Foi com uma voz doce e convidativa que Luísa Sobral nos recebeu. A razão que motivou a conversa não podia ser mais feliz, como a sua 'Maria' - sobre quem escreveu em 'Nem Todas as Árvores Morrem de Pé', livro com que se estreou na ficção.
O romance, que nos prende entre prosa e poesia, conta-nos a história de Emmi, que se apaixona perdidamente por Markus, um homem de Berlim Leste, num momento em que a Guerra Fria estava ao rubro.
Temas transversais ao próprio tempo marcam o livro: amores e desamores, liberdade e a falta dela, altruísmo e egoísmo e claro, a natureza.
O livro chegou à quinta edição em apenas um mês, mas foi de forma quase que envergonhada que Luísa o revelou, admitindo que ainda não se sente totalmente confiante na posição de escritora.
Durante a conversa com o Notícias ao Minuto, lamentou ainda aquilo que considera um dos grandes males da atualidade, a dependência dos ecrãs que tem dominado a vida de crianças e adolescentes.
Lançar um romance era uma ideia que já tinha há muito tempo?
Sou uma grande leitora, mas talvez por gostar tanto de ler tenha um grande respeito pela escrita de prosa. Pensava nisso de vez em quando, mas não era um objetivo. Depois, quando me inspirei numa notícia que vi para escrever uma canção - a 'Maria Feliz' -, lembro-me de ver a imagem dela e de pensar: 'gostava que isto fosse mais alguma coisa, que não ficasse apenas pela canção'. Então pensei em escrever uma peça de teatro.
Começou por ser uma peça [de teatro], mas rapidamente percebi que não o era, que se estava a transformar num romance
Isso é muito curioso.
A ideia surgiu porque adoro fazer teatro e gostava muito de voltar a representar, só que ninguém me chama [ri-se]. A minha mãe na altura disse: 'se ninguém te chama para representar, porque é que não escreves uma peça e representas tu?'. Começou por ser uma peça, mas rapidamente percebi que não o era, que se estava a transformar num romance.
Respondendo à pergunta anterior: não pensei em escrever um romance, acabou por sair sem querer, foi quase acidental.
O livro passa-se em épocas marcantes da história mundial, neste caso, no regime Nazi e na queda do Muro de Berlim. A escolha destas épocas deveu-se à protagonista ou era um interesse da Luísa?
Foi completamente por causa da protagonista. Sabia que a pessoa real tinha vivido na Alemanha Oriental. Achei inspirador poder mergulhar num mundo que já por si era tão denso e interessante. Estes personagens foram criados exatamente como resposta ao período em que existiram.
A nível de investigação imagino que tenha sido muito exigente.
Sim, foi. Lembro-me de no início falar com uma editora e ela dizer-me: 'não se preocupe muito com isso que no final dizemos que é ficção, não se preocupe com os factos históricos'. Achei estranho, porque primeiro quem me conhece sabe que sou bastante exigente com as coisas que faço, depois porque para mim quando lemos ficção temos de acreditar que aquilo aconteceu.
A partir do momento em que ponho um personagem a vestir uma coisa que não se vestia e a comer uma coisa que não se comia ou a dizer coisas que não se diziam, já não é verdadeiro para mim.
A época estava-me a condicionar um bocado, mas depois percebi que tinha a ver com a maneira como eu olhava para isto. Se em vez de olhar como algo que me condicionava, olhasse como algo que me inspira, seria tudo mais fácil. Foi esse o clique.
As cenas violentas foram difíceis, tenho que as sentir quando estou a escrever e como graças a Deus nunca passei por algo assim foi um bocado violentoQual foi a parte mais difícil de escrever? No livro aborda temas pesados, como é o caso da violação e da violência doméstica.
As cenas violentas foram difíceis, tenho que as sentir quando estou a escrever e como graças a Deus nunca passei por algo assim foi um bocado violento.
Para mim uma das cenas mais difíceis de escrever foi quando a personagem principal [alerta spoiler] decide abandonar o seu grande amor. Ela é que me disse que queria ir embora, mas foi duro, sobretudo emocionalmente. Uma pessoa tomar aquela decisão para que a outra possa ser feliz é a maneira mais altruísta de se viver o amor.
(...) Enquanto escrevia o livro sonhei muito com coisas minhas do passado. Fui revisitada constantemente em sonhos por situações que tinham algo a ver com aquilo que escreviAcredito que os escritores colocam sempre parte das suas experiências nos livros, voluntária ou involuntariamente. Os momentos que descreveu não a fizeram reviver paixões ou amores, fases difíceis por que passou?
Ainda não contei isto a ninguém, mas enquanto escrevia o livro sonhei muito com coisas minhas do passado. Fui revisitada constantemente em sonhos por situações que tinham algo a ver com aquilo que escrevi.
