O dia 12 de janeiro de 2020 ficará para sempre marcado na memória de todos os portugueses. A morte de Paulo Gonçalves deixou o país em choque, perdeu-se um símbolo do motociclismo e, acima de tudo, um símbolo do desporto nacional.
Mas para Joaquim Rodrigues, cunhado de Paulo, o dia 12 de janeiro deixou uma marca tal que o piloto de 38 anos assumiu que está a lutar contra uma depressão. Os momentos de tensão, desespero e tristeza vividos no deserto da Arábia Saudita foram traumáticos, embora Joaquim esteja já no caminho certo para superar tudo aquilo que viveu.
O piloto da Hero Motorsports anunciou que vai ao Dakar e, em exclusivo ao Desporto ao Minuto em mais uma entrevista para a rubrica 'Dos 0 aos 100', explicou tudo aquilo que o levou a tomar a decisão.
Joaquim Rodrigues quer enfrentar o 'dragão' do Dakar, como o próprio referiu, e ultrapassar todos os traumas pelos quais passou. Num testemunho de coragem, o piloto de Barcelos abriu o coração e deixou a garantia que irá participar no rali mais duro do mundo por si, pela sua família e também pelo cunhado... Paulo Gonçalves.
Sabia que estava no buraco e que tinha de fazer algo para sair deleAntes de nos focarmos no Dakar, gostaria de saber o que te levou ao motociclismo. Foi uma paixão desde cedo?
Nasci nas motos. O meu pai era piloto e também trabalhava com as motos, e eu ia para as corridas com ele e foi naturalmente que nasceu este bichinho. Ele nunca me forçou a nada, eu é que quis andar de moto e contei, claro, com a ajuda dele sempre.
Ainda te lembras da primeira vez que competiste?
Lembro! Estava de férias com os meus pais no Algarve, tínhamos uma rolote daquelas mais antigas, e o meu pai meteu lá a minha motinha em cima, porque havia lá uma corrida qualquer. Creio que foi em Silves, devia ter para aí uns sete anos e foi a primeira vez que fiz uma corrida.
E quando é que tiveste a certeza de que querias seguir este caminho profissional?
Tudo começou com uma brincadeira. Fiz algumas corridas bastante novo e acabei por cair e partir um pé. Na altura, o meu pai tirou-me a moto. Só passado dois anos é que voltei. Em 1991, a malta dos campeonatos nacionais foi para a pista que havia lá em Barcelos treinar e eu pedi ao meu pai para dar uma volta de moto, depois de os ver a andar. Estive lá a andar com uma moto velhinha e virei-me para o meu pai e disse-lhe: ‘olha, se tiver uma moto igual aos outros, eu ganho’. Pronto, uns 10 dias antes desse meu regresso à competição, o meu pai apareceu em casa com uma moto. A partir daí, de 1991, nunca mais parei. Nesse ano fui logo campeão nacional com nove anos.
Sei que o teu sonho foi sempre o de chegar ao campeonato norte-americano de supercross. Por isso, podemos dizer que o dia 9 de abril de 2005 foi especial para ti [primeiro pódio de um português na categoria]?
É um dia que vai ficar marcado para a minha vida toda. Tenho o troféu comigo e é a minha relíquia. Não consegui ser campeão americano, mas era um dos que estava na luta. Foi o meu primeiro pódio e isso vai ficar para o resto da vida. Nunca ninguém me vai conseguir tirar esse feito. Tive perto do meu sonho e, mesmo não tendo lá chegado, isso já me deixa muito feliz.
O dia do histórico pódio que Joaquim Rodrigues nunca esquecerá
É o troféu que guardas com mais carinho?
Sim, mas conquistei vários importantes. O meu campeonato nacional de supercross, também tem um grande valor para mim, mas claro que aquele pódio… Aquele campeonato é como a Fórmula 1 do motocross. Ter conseguido lá um pódio é o melhor troféu que tenho.
Em 2019 venceste também o Pan Africa Rally. Pode dizer-se que foi também uma das grandes conquistas da tua carreira?
