"Um dia, os turistas vêm a Alfama para se verem uns aos outros"

Raquel Tavares é a entrevistada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto. Numa conversa descontraída, a fadista fala-nos do seu bairro de Alfama, do “equívoco” em relação ao “triste fado” e do fenómeno Salvador Sobral.

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Goreti Pera
21/07/2017 08:00 ‧ 21/07/2017 por Goreti Pera

Cultura

Raquel Tavares

Foi a partir da casa onde mora, em Alfama, que Raquel Tavares falou com o Notícias ao Minuto. Fê-lo com uma gargalhada sempre presente e um orgulho pelo bairro que transparece a cada frase que profere. Tinha apenas seis anos quando cantou fado pela primeira vez e foi a fadistice que a levou aos bairros mais típicos de Lisboa.

O cenário que apresenta quando interpreta ‘O Meu Amor de Longe’ é o mesmo com que convive no dia-a-dia. Senta-se na mercearia à conversa com os vizinhos, tem um saco que lança pela janela para não ter de descer as escadas e passeia pelos miradouros. Quem é de Alfama, está habituado à sua figura, não de fadista, mas de moradora do bairro.

Aos 32 anos, Raquel Tavares lida com o sucesso daquele que é o seu primeiro hit – que assume não ser um fado, mas “uma canção cantada por uma fadista” – e levanta a voz quando lhe dizem que o fado é triste. Não resistiu à tentação de cantar parte de alguns temas para provar que “o fado tradicional tem coisas felicíssimas” e garantiu ter vivido a vitória de ‘Amar Pelos Dois’, de Salvador Sobral, na Eurovisão como se fosse sua.

Tinha apenas seis anos quando começou a cantar. Crescer em Alfama fez com que o fado se enraizasse na sua identidade?

Eu nasci no Alto do Pina [freguesia de Lisboa], mas, como comecei a cantar muito pequenina, ia com a minha mãe para as coletividades dos bairros, que organizavam as noites de fado: Alfama, Mouraria, Madragoa, Marvila. Cresci nesses bairros todos porque a fadistice era muita. Mas não fui, de todo, aculturada. E minha irmã ouvia Guns N' Roses, Prince, Rui Veloso, e na minha casa ouvia-se muito Roberto Carlos, Duran Duran, não se ouvia fado.

Isto aconteceu por mero acaso numa festa de escola, quando a professora achou que eu tinha perfil para cantar um fado. Foi a partir daí que comecei a ter interesse pelos fados e daí a minha relação com os bairros e especialmente com Alfama, onde moro há 11 anos, muito perto de uma coletividade onde cantava aos sete, oito, nove anos. Sou alfacinha de gema (o meu pai é da Mouraria, a minha mãe é do Bairro Alto) e tenho uma profunda paixão por esta cidade. As pessoas de Alfama são a minha família diária. Há muita tradição ainda, embora estejamos a passar por esta fase um bocadinho claustrofóbica no que toca ao turismo. É ótimo, obviamente, para a economia geral, mas…

Considera que desvirtua aquela que é a identidade de Alfama?

É isso. Diariamente, vejo vizinhos a irem embora, a saírem das suas casas porque o negócio do Airbnb está a ganhar uma força tremenda. O povo do bairro de Alfama está a sair daqui, porque os prédios são vendidos e os compradores decidem apostar no turismo.

O povo de Alfama está a sair do bairro porque não tem condições para pagar a renda quando os prédios são remodelados. Estamos a falar de uma taxa muito elevada e, dessa forma, o bairro perde toda a graça. Um dia os turistas vêm aqui para se verem uns aos outros a passear. Quem faz o bairro são as pessoas. Há lojas de artesanato muito bonitas e gastronomia gourmet, mas Alfama não vive sem os tascos e sem o fado tradicional, sem as vendedeiras, as mercearias e talhos, a roupa lavada estendida na janela e esta gente. Se obrigarem as pessoas a sair daqui, não sei até quando vamos manter o bairro de Alfama como sendo o mais tradicional de Lisboa. É uma dualidade, eu percebo que é muito bom para a economia, mas é demais.

O turismo é bom para a economia, mas o povo de Alfama está a sair do bairro. É preciso adaptar a cidade para receber as pessoas

Sente que há um aproveitamento por parte de comerciantes, donos de restaurantes ou tuk tuks, por exemplo?

Claramente. Mas só quem fosse tolo é que não o faria, as pessoas têm de ganhar a sua vida. Obviamente que tudo inflacionou, restauração, hotelaria. Tenho amigos com tuk tuks, mas confesso que já tive uma relação mais simpática com eles. Há alturas em que sair do meu bairro para chegar a algum lado é muito difícil. [risos] A cidade é pequena, a zona histórica é muito pequena e é habitada, ao contrário de outras grandes capitais da Europa. Os segways, por exemplo, são giríssimos mas a classe média-baixa não tem dinheiro para os usar, porque é muito caro. Os preços são inflacionados para o turismo. Não condeno quem o faz, mas lamento que muitas pessoas não tenham essa oportunidade, de dar uma voltinha aqui no bairro.

Notícias ao Minuto

Considera que deveriam ser impostos limites?

