"No disco arrisco ao assinar todas as letras, mas ali sou eu inteiramente", disse o fadista à agência Lusa, considerando este, "claramente, o [seu] álbum mais autobiográfico". E acrescentou: "Sem o ter projetado, dei comigo a pensar 'estão aqui os últimos 25 anos da minha vida'", desde que iniciou profissionalmente a carreira no fado.
A decisão de escrever para si foi "uma consequência natural": "Eu escrevo desde os 15 anos, depois, com a minha profissão de jornalista, durante alguns anos, ainda que com outro tipo de escrita, escrever tornou-se um ato natural na minha vida".
"Foi sempre através da escrita que me manifestei, nomeadamente, emocionalmente, talvez até por algum acanhamento, alguma timidez, que tem a ver com a minha personalidade - o que não deixa de ser um contrassenso, a timidez levar-me a expor-me desta maneira, mas é uma cobardia mais saudável".
Em alguns temas como "O Passeio dos Tristes", com música de Paulo Paz, há uma reflexão sobre o contexto político-social atual.
À Lusa, Carlos Leitão argumentou que não é "algo reivindicativo": "Sempre fui muito ativo social e politicamente - não faço disso uma bandeira -, mas sempre o fui".
O músico confessou "algum desgosto relativamente à realidade político-social que vivemos" e a sua escrita levou-o por esse caminho.
"Batemos no peito/ cantamos o hino (...) Prendemos os sonhos a um euro destino/ que arregaça as mangas para nos dar a bica/ e dar cabo dos vivos/ venha quem vier/ (...) Brindamos à urgência que agora fechou/ E o Ronaldo sozinho foi quem nos salvou". Estes são versos de "O Passeio dos Tristes" que Carlos Leitão canta no novo álbum, "Tempo de Ficar", e no qual perpassa ainda uma crítica às palestras de autoajuda, à abstenção eleitoral e "aos preços mais gordos do IVA".
Carlos Leitão discorda que o artista deva ser apartidário e não se imiscuir em questões sociais e políticas: "Eu entendo exatamente o contrário. Não vejo o artista como alguém inalcançável, eu acho a pessoa mais normal deste mundo".
"Seguramente eu não sou um 'entertainer' e acho que não se deve ser. A partir do momento em que as pessoas seguem um artista ou o admiram, tem de ser por aquilo que ele é, e não por aquilo que ele quer que as pessoas o descubram".
"Eu, enquanto público, gosto de saber socialmente como o artista é, politicamente também, pois musicalmente está à vista", argumentou, afirmando que "está tudo impecável quando a música é o polo de atração do público pelo artista".
"Tempo de Ficar" é o quinto álbum da sua carreira, sucedendo a "Simples" (2022), em que gravou melodias tradicionais como Fado Jovita, de Frutuoso França, Fado Odeon, de Alfredo Marceneiro, e Fado Pena, de Frederico de Freitas.
O novo álbum conta com as parcerias de Pedro Jóia, Flávio Cardoso e Nancy Vieira, amigos do fadista e a quem não regateia elogios. Flávio, com quem trabalha diariamente, "é o melhor violista de fado na atualidade", assegura.
Quanto a Pedro Jóia, ouviu o seu concerto dedicado a José Afonso, e entendeu "que fazia sentido 'O Último Poema de Amor ao Meu País' ser musicado por alguém que tinha tratado tão bem e com tanta delicadeza a obra do Zeca Afonso".
Quanto a Nancy Vieira, e também ao músico Vaiss Dias, que morreu recentemente, Carlos Leitão confessa o "grande desafio de fazer uma morna", que nunca tinha feito.
O fadista partilha com Nancy Vieira a interpretação de "Tempo de Ficar", que dá nome ao álbum e o encerra, sendo acompanhados por Vaiss Dias.
Referindo-se aos 25 anos de carreira, Carlos Leitão afirmou que neles "cabem momentos muito tristes, muito felizes, também, alguns mal-entendidos". "Se fizesse um poema para os cantar, não caberia tudo para dizer o que me vai na alma por estes 25 anos", afirmou.
O álbum abre com o poema "Ao que venho", uma "declaração de interesses muito mais emocionais que outras" do fadista, músico e letrista, sem qualquer melodia em fundo, "para não haver distrações", "sabendo a força de cada palavra e a entoação que deveria ter".
"Ao que Venho" é "também um balanço destes [25 anos de carreira] em que sou o Carlos e o artista, somos uma e a mesma pessoa e não diferentes".
Nestes 25 anos de carreira, o criador de "A Última Vez", letra e música suas, afirmou que houve momentos em que teve vontade de abandonar o caminho.
Sobre o álbum disse que assenta em três palavras: "Abalar", do Alentejo (como sinónimo de ir), "Voltar", "sendo lisboeta com raízes alentejanas e voltar a elas", e "Ficar", pois quer ficar. "Quero afirmar que quero ficar, nomeadamente no que toca ao fado, mas também relativamente às minhas convicções, às coisas que não abdico nem cedo".
O fadista disse à Lusa que atualmente está a viver no Alentejo.
Carlos Leitão garante, sobre o fado, que o "faz com verdade", e que os 25 anos de carreira lhe dão "o reconhecimento e respeito pela [sua] arte".
O álbum é apresentado no próximo dia 08 de abril, no Teatro da Trindade, em Lisboa.
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