O último jogo de Portugal na fase de grupos do Euro'2020 é frente à campeã do mundo, França. Depois da final de 2016, em Paris, onde a equipa das quinas fez história, as duas seleções voltam a encontrar-se em fases finais de grandes competições.
O Desporto ao Minuto quis perspetivar este verdadeiro duelo de titãs - e de candidatos ao título - e procurou ajuda de alguém que viveu e respirou o futebol francês nos últimos tempos: João Tralhão.
O antigo treinador adjunto de Thierry Henry no Monaco ajudou-nos a traçar o perfil da seleção gaulesa de futebol e analisou os traços mais marcantes da equipa orientada por Didier Deschamps, a qual classifica como "extremamente poderosa".
Mais do que fazer um exercício de quem é que vai jogar, é olhar para o padrão do que eles têm feito nos últimos temposPara começar, quais são os maiores perigos desta seleção francesa?
Todos conseguem perceber que a seleção francesa é uma uma seleção com poucas fraquezas. Este tipo de seleções, como Portugal e até a Alemanha, tem poucas ou nenhumas limitações. Têm jogadores incríveis… E, para dificultar quem joga contra a seleção francesa, eles têm um treinador que já lá está há muito tempo, à semelhança do que acontece também com Portugal. É um selecionador que já tem as rotinas criadas, com um ambiente criado e uma identidade fixa, o que permite a França ser uma equipa mais forte. A nível individual, tem muita qualidade em todos os setores, e, a nível coletivo, tem uma identidade muito própria. Para recordar, no último Europeu chegaram à final e foram derrotados por um super Portugal, e, no Campeonato do Mundo, sagraram-se campeões. Estamos a falar de uma equipa extremamente poderosa.
França é uma das seleções mais fortes no que aos jogadores de ataque diz respeito. O que deve fazer Portugal para neutralizar nomes como Mbappé, Griezmann e Benzema?
O selecionador português e o seu staff sabem, melhor do que ninguém, o que fazer nesse aspeto para superar o ataque temível da França. São jogadores muito rápidos, tecnicamente evoluídos, finalizadores, bons no drible, bons de cabeça… Todos têm características muito distintas, mas todas elas difíceis de parar. Depois. há outro aspeto, temos jogadores que já estão habituados a defrontar estes jogadores. Dou o exemplo do jogo entre o Manchester City e o PSG, porque, curiosamente, vamos ter um novo confronto entre Rúben Dias e Mbappé. Acho que os jogadores e o selecionador Fernando Santos sabem perfeitamente como parar este tipo de jogadores, dada a experiência e o conhecimento que têm. Temos também de ter em conta que temos grandes jogadores na defesa, no meio-campo e até no ataque, que nos permitem ter uma excelente organização defensiva. A seleção portuguesa funciona muito bem como equipa e no processo coletivo.
Posso antecipar que há um jogador que pode ser chave. Não sei se será titular ou não, mas falo do Rabiot. Tem uma utilidade muito importante para a seleção francesaKingsley Coman, Lemar, Dembélé… Acha que França apostará na velocidade contra Portugal?
Do que conheço da seleção francesa, a ideia de jogo deles é potenciar as características dos jogadores que têm. Não vamos esperar uma ideia de jogo muito diferente daquilo que já se espera, que é França a jogar um futebol muito pragmático e a explorar as suas melhores características. Falaste em jogadores muito evoluídos tecnicamente, muito rápidos e que são muito perigosos quando têm espaço para correr. Acho que França vai ser fiel ao que tem sido nos últimos tempos, até porque a ideia de jogo deles é muito eficaz.
Nos últimos dois jogos com a seleção portuguesa, Deschamps apostou num meio campo com Kanté, Pogba e Rabiot. O segredo da estratégia francesa também pode passar por este meio-campo?
Uma coisa é a estratégia, e, como referi, acho que ela vai ser muito fiel ao que tem sido nas últimas competições. Do ponto de vista posicional, França, mesmo a jogar num 4x4x2, raramente não utiliza um dos extremos como médio. Já vimos o Rabiot a fazer essa função, que a defender era um médio esquerdo. Mas, mais do que fazer um exercício de quem é que vai jogar, é olhar para o padrão do que eles têm feito nos últimos tempos. França já nos habituou a jogar com três médios e três avançados, já nos habituou a jogar com quatro médios e dois avançados, mas com os médios a jogar nas alas que optam muito pelo interior e quem explora as laterais são os defesas laterais. A defender são duas linhas de quatro, ou seja… já nos habituaram a jogar de tanta forma diferente, mas o que mais identifica o futebol desta seleção são os ataques rápidos e uma equipa compacta defensivamente. Uma equipa que procura ter a bola com a maior objetividade possível. Independentemente da forma como se vão apresentar, o mais importante é perceber a identidade do jogo deles. Não são uma equipa muito pressionante, eles esperam mais pelo adversário, mas é difícil de entrar no bloco deles. Ofensivamente, são muito objetivos, atacam com muito critério e exploram bem as zonas interiores, mas, quando têm de aproveitar as transições rápidas, tornam-se muito eficazes.