Acho que sim. Para mim, o alojamento local é definitivamente o maior problema, porque tem de ser regulamentado. E, na minha opinião, deveria ser feito um estudo para que a maçã dourada que abrilhanta Lisboa não perca a sua validade. Porque, à velocidade que isto está a acontecer, desaparece. A minha gente é muito querida, simpática, a receber. Mas chega a haver uma certa exploração desse lado. Eu não gosto de sentir que as pessoas vêm para o meu bairro como se fossem para um safari. Há quem fotografe o interior das casas sem autorização, quem fotografe as próprias pessoas sem autorização. Isso é abusivo. As pessoas não são uma atração, andam na sua vida normal.

Às vezes olham para nós como os 'coitadinhos, que vivem nestas casinhas'. Isso incomoda-me e já me insurgi contra algumas pessoas. Há guias que contam a verdadeira história do bairro e há aqueles que ainda dizem que nós não temos casas de banho e que temos um balneário público. É verdade que existe, porque no início do século XX as casas não tinham casa de banho, mas estamos no século XXI e isso já não acontece. Vamos lá regrar a coisa.

Mas atenção, não tenho nada contra o turismo nem em que visitem o nosso bairro. Mas tudo tem a sua conta, peso e medida. É preciso adaptar a cidade para receber as pessoas. No Porto de Lisboa, às vezes temos quatro navios atracados e não tem noção das pessoas que saem daqueles navios. Às vezes, para subir a minha rua apanho trânsito a pé [risos]. É muita, muita gente.

O fado nunca foi só triste, isso é uma grande mentira e um perfeito disparate

A Raquel Tavares faz parte de uma nova vaga de fadistas que mudaram a forma como ouvimos fado. É a prova de que o fado não é triste?

O fado nunca foi só triste, isso é uma grande mentira e um perfeito disparate. Há fados do início do século XX que falam das tradições de Lisboa com muita graça. Cantar fado, para mim, é cantar a vida. As pessoas estão muito equivocadas em relação ao fado tradicional. Se eu lhe perguntar como é que é o samba, dir-me-á que é alegre. Eu mostro-lhe sambas aparentemente felicíssimos que são de uma tristeza profunda. O povo brasileiro canta a tristeza de uma forma feliz. Eu conheço bem o samba de raiz porque vivi no Brasil no meio de sambistas. Se há música triste neste mundo, é o samba. Pensarão que não sei o que estou a dizer, mas sei e dou nomes de samba de raiz: Cartola, Zeca Pagodinho, Beto Carvalho, Clara Nunes. Eu canto-lhe um fado tradicional feliz. O fado tradicional tem coisas felicíssimas: ‘A casa da Mariquinhas’, de Alfredo Marceneiro, não tem nada de infeliz, é uma história da casa da Mariquinhas.

Irrita-a que as pessoas digam que o fado é triste?

Não fico zangada, mas dá-me vontade de fazer um projeto e apresentar na escola aos miúdos, que é uma coisa que acho que devia ter acontecido quando a fado foi declarado Património Imaterial da Humanidade. Vamos lá falar da história moderna em Portugal. Isto passa tudo por um aculturamento. O fado está agregado à tristeza por conta da sua história, não necessariamente por conta da sua música. Eu vou à Holanda cantar fado e as pessoas tanto choram como riem às bandeiras despregadas, quer no fado tradicional que canto feliz e triste, quer nas cantigas que canto agora. Porque este disco [‘Raquel’, 2016] não é um disco de fados, tem alguns fados, mas é um disco de canções cantadas por uma fadista.

Eu nunca tinha tido um hit na vida, para mim é uma novidade. É maravilhosoComo é que tem sido lidar com o sucesso de ‘Meu Amor de Longe’?

Eu nunca tinha tido um hit na vida, para mim é uma novidade. Quando digo nos concertos que vou cantar o ‘Meu Amor de Longe’, as pessoas gritam. Eu nunca tinha tido essa experiência, é maravilhoso. As pessoas abordam-me na rua com carinho, tenho ouvido histórias de pessoas que se identificam com aquela letra porque têm o seu amor longe. Gravei o videoclipe no meu bairro e não podia ter um cenário mais bonito. Há emigrantes que vêm a Alfama e fazem o percurso do videoclipe, depois encontram-me e perguntam-me se a parte do saco de laranjas é verdade. É verdade, eu tenho um saco em casa que mando para baixo para me porem alguma coisa e não ter de descer a escada. O lavadouro onde está a Maria Alice e a Olga a lavar os tapetes já não é tanto usado para lavar roupa, mas os tapetes sim. Aquilo é tudo verdade. As pessoas por quem passo e com quem falo são os meus vizinhos, não precisei de figuração. O miradouro onde termino é o Miradouro de Santa Luzia, vou lá imensas vezes.

Amor Maior’ é não só o nome de uma música de Paulo Gonzo com a Raquel Tavares como banda sonora de uma telenovela. Que papel tem a televisão na promoção dos artistas e da música?

