenção, talvez não acontecesse.

Tive medo de que pudesse tanto causar mais dor, como violar algum sentimento, por não ter vivido isto. Claro que fiz uma pesquisa íntima muito grande, para sentir como é que poderia estar, transpondo-o para uma personagem que é mais romântica, mais jovem, com planos muito certos de vida, sem forma de os superar, grávida – e também não fui mãe. Tive de fazer várias projeções; para mim, a literatura até flui mais se tiver de criar coisas que preciso de pesquisar, o que gera mais ideias. Tive medo de ter dito alguma coisa leviana sobre isto, mas parece que não aconteceu.

Antes de publicar, fui a uma biblioteca, li alguns livros de não-ficção de pessoas que perderam parentes, e senti que estava tudo bem. Claro que cada um tem o seu luto, tem as suas etapas, as suas fases; a própria Madalena reage de uma forma diferente à Ana. Mas existem umas dores e os detalhes são contundentes na vida que sobra, ao ocupar o espaço que já não é o mesmo com a falta de alguém; é aquela questão dos móveis que são testemunhas de uma vida que já não está ali. Ela [a Ana] olha para os móveis e pensa que eles sabem que aquela vida não é a dela, que ela está a viver uma vida errada, uma vida improvisada.

É bastante interessante dizer que não tinha noção de que os enlutados se agarravam à literatura, mas também comprova que a compreensão de que o luto não é um processo superável em três meses, por exemplo, é possível, tal como mostra no livro.

Sim. Em clubes de leitura, um leitor disse que a parte da solidão, principalmente por quem passava seis, sete anos nesse remoinho que a Ana tem, [é verdadeira]. As pessoas foram afastando-se, não por maldade, mas porque a vida foi ficando incompatível e porque sentiam um certo desnível de assunto. Ficavam sem vontade de encontrar aquela pessoa para contar as novidades boas, felizes, se aquela pessoa continuasse amargurada com a perda dela, porque parece provocatório. A pessoa ia ficando isolada do mundo, que seguiu em frente. Disseram-me que sentiram muito isso na Ana e foi uma coisa que imaginei que fosse mais específica dela, à conta do quanto ela estava a nutrir o luto, porque vivia em casal e teve de superar isso.

Tudo neste livro parece ter sido pensado ao pormenor, desde o ritmo da narrativa, que saltita no tempo, às metáforas usadas para ilustrar o luto e a solidão. De facto, o próprio título transparece a ideia de ‘e se?’ que atormenta Ana – e os enlutados – ao longo da sua vida: e se não tivesse telefonado ao André, e se o porteiro tivesse demorado mais tempo a abrir a porta, e se André tivesse andado mais depressa. Que outros significados lhe quis atribuir?

Se qualquer instantezinho daquele sábado tivesse sido diferente, a vida da Ana seria completamente diferente; ela seguiria os projetos iniciais dela. Ela fica presa nos detalhes daquele sábado, por isso o título transparece exatamente isso, essa mastigação de cada detalhe que não aconteceu como ela tinha planeado. Se ela não lhe tivesse pedido ajuda com o quadro... Ela também fica presa nessa culpa.

Notícias ao Minuto
© Companhia das Letras/Penguin Random House Grupo Editorial  

Também há a questão de a Madalena e a Catarina terem nomes tão grandes e a Ana ter um nome tão pequeno; quase que dá a ideia de que precisa de pessoas que a mantenham à tona da água, digamos assim.

Sim, isso isola mais a Ana, mas ela e a Madalena encaixam, conseguem acolher-se.

O leitor é atirado para dentro da mente de Ana, que se vê enviuvada e grávida. Porque é que optou por esta via e não pela abordagem da saúde mental e do suicídio, que poderia ter pegado com Madalena?