Foi muito bom, claro. A minha experiência nos ralis é muito pouca quando comparado com outros da frente. A minha carreira foi toda no motocross e supercross, como toda a gente sabe. Portanto, a minha primeira vitória nos ralis é sempre aquela que marca. Também consegui um top10 na minha primeira participação no Dakar [2017] e isso se calhar até tem mais valor porque é o Dakar. Marcou-me muito também, tal como a primeira vitória num Rali como aconteceu no Pan Africa.
Falando precisamente no Dakar, foi há mais ou menos um mês que fizeste o anúncio da tua presença na próxima edição. Como é que se deu o click para dizeres a ti próprio: ‘Vou participar’?
Foi um conjunto de coisas que aconteceram à minha volta, o facto de eu não estar feliz comigo próprio. Tive a noção de que tinha de fazer alguma coisa, senão ia acabar mal… Felizmente, tive esse pensamento naquela noite, estava lá numa ponte em Barcelos, a olhar para o rio às 11h00 da noite, sozinho, e deu-me aquele click de começar a escrever. Estive cerca de uma hora e meia a escrever aquele texto que depois publiquei nas minhas redes sociais.
E como é que te sentiste depois de escrever aquele texto, que acredito também que tenha sido uma espécie de desabafo?
Senti-me bem e senti que estava na hora de mudar. Ninguém sabia de mim, eu tinha desaparecido completamente e também não quis aparecer de repente, ‘olha já está a andar de mota’. Não… Quis dar uma satisfação aos meus patrocinadores e às pessoas que sempre me apoiaram. Foi também com esse intuito que quis escrever aquela mensagem. Para saberem o que se passou comigo e que tinha decidido voltar a ‘mexer-me’.
Colocares-te o objetivo de participar uma vez mais no Dakar foi também importante para te reergueres depois de um período bastante difícil?
Óbvio que isso também influência. O não desistir daquilo que sei fazer e daquilo que gosto ajuda-me. Ter o objetivo de lá voltar, de enfrentar novamente a desgraça que aconteceu, também sei que isso me vai fazer mais forte. Estou a trabalhar para isso mesmo, para chegar a janeiro e estar mentalmente preparado para voltar a alinhar no dia de partida do Dakar.
E qual foi a reação da tua família sobre a decisão? Apoiaram-te?
A ideia de voltar ao Dakar não foi pensada sequer. Estava a escrever e as coisas iam-me saindo. O meu primeiro intuito era dar uma satisfação a toda a gente de como estava. Porque sabia que estava no buraco e que tinha de fazer algo para sair dele. Tive de assumir que estava doente, com uma depressão, e fazer alguma coisa. Foi naquela hora que eu decidi. ‘Vou voltar ao Dakar porque tenho de fazer isto por mim’. Foi o que pensei, fazer isto por mim, pelo Paulo, pela minha família. Tenho que voltar lá. Tenho que me superar e não ter aquele dia negro na minha cabeça para sempre. Foi naquela noite que decidi e depois publiquei no dia seguinte.
Quando pensas no regresso às areias da Arábia Saudita, há algum tipo de receio ou medo que te vem à cabeça?
Neste próximo Dakar, naquele primeiro dia, sei que vai ser o pior dia da minha carreira. Voltar lá, voltar a alinhar e voltar a arrancar vai ser um dia muito duro e tenho consciência disso, por isso é que me quero preparar para não falhar, nem fraquejar. Posso andar aqui de moto, noutros países, em qualquer lado, mas não é a mesma coisa que voltar lá. Voltar a viver o deserto da Arábia Saudita no Dakar vai ser difícil. Esse primeiro dia vai ser o meu maior desafio mental porque vou reviver tudo outra vez.
Joaquim Rodrigues numa etapa no Dakar© Getty Images
Vais com alguma expectativa em termos de classificação?
Sinceramente, não estou minimamente preocupado com o lugar em que vou ficar. O meu próximo Dakar vai ser uma luta contra mim próprio para me voltar a realizar e voltar a dizer para mim mesmo: ‘Consegui terminar o Dakar mesmo depois de tudo o que aconteceu’. Se conseguir chegar ao fim, para mim já vai ser uma vitória. Isso é que vai ser importante para mim.
Em 2018, passaste também um período muito difícil. Uma grave queda no Dakar resultou na fratura da tua coluna.