Foi engraçado, isso nunca me aconteceu em canção. A diferença [na escrita] é que começo e termino uma canção num curto espaço de tempo, já no romance estas pessoas viveram comigo um ano. Digo sempre, em jeito de piada, que elas iam dormir comigo. Eu pensava: 'o que é que vai acontecer com esta pessoa agora?' É muito intenso. Foi uma experiência muito imersiva.
Mudam os tempos, mas nós não. Podemos estar agarrados a um telemóvel ou a uma pena e um papiro e continuamos a sentir as coisas da mesma formaA paixão pode de facto ser cega? Percebemos isso numa das personagens que ignorou uma série de 'red flags'.
O último clássico que eu me lembro de ter lido foi 'Os Irmãos Karamasov'. Não comparo o meu livro a um clássico, claro, mas o que é que faz com que continuemos a ler estes livros, a sentir as coisas? É que eles falam do ser humano e dos sentimentos. O amor, a inveja, a traição, isso é tudo algo que será sempre assim, porque a génese do ser humano nunca irá mudar. Mudam os tempos, mas nós não. Podemos estar agarrados a um telemóvel ou a uma pena e um papiro e continuamos a sentir as coisas da mesma forma.
Gosto, enquanto leitora, que o escritor não me diga 'este é bom' ou 'este é mau'. Gosto quando ele me faz duvidar dos meus próprios princípiosE o mesmo aplica-se à maldade. Há um personagem cruel que encontra uma justificação para as suas ações, mesmo que sejam absurdas. 'Estou a fazer isto porque te amo muito', por exemplo.
É típico da violência doméstica: 'Desculpa, mas tu é que pediste'. E isso, infelizmente, também é atual, porque continua a ser um assunto, a culpabilização do outro faz parte. 'Eu amo-te, mas tu é que não estás a ser a mulher que é suposto seres'.
O que eu quis fazer com estes personagens foi dar-lhes sempre dois lados. E por isso é que quis que se conhecesse esse personagem pelo lado das mulheres, mas através das cartas de amor. Acredito que ele amava aquela pessoa, mas necessitava de ter poder e de se sentir amado/idolatrado.
Gosto, enquanto leitora, que o escritor não me diga 'este é bom' ou 'este é mau'. Gosto quando ele me faz duvidar dos meus próprios princípios. Porque é que eu estou a gostar desta pessoa se ela supostamente parece má? Adoro quando isso acontece.
Por outro lado conseguiu descontruir um pouco o ideal de que as mães são perfeitas e não têm falhas.
Para mim é isso que significa o título: 'Nem Todas as Árvores Morrem de Pé'.
Aborda ainda um outro assunto atual, o dos refugiados. Trouxe este tema por estar na ordem do dia?
Não, nunca penso nisso. Não acho que se deva pensar: 'Isto está-se a passar, deveria pôr no livro'. O público não deve interferir na escrita, nem nas canções, nem no livro. O livro é meu até ser das outras pessoas, assim como as canções.
Já escrevi uma canção sobre os direitos das mulheres no Afeganistão e fi-lo porque eu precisei de pensar e processar esse assunto. Não foi porque eu achasse que as pessoas precisavam de pensar sobre esse assunto. Não acho que o público deve entrar na execução de uma obra, deve entrar depois.
Mas lá está, os assuntos são atuais, como é o caso da liberdade e da repressão e o crescimento da extrema-direita. É importante voltarmos a falar destes períodos em que vivemos sem liberdade. Corremos o risco de quando não nos lembrarmos do passado voltarmos a cometer os mesmos erros.
Então a Luísa quando escreve é quase como se fosse uma escrita terapêutica para conseguir lidar com certos assuntos?
Completamente. Na escrita de canções é mais isso, preciso de resolver assuntos e faço-o através da canção, é uma maneira de processar os meus sentimentos, emoções e visão do mundo. Na escrita de romance é diferente, porque vou atrás dos personagens, eles é que mandam em mim, não os leitores.
Andámos a usar os nossos filhos para ter mais 'gostos', no fundo foram usados como um objeto de marketing. Acho que tem consequências, só que ainda não sabemos porque não são adultosHá pouco falava da liberdade e do crescimento da extrema-direita. Isso é o que mais a assusta no mundo atual e no que virá para as próximas gerações?
Há duas coisas que me assustam muito. Essa, a falta de liberdade, assim como a falta de empatia e compaixão pelo outro.
Mas há outra coisa que é esta parte dos miúdos estarem muito isolados. Chegar a um café e ver os adolescentes agarrados ao telemóvel, a não conversarem. Isso é das coisas que mais me angustia. Será que os meus filhos vão crescer sem saber o que é um olhar que denuncia uma paixão secreta? Será que vão conversar com os amigos sem ser através do telemóvel?
Angustia-me porque criamos seres humanos que são pouco empáticos e observadores. Dá-me mesmo quase vontade de chorar… Então quando são miúdos mais pequenos, que nem deviam mexer num telemóvel... Acredito que vai ter um grande impacto no futuro deles. Como é que vão socializar, ser amigos e pais?