Na verdade, sempre tive a intenção de que não fosse um livro sobre suicídio. Não me sinto muito à vontade para estudar esse tema de uma perspetiva existencial. Tive de falar sobre isso no ‘A árvore mais sozinha do mundo’, mas é muito diferente, porque é uma depressão química causada por pesticidas, por isso é muito mais social do que a depressão em si. E não é um assunto que talvez conseguisse chegar à compreensão como pessoa; estou mais do lado da Ana, no sentido de não conseguir entender jamais esse gesto – não como ela, claro, porque não teria aquela reação, mas ficaria indignada e iria para o lado da pessoa que não consegue aceitar. No caso, ela inclusivamente agrava a sensação de culpa dos parentes que perdem alguém por suicídio. Se entrasse na história da Madalena, seria uma história sobre suicídio; teria de entender o que é que aconteceu ao Miguel, se tinha uma bipolaridade difícil de tratar, se já tinha acontecido outras vezes. Para mim era mesmo uma questão de saúde mental. As pessoas perguntam-me, “o que é que aconteceu para ele se suicidar?”, mas não acho que exista isso. Não acho que tenha sido um evento; acho era uma pessoa que lidou a vida toda com alguma depressão.

O assunto, para mim, era o contrário: quem estava ali alinhado com a vida, com as expectativas todas e, de repente, teve de lidar [com a tragédia]. Ela diz que o edifício não amparou essa pessoa que devia de estar a passar por alguma coisa, que o condomínio não esticou os braços pela janela para segurar aquele corpo e acabou vitimando a família dela. Nunca passou pela minha cabeça e sempre quis mostrar no silêncio da Madalena essa dor de não ter o luto dela legitimado pela Ana. Na cabeça da Ana, eles não eram um casal tão feliz, senão isto não teria acontecido. Então, não sendo um casal tão feliz, a perda não é como a dela, que estava idealizada, com a gravidez no início. Ela tem este preconceito em relação à Madalena, o que mantém as duas afastadas.

Já a Madalena, queria que conhecêssemos pelos silêncios e pela visão da Ana, que temos de filtrar. Mas dá para perceber que ela é uma pessoa que ou está a sentir-se mesmo culpada por ter feito parte, de alguma forma, da destruição daquela mulher que está grávida e recupera-se naquele cuidado, ou pode ser que ela seja realmente uma pessoa super dedicada aos cuidados do prédio, é intrusiva, controladora num bom sentido. Por isso, imaginei que ela cuidou do marido a vida toda, correu tudo bem, e ela passou a cuidar da Ana; até que ela irrita-se no final, com as histórias de as mulheres estarem sempre a cuidar dos outros. Tinha essas duas possibilidades para ela, que eu queria que o leitor escrevesse. Acho que os factos sobre o suicídio não são relevantes, são uma curiosidade meio mórbida as pessoas têm, mas que não fazia parte da história, não seria a minha história.

Essa família que se forma com as duas torna-se a relação da vida dela, que está ali, está no mesmo prédio, partilha comida, às vezes trabalha com ela para fazerem companhia uma à outra. Então, ela realmente encontrou uma vida nova, ainda que não a aceite como vida; é o que sobrou

Portanto, nunca equacionou fazer uma sequela com a história da Madalena e do Miguel, ou da perspetiva da Madalena?

As pessoas perguntam-me sempre isso, mas acho que não. Acho que não faria muito sentido para mim. Acho que essa história já está meio escrita no paralelo oculto, nas entrelinhas do que puderam captar e criar. A Madalena dava umas pistas, no sentido de que ele ria-se, ele era feliz, querendo explicar que isto acontece, que não é que estivessem completamente infelizes, mas não consegue dizer por não haver esse espaço para ela. Quis transmitir uma sensação de que não é para se imaginar algo catastrófico, não cair na imaginação da Ana, que é mais ignorante em relação ao suicídio, e tentar entender que a Madalena está a enfrentar uma situação terrível. Perdeu o parceiro desta forma horrorosa que as pessoas não compreendem e julgam, e ela também, provavelmente, lastima-se muito de não ter estado lá naquele momento. Imagine o nível de ‘e se?’ que ela constrói.

Como mencionou, Madalena aparenta sentir que não tem direito a estar enlutada, tendo em conta as circunstâncias da morte de Miguel e as suas consequências. Ou, pelo menos, aparenta sentir que não tem direito a partilhar verbalmente a sua dor com Ana, que a culpa pela morte tanto de Miguel, como de André. Mesmo assim, não conseguem seguir em frente uma sem a outra. Porque é que decidiu ligar estas mulheres desta forma?

