"Hesito, quero-me despedir, ouvir-me dizer que não voltarei, mas o grilhão pode mais: será sempre bilhete de ida e volta", escreve J. Rentes de Carvalho no seu novo livro, ‘O Meças’.
Personagem e escritor partilham neste caso o mesmo sentimento. O autor trasmontano saiu de Portugal em 1950 e vive em Amesterdão, mas regressa de carro à aldeia onde cresceu, Estevais, de três em três meses.
“Não é um regresso a casa - tenho a impressão de que nunca saio. Aquilo que eu julguei que podia descartar e dizer adeus está preso”, disse em entrevista ao Notícias ao Minuto.
E se por um lado, Rentes de Carvalho ainda se diz sentir “magoado com as grandes diferenças na sociedade” portuguesa, motivo que o levou a “recusar o país, fugir”, por outro diz que Portugal “é muito importante” para si.
“Ao fim ao cabo, muitas vezes o ódio é uma forma de amor. É gerado da mesma maneira, ainda que o resultado seja outro”, nota.
Tem poucos leitores em Portugal (onde durante muitos anos nem sequer viu os seus livros editados) e na Holanda é best seller, mas prefere ficar para a história da literatura como ‘escritor português’ em vez de ‘escritor holandês de origem portuguesa’.
Além disso, tudo o que é publicado no país onde vive é traduzido. “Mesmo que seja muito bom não me dá o direito usar uma língua estranha para uma coisa que é tão íntima”, considera.
“Eu só escrevo para a minha gente. Os holandeses compreendem e apreciam, mas não é a mesma coisa […] olham para os meus livros com mais distância e podem sentir-se emocionados, mas não lhes toca na casa deles”.
Ler num livro o medo de si mesmo
‘O Meças’ fala de um homem que, "depois de anos emigrado na Alemanha, regressa à sua aldeia de origem e se vê obrigado a partilhar casa com o filho (a quem detesta) e a nora (a quem deseja, mas inferniza a vida)".
É uma personagem cheia de maldade a quem falta capacidade para “exprimir aquilo que sente ou aquilo que lhe dói”, mas que leva os leitores a aprender sobre si mesmos, “nem que seja por aquilo que sentem em função do que leem”.
A literatura procura o lado negro da vida “pelo medo que as pessoas têm de si próprias", diz. "Quando são confrontadas com coisas terríveis inconscientemente perguntam-se ‘E eu, sou assim?’”.
Este é também um ‘livro-retrato’ de uma província real, muito diferente dos folhetos turísticos. “Muitas situações são iguais às que via quando era miúdo. Os mesmos hábitos, o relacionamento das pessoas, a agressividade, o desespero, a falta de esperança. Havia um bocadinho menos dinheiro”.
É por causa desse pouco dinheiro, considera, que “as pessoas cada vez mais vivem para dentro de si próprias” em aldeias onde toda a gente sabe o que vai dentro de portas alheias, mas agora sem nunca ter sido convidado a entrar, como antes acontecia.
A realidade de ‘O Meças’ é desconhecida para grande parte de uma juventude “sem interesse em mudar” o país e com “uma existência egoísta, baseada no prazer imediato”, diz Rentes de Carvalho. “Pensam que é lá longe ou foi no antigamente. Não é”.
Os chavões de Marcelo Rebelo de Sousa
No discurso de tomada de posse, Marcelo Rebelo de Sousa citou Miguel Torga para dizer - “Valemos muito mais do que pensamos ou dizemos”.
“Um chavão literário seguro”, refere Rentes de Carvalho, usado por alguém que a partir de agora tem de “medir as palavras à sílaba e à vírgula e tem de agradar ao grosso da população”.
Um livro como ‘O Meças’ “não cabe no discurso político”, salienta o autor. “O discurso político é uma coisa, isto é a vida de todos os dias, é outro departamento”.
E para esta ficção de vidas reais junta-se a memória de “acontecimentos, encontros, conversas” a “mentiras” que o autor conta a si mesmo. “Imaginar é uma brincadeira e a história vai-se criando”, o pior é “cortar as gorduras”.
‘O Meças’ tinha originalmente mais cem páginas, mas como o autor tem “respeito pela inteligência e sensibilidade do leitor” deixou apenas “osso e carne”.