Eu acho que, mais do que a televisão, as rádios tem um enorme poder. A promoção serve para dar imagem a quem ouvem na rádio. A televisão é um enorme veículo de promoção à pessoa, à imagem, ao reconhecimento do artista, mas quem eu acho que é o maior aliado da música é a rádio.

É certo que algumas músicas se tornam virais nas telenovelas, como é exemplo o ‘Loucos’, de Matias Damásio. As novelas tem essa capacidade, mas há um estudo grande por trás disso, aquelas músicas não foram postas ali à toa. Além disso, as músicas escolhidas para as novelas podem ter um lado positivo para o artista ou não. Às vezes, pode até nem ser tão bom assim, porque as pessoas associam a música à novela e não ao artista.

As novas plataformas de streaming revolucionaram a forma como ouvimos música. O artista ganha ou perde com plataformas como o Spotify ou o YouTube?

Essa é uma questão a que ainda não sei responder, porque ainda não consegui filtrar. Tenho o Spotify, obviamente, que dá um acesso à musica brilhante, mas eu, Raquel, sou a pessoa que compra discos quando gosta muito. Aliás, ao mesmo tempo que surgem todas essas plataformas, o vintage está a voltar, o que é delicioso. O ato de tirar o vinil da capa e de abrir o gira-discos faz parte da forma como se ouve a música. As plataformas não são boas para as editoras, que precisam de vender discos, mas são boas para os artistas serem divulgados. Não tenho uma opinião formada acerca disso.

Se é para ser figura pública, que seja por causas dignas, como o concerto pelas vítimas de Pedrógão Grande

Atuou há poucos dias no concerto pelas vítimas de Pedrógão Grande. O que é que sente quando a música é usada em causas tão nobres?

Sente-se que estamos a cumprir aquilo para que a música serve, que é unir pessoas. É uma linguagem universal. Foi das coisas mais bonitas que fiz na minha vida e fiquei muito grata por poder usar a minha arte para unir as pessoas. Eu detesto a definição de figura pública mas, se é para ser, que seja com utilidade cívica, para ter voz ativa em causas dignas e necessárias.

Como é que olha para o fenómeno Salvador Sobral?

Eu não conhecia o Salvador, já conhecia a Luísa, e vivi aquela vitória como se fosse minha. Música portuguesa, bonita, bem feita, com bom gosto e bem cantada, é o que me parece. Aquele menino tem isto tudo e aquela menina fez isto tudo. Eu até já cantei a música em concertos porque gosto dela, porque me apeteceu cantá-la.

É preciso reconhecimento internacional para que um artista seja reconhecido no seu país de origem?

Já não, já foi. Há 15 anos atrás era assim. Olho para a carreira de algumas amigas e colegas que tenho, como é o caso da Mariza ou da Ana Moura, que já disseram que precisaram de reconhecimento lá fora para serem reconhecidas em Portugal. Hoje em dia, isso já não é necessário. Eu não precisei de fazer absolutamente nada lá fora para ter as pessoas que gostam de mim. O fenómeno Salvador começa antes da vitória na Eurovisão, quando foi à eliminatória, por causa da controvérsia. A controvérsia é o melhor que pode acontecer. E a verdade é que quem falou mal teve de se calar.

A Eurovisão ganhou uma nova vida em Portugal pela controvérsia. A vitória foi a cereja no topo do bolo

O festival da Eurovisão ganhou uma nova vida em Portugal?

Pela primeira vez em Portugal, o país voltou a parar para ver a Eurovisão, como fazia quando eu era miúda. Há quantos anos isto não acontecia? E isto a propósito da controvérsia que o Salvador criou, porque ele era bom mas criava discórdia. E o bom ganhou, porque o que importa é a música, o seu intérprete e o autor, não é o espetáculo nem o fogo-de-artifício. O festival ganhou uma nova vida em Portugal pela controvérsia. A vitória foi a cereja no topo do bolo e uma chapada com luvas de pelica a quem acha que aquilo não é música representativa da canção portuguesa.

O Governo de António Costa restaurou o Ministério da Cultura. Como é que olha para o trabalho que tem sido feito pelo ministro Castro Mendes?

Eu tenho obviamente opinião política, obviamente que tenho religião e clube desportivo. Mas, sabendo eu a repercussão que estas coisas têm, prefiro nunca me pronunciar acerca de política, religião e futebol.

O que é que precisa de ser feito em Portugal a nível de promoção da Cultura?

Há uma coisa muito importante que eu aprendi no Brasil e que Portugal precisa de aprender um bocadinho: é ver o copo meio cheio. Seria muito injusto da minha parte dizer que não estamos a melhorar, porque nós estamos a melhorar no que diz respeito à Cultura, pelo menos à música. Eu sei que há outras áreas menos beneficiadas, mas eu não posso queixar-me. A música está a ganhar um lugar muito importante. Porém, enquanto artista e enquanto cidadã que desconta, acho que há medidas que precisam de ser tomadas para nos defendermos, para um dia termos uma reforma. A nível de condições de trabalho, há coisas que podiam ser um bocadinho melhores. Devemos olhar para os exemplos de Espanha e França, que têm um sindicato de artistas, e uma forma diferente de lidar com artistas. Gosto de acreditar num futuro breve melhor.

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