Acho que a Ana está muito solitária, muito desamparada e frágil e mais ninguém do círculo dela aguenta esta situação. O Patrick foi embora para o Canadá, viver os amores dele, e ela foi ficando muito solitária. Há essa conveniência e extrema necessidade, porque provavelmente também tem uma depressão pós-parto, que lhe deixa a casa devastada. Não há como não ajudá-la e não há como ela rejeitar mais ainda essa ajuda. Depois, acho que a Madalena é muito fixe e a Ana vai realmente apegando-se, ainda que resista e não queira assumir que esta vida que veio depois pode ser boa. Mas a Madalena é professora, a relação com a criança [Catarina] é ótima, começam a fazer programas de fim de semana naturalmente…

Acho que vão apegando-se como duas pessoas que têm afinidade, ainda que uma afinidade que não teria acontecido se não fosse pelo acidente. Essa família que se forma com as duas torna-se a relação da vida dela, que está ali, está no mesmo prédio, partilha comida, às vezes trabalha com ela para fazerem companhia uma à outra. Então, ela realmente encontrou uma vida nova, ainda que não a aceite como vida; é o que sobrou. A Ana vai ficando sem se dar conta do quanto ela gosta mesmo dessa amiga, porque vai sempre preferir que a Madalena não existisse. Com isso, ela acha que a amizade está contaminada e precisa da pureza da filha, que nasceu sem nada disso e que se apegou muito à Madalena; precisa dela para mostrar que passou muito mais anos com a Madalena do que com o André e que tem direito a essa felicidade.

O facto de a Ana ser arquiteta, mas ser a Madalena, que toma conta do prédio, a cuidar dela, também é uma imagem interessante, uma vez que quase esperamos que seja ao contrário.

Sim, é verdade. A questão da Ana enquanto arquiteta é mais espacial; ela é muito apegada ao design do apartamento e à relação disso com o André, mas até ao design da esquadra. Ela não controla nada; ela projetou e quer que as coisas sigam o projeto, que era ter a criança com o marido, e os projetos não são adaptáveis para ela.

Como disse, Ana acaba por ficar progressivamente sozinha, à medida que o tempo passa. As únicas constantes na sua vida são a filha e Madalena, que tentam compreender a sua dor. Foi também esta uma forma de mostrar a culpa sentida por Ana por não ser “uma viúva disposta a reagir”, tal como a sociedade esperaria que fizesse?

Sim, e a maternidade dela não chega até onde ela sonhava, porque ela não conseguiu refazer-se para gostar da criança, que não vai ser criança com que ela sonhava, vai ser uma criança órfã. Ela olha para a bebé e não se sente mãe o suficiente, tem toda a dor de uma maternidade que, para ela, continua improvisada, continua a ser diferente do sonho.

Ela menciona a falta que tem do frugal, de não conseguir ser leve como, por exemplo, o sorriso que dá à funcionária que lhe vende o pão de queijo. Tudo o que está ligado à relação familiar tem um peso. Ela também não consegue ser casual com os homens. Nada é leve para ela, está tudo carregado de ausência, desde que viveu aquela tragédia; sente falta de sorrir com simplicidade, com sinceridade e entrega, porque cada vez que o faz, lembra-se que é um sorriso contaminado.

Quando escrevia contos, tinha vários que eram inspirados nas situações que via, normalmente do direito criminal, em que exerci no início da profissão. Mas no romance, até hoje, não tinha acontecido; o que aproveitei nos livros foram os conhecimentos gerais que tenho da humanidade a partir da defensoria. No ‘Não fossem as sílabas do sábado’, por exemplo, há a questão dos processos de família, a sensação esmagadora

Esta obra valeu-lhe o Prémio São Paulo de Literatura para Melhor Romance, em 2023. Qual o significado desta distinção?