Há mais uma coisa que me faz muita confusão, que é quando as pessoas famosas expõem os filhos. Sou bastante contra. Sinto que ainda não sabemos o mal que isso vai fazer a essas crianças, porque estão a crescer e só agora é que vamos saber como se sentiram em relação a isso, porque nunca ninguém lhes perguntou. Andámos a usar os nossos filhos para ter mais 'gostos', no fundo foram usados como um objeto de marketing. Acho que tem consequências, só que ainda não sabemos porque não são adultos.
Quando os meus filhos me dizem: 'Não tenho nada para fazer' eu respondo 'ótimo! Isso é um ótimo ponto de partida'. Depois acabam por encontrar qualquer coisa, porque as crianças são muito mais criativas que nósTambém vemos que as crianças não conseguem desenvolver a capacidade de ficar entediadas.
Digo muitas vezes isso também: a arte vem do tédio. Tive um podcast sobre o processo de escrita e lembro-me de uma vez o David Fonseca dizer: 'Olha estava em casa dos meus avós e não havia lá nada sem ser a guitarra'. Muitos autores diziam que começavam a tocar porque 'não havia nada para fazer'.
Quando os meus filhos me dizem: 'Não tenho nada para fazer' eu respondo 'ótimo! Isso é um ótimo ponto de partida'. Depois acabam por encontrar qualquer coisa, porque as crianças são muito mais criativas que nós.
Para a Luísa, enquanto mãe, isso não é desafiante? Porque há sempre o colega que já tem o telemóvel ou está nas redes sociais.
Comigo ainda não é tão comum, porque o mais velho tem oito anos. Mas por exemplo, com ele, eu disse-lhe uma vez que ele só ia ter telemóvel aos 18 anos - o que não é verdade - e ele acha que será só mesmo aos 18 [ri-se].
Não gosto, não quero passar grande parte do meu dia a ir ver a vida de outras pessoas, não me traz nadaNo que diz respeito às redes sociais, se têm um lado mau, também têm um lado bom, porque têm fomentado o gosto pela leitura.
É como tudo, depende da maneira como usamos e tudo o que é em excesso não é bom. Eu própria tenho um bloqueio nas redes sociais, quando chego a 30 minutos diários, bloqueio, porque sei que isto é muito aditivo. Às vezes dou por mim a ir lá com o dedo sem pensar. Não gosto, não quero passar grande parte do meu dia a ir ver a vida de outras pessoas, não me traz nada.
A Luísa já lançou livros infantis. É mais difícil escrever para adultos ou crianças?
Não sei… Os dois são exigentes porque as crianças perdem o foco rápido. O mais desafiante é deixar uma mensagem na qual fiquem a pensar. O desafio não é escrever uma história engraçada, mas uma mensagem que fique neles a marinar e que vá dando fruto.
Já está a pensar num novo romance?
Na verdade já tenho um livro muito avançado, porque comecei a escrever antes de sair este. Vai ser engraçado começar a escrever depois de ter lido que as pessoas dizem sobre a minha escrita.
Mas agora estou a precisar deste momento para me entregar a este livro ['Nem Todas as Árvores Morrem de Pé'] e não estar com a cabeça num outro sítio.
Tinha um bocadinho de medo de estar a brincar aos escritores. Gosto tanto de ler que queria ser justa, queria contribuir e não fazer uma coisa que fosse má, feia ou desinteressanteEstava à espera das reações que recebeu?
Tinha um bocadinho de medo de estar a brincar aos escritores. Gosto tanto de ler que queria ser justa, queria contribuir e não fazer uma coisa que fosse má, feia ou desinteressante.
Na música sou muito mais confiante, sei que as pessoas podem ou não gostar, mas sei que sei fazer música. Com a escrita não tinha isso. Claro que o facto da Maria do Rosário Pedreira ser a minha madrinha neste livro ajudou muito, porque sou muito fã e respeito muito o trabalho dela, é uma excelente editora.
Tudo isso ajudou a que eu tivesse um pouco mais de confiança, mas ao mesmo tempo duvidava. Vou ler 50 comentários bons, há um que não é bom e aquele comentário mexe imenso comigo. Os comentários mexem connosco quando nós tememos aquelas coisas. Li um comentário que dizia: 'Cheio de lugares comuns'. Isso é um medo meu.
Tenho de me habituar. Quando estou no meio dos escritores ainda me sinto uma intrusa, que não pertenço, mas é uma questão de trabalho e de encontrar o meu lugar aqui. Mas também gosto disso, de me sentir desconfortável, quer dizer que estou a experimentar uma coisa nova e que me aventurei.
Nunca esperei que fôssemos imprimir a quinta edição num mês, mas tenho vivido tudo isto com uma alegria enorme e com uma noção que é um trabalho de equipa. Tenho estado a viver algo que supera o meu sonho.