Só me lembro da última nota antes do acidente. Depois não me lembro de mais nada, só de acordar no hospital. Foi tão grave que nem sabiam se tinha de ficar numa cadeira de rodas ou não… Foi mesmo grave. Fiquei seis dias no hospital a olhar para o teto porque não me podia mexer. Tinham de me dar de comer, de me fazer tudo. Pensava muito na hipótese de ficar de cadeiras de rodas. ‘E agora o que é que vou fazer? Será que isto vale a pena?’. Passou-me muita coisa pela cabeça e até voltar a dar os meus primeiros passos foi complicado. Depois, voltar a subir para uma moto ainda foi mais complicado. Só voltei a sentar-me em cima de uma moto uns oito meses depois do acidente. Felizmente tive muito apoio e ótimas pessoas à minha volta, mas a primeira corrida que fiz depois disso foi horrível mentalmente. Estava cheio de medo… Sei que é uma sensação que vou voltar a sentir quando voltar ao deserto da Arábia Saudita.
Se eu desistir agora, sinto que vou ser um fracassado para toda a vidaAdmitiste que estes têm sido meses muito duros e que ganhaste 10 kg. Estás já a trabalhar para regressar à tua melhor forma?
Eu sabia que estava no buraco e que se continuasse assim, as coisas não iam correr bem para o meu lado. Tinha de fazer alguma coisa por mim e foi a partir daí. Lembro-me de caminhar, estar em frente à praia, no dia que fiz aquela publicação, e as ideias de como é que poderia melhorar começaram a surgir. Tinha engordado 10 kg e meti na cabeça: ‘vou perder estes 10 kg’. Mudei a minha dieta toda de um dia para o outro, foi mesmo radical.
E como é que foi o primeiro contacto com a moto depois destes quase cinco meses parado?
Fui fazer testes com a minha equipa para o Alentejo. Fiquei lá um bom bocado a olhar para a moto… Depois foi uma sensação que nem sei explicar muito bem. Tinha aquelas dúvidas sobre como me iria sentir, tinha muita coisa na cabeça. Felizmente, ao fim de umas voltas, comecei a ter o ‘feeling’ da moto e já comecei a acelerar um pouco. Podia-me dar para cortar o gás e nunca mais voltar às motos, mas felizmente não me deu para esse lado.
Acordava a meio da noite a chorar com a imagem do Paulo nas minhas mãosA Hero Motorsports, a tua equipa e a equipa que o Paulo representava, fez questão de te incentivar ou foste tu a demonstrar a vontade de voltar ao Dakar?
A equipa esteve sempre do meu lado. O nosso chefe de equipa é muito nosso amigo, era muito amigo do Paulo também, e ele pôs-me sempre à vontade. Somos como família e ele disse-me que se quisesse voltar a andar de moto o meu lugar na equipa estava garantido. Sempre me disse para não me preocupar com nada. Estiveram sempre cá para me apoiar a mim e à minha família. No dia que decidi [ir ao Dakar], eles estavam lá.
Esta será a tua quinta participação no rali mais duro do mundo, uma edição que para ti será certamente diferente de todas as outras. Consegues definir o teu grande objetivo para este Dakar?
Superar estes meses e mostrar que não sou fraco, e que não desisti. Tenho estes medos e todas estas dúvidas devido a tudo o que aconteceu e que me marcou, e eu vou voltar a enfrentar aquele dragão, entre aspas, que é o Dakar. O meu objetivo é enfrentá-lo, superá-lo e chegar ao fim.
Por ti e também pelo Paulo, certamente…
Por mim, pelo Paulo, pela minha irmã, pelos meus sobrinhos e pela minha família. Vou lá numa luta contra mim próprio, contra o meu negativo, contra os meus medos. Se eu desistir agora, sinto que vou ser um fracassado para toda a vida. Estou lá com os meus colegas de equipa e vou ajudá-los obviamente, mas o meu principal objetivo é superar esta fase e estes meus traumas. O que assisti naquele deserto foi o que me criou estes traumas todos, por isso é que tenho de lá ir lutar contra eles.
Após o dia fatídico da morte do Paulo surgiu uma fotografia tua, no deserto, que rapidamente se tornou viral. Estavas a chorar e visivelmente consternado. Já voltaste a olhar para essa imagem?