Foi muito emocionante. Em termos de prémio financeiro é o maior do Brasil, ainda que o Prémio Jabuti tenha um conhecimento internacional maior. Torço desde as primeiras obras, fui finalista com os outros dois livros, o ‘Se deus me chamar não vou’ e o ‘É sempre a hora da nossa morte amém’, então já estava à espera. Quando chamaram o meu nome foi inesquecível, uma emoção absurda. Gostava de toda a gente que era finalista, estávamos todos juntos, e queria que todos festejassem todos os finalistas e que não fosse uma coisa só para mim. Já tinha bastantes leitores no Brasil e sinto que quem gosta de curadoria e de prémios também foi atrás desse, além de as livrarias chamarem à atenção para isso. Comecei a ter mais entrevistas e a aparecer na televisão, por isso acho que tem uma proporção grande, para um livro que já ia bem. Fui à Feira Internacional do Livro de Guadalajara, que é importantíssima e é a segunda maior do mundo. Estivemos lá três meses, conhecemos muita gente e foi uma experiência incrível.

No ano passado, publicou o romance ‘A árvore mais sozinha do mundo’, que chegará a Portugal, correto? E os seus restantes livros?

Sim, pela mesma editora. Estava previsto ser no outono, mas deverá sair mais cedo. Nessa altura, vamos ver se consigo ir a Portugal, para fazermos um evento sobre os dois livros e ver os leitores. Os dois primeiros livros, que são da editora NOS, estão em Portugal, porque a editora abriu uma vertente aí, só que têm distribuição difícil, porque é necessário ir à Livraria da Travessa [em Lisboa], ou comprar pela Internet. Agora, imprimiram uma remessa grande e estão só à espera de contratos de distribuição maciça. Certamente que, em breve, será mais fácil encontrá-los nas grandes livrarias.

E que outros trabalhos tem em mãos neste momento?

Estou a escrever um livro com um pouco mais de humor, é uma novidade. Gosto muito de experimentar; o último livro [‘A árvore mais sozinha do mundo’] já foi uma experiência e tanto para mim, porque saiu das minhas temáticas mais pessoais e trata uma questão social, de pessoas que cultivam tabaco, super endividadas, mas tem um ambiente familiar e toda uma intimidade que é o meu estilo. Este é mais de humor, centrado no sistema judicial. Resolvi usar o meu trabalho para trazer um pouco de ironia e brincadeira, mas tem bastante tristeza no meio, porque o Direito mexe muito com tristeza. Espero que seja publicado no próximo ano, no Brasil.

Estou muito contente, porque ‘A árvore mais sozinha do mundo’ vai sair em Portugal e noutros países, e vou acompanhar essa experiência, porque é uma tradução muito difícil, já que são quatro narradores com sotaques de regiões [diferentes]. O espelho é português, então como é que será feita a reprodução em França? Não sei, estou curiosa para ver.

Mencionou que o novo livro terá um teor jurídico; costuma pegar nas histórias que ouve no seu trabalho para se inspirar?

Quando escrevia contos, tinha vários que eram inspirados nas situações que via, normalmente do direito criminal, em que exerci no início da profissão. Mas no romance, até hoje, não tinha acontecido; o que aproveitei nos livros foram os conhecimentos gerais que tenho da humanidade a partir da defensoria. No ‘Não fossem as sílabas do sábado’, por exemplo, há a questão dos processos de família, a sensação esmagadora. O ‘É sempre a hora da nossa morte amém’ também tem uma relação com o abrigo de idosos e a assistente social. O meu trabalho vai aparecendo assim, mas não há aquela coisa de trazer casos. Este novo livro, sim, vai ter detalhes do dia a dia jurídico e vai envolver casos que eu vivi ou que pedi testemunho.

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Se estiver a sofrer com alguma doença mental, tiver pensamentos auto-destrutivos ou simplesmente necessitar de falar com alguém, deverá consultar um psiquiatra, psicólogo ou clínico geral. Poderá ainda contactar uma destas entidades:

  • SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) - 213 544 545 (Número gratuito) - 912 802 669 - 963 524 660
  • Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159
  • SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545
  • Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707
  • Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535

Todos estes contactos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende. No SNS24 (808 24 24 24 - depois deve selecionar a opção 4), o contacto é assumido por profissionais de saúde. A linha do SNS24 funciona 24 horas por dia.

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