Só passado muito tempo. Estive com o telefone desligado durante mais de um mês. Não via televisão, não via notícias, não via nada. Não queria saber de nada e cortei-me completamente do mundo. As pessoas que queriam saber de mim, na altura, ligavam para a minha companheira. Obviamente também estava sempre com a minha irmã e em família, a viver o nosso luto. Não tive noção do que se passou e do que falavam. Mas sim, vi a imagem, mas acabei por ler que naquela imagem estava ali sozinho e que foi um helicóptero que me foi dar a notícia. Não foi nada disso. Eu estava ali no deserto, meio perdido e nem sei como é que me tiraram aquela foto. O Paulo estava ali ao meu lado, a metros de mim. Mas não tenho noção do que andava lá a fazer, nem sabia que estava ali… Já estava noutro mundo completamente perdido, já tinha entrado em choque. Só pensava na minha irmã e nos meus sobrinhos. Foi um trauma para mim e foi isso que me fez entrar nesta depressão. Acordava a meio da noite a chorar com a imagem do Paulo nas minhas mãos, a lembrar-me do estado em que ele estava. Lembrava-me de tudo aquilo que vivi. E hoje digo, para mim, tinha sido melhor não ter assistido a nada. Só eu sei aquilo que passei e foi isso que me causou todos estes problemas.
Joaquim Rodrigues no deserto da Arábia Saudita momentos depois da morte de Paulo Gonçalves© EPA / Andre Pain
A organização decidiu implementar novas medidas de segurança nas motos, após a trágica edição do ano passado. Vão, por exemplo, competir com airbags internos em todas as etapas e ouvir sinais sonoros quando se aproximam de zonas perigosas. O que achas das alterações?
Concordo que a organização tem que fazer algo para diminuir o ritmo de corrida, que neste momento é muito elevado. São corridas de motocross autênticas, onde todos arrancam a fundo e chegam a fundo. No entanto, algumas das alterações que eles estão a tentar arranjar não concordo, porque a grande base de segurança de um rali é o roadbook. Enquanto forem feitos roadbooks iguais para carros, motas ou camiões, vão sempre haver tragédias. Acidentes vão sempre existir, mas podem existir menos se se começar a fazer roadbooks mais apropriados a cada categoria. Não sei, por exemplo, como é que vão funcionar os airbags… Nós, de moto, estamos sempre a ter impacto. Aquilo funciona por sensores e a cada pancada vai disparar. O que é que vamos fazer? Vamos ter de parar e ter de recarregar aquilo novamente? Isso a mim não me faz muito sentido. A alteração principal que deveria haver era melhorar o roadbook e marcar bem os perigos.
Falaram também em reduzir a velocidade das motos. Depois vamos ali todos a 140 km/h e onde é que os pilotos vão ganhar tempo? Onde é perigoso, onde é sinuoso e onde as pessoas podem cair… Dessa forma, os pilotos vão arriscar e vão cair. Ir a direito a 140 ou a 160 km/h é igual, desde que os perigos estejam bem assinalados! E depois é preciso acabar com os perigos que são iguais para carros e para motos. Por exemplo, há um piso que está cheio de pedras… Para um carro é sempre a fundo e para uma moto é um perigo. O roadbook é igual para todos e é aí que está o maior problema, porque uma moto não é igual a um carro.
Ainda falta cerca de meio ano até ao Dakar. Que provas vais fazer até lá como preparação?
Neste momento ainda não sei o que vamos fazer. Ao Rally de Marrocos deveremos ir, até porque todos costumam ir por ser a última corrida do Campeonato do Mundo e a última também antes do Dakar. O resto é a equipa que vai decidir, mas é como te disse: Neste momento, estou preocupado é em pôr-me bem.
Será este o maior desafio da tua carreira?
Vai ser um deles, certamente. Será mais difícil derivado a tudo o que aconteceu e, obviamente, por ser o Dakar. A corrida mais perigosa e difícil do mundo. Este será mais difícil ainda, não pela parte física, mas sim pela parte psicológica. O nosso psicológico é o motor do nosso corpo. Já tive vários desafios na minha vida e acho que estes será um dos mais difíceis, sem dúvida.
Joaquim Rodrigues no Dakar© Getty Images