Didier Deschamps assumiu o cargo de selecionador francês em 2012© Getty Images
Apenas cinco dos 26 eleitos por Didier Deschamps jogam na Ligue 1, sendo que dois deles são guarda-redes. Isto é um sinal de que o campeonato francês também não consegue reter o seu talento, à imagem do que acontece em Portugal?
Quando estive em França e entrei na realidade francesa, apaixonei-me muito rapidamente pelo futebol deles. Vi muitos jogos, devorava o futebol francês para me ambientar e gostei mesmo muito do jogador francês, desde os mais jovens aos mais velhos. Ia assistir a jogos de equipas B, de juniores e até da terceira divisão, e a qualidade era incrível. Vias ali tanta qualidade… Não querendo comparar as Ligas, acho que a Liga francesa é extremamente competitiva. Houve ali um período onde o PSG estava noutro planeta, mas, se formos reparar equipas como o Monaco, o Lyon, o Lille, conseguem agora aproximar-se mais do nível deles.
Pegando exatamente nesse aspeto, acredita que este ano – em que o Lille se sagrou campeão – não foi, talvez, uma exceção à regra?
Acho que houve dois motivos para que isso aconteça. Houve uma mudança de treinador no PSG, o que cria sempre alguma instabilidade e que indica que as coisas não estavam muito boas, mas por outro lado vi outras equipas muito bem preparadas. O Lille, por exemplo, foi uma equipa muito sólida, muito consistente durante todo o ano. Destaco aqui também o nosso Renato [Sanches], vi-o fazer uma época incrível, ao seu nível. Foi esta conjugação de dois fatores. A ideia de que a Liga francesa não é competitiva é uma ideia completamente errada. Vou só reforçar esta ideia: o PSG, apesar de ter alguma instabilidade, é uma equipa de topo da Europa. Tive oportunidade de jogar contra eles e é uma equipa de outro planeta a todos os níveis, que este ano viu-se superada. Outro dos motivos pelos quais a Liga francesa não tem tanta representatividade na seleção é porque França tem uma qualidade imensa e conseguiria fazer duas ou três seleções de altíssimo nível. Quer se queira ou não, a Liga inglesa e alemã estão noutro patamar financeiro, e é difícil também reter os jogadores, o que acontece também em Portugal. Por um lado, todos gostavam de ver mais jogadores da Liga francesa ou portuguesa nas seleções, mas, por outro, acho que é também um motivo de enorme orgulho ver os nossos talentos a serem cobiçados pelos maiores clubes do mundo.
João Tralhão ao serviço do Monaco© Getty Images
Olhando para o que foi a época e para os últimos jogos desta seleção. Quem acredita que pode ser o grande desequilibrador frente a Portugal?
Recordo-me de que, no último Mundial, França apresentou uma grande surpresa aos olhos de quem não o conhecia, que era o Pavard, lateral-direito. Dificilmente as pessoas pensavam que ia fazer um grande Campeonato do Mundo, mas fez. Adivinhação não consigo fazer, mas o que posso antecipar é que há um jogador que pode ser chave. Não sei se será titular ou não, mas falo do Rabiot. Tem uma utilidade muito importante para a seleção francesa, já o conheço há muitos anos r sempre me impressionou o conhecimento que tem do jogo. É extremamente completo e, não sendo uma das maiores figuras, acho que é possível que faça um Europeu muito regular. Será um jogador muito útil porque ele trabalha para suportar os outros, mas também é capaz de ter uma dose de muito brilhantismo, porque ele também tem essa capacidade. A estrela não foge ao que toda a gente diz, que é o Mbappé. Um jogador que já provou ser capaz de fazer coisas maravilhosas e é um avançado completamente imprevisível.
Muitos podem esperar que o Ronaldo se apague neste Europeu, mas tenho a plena convicção de que ele vai aparecer muito bem
E ao contrário, na nossa perspetiva? Quem acredita que pode fazer a diferença? Em 2016 acabou por ser o Éder, um nome que à partida talvez ninguém esperasse.
Do nosso lado, sou um bocadinho mais contido. Espero que a seleção portuguesa traga novamente o título, é esse o meu grande desejo, mas não quero também ser suspeito. Felizmente, muitos dos jogadores que treinei fazem parte desta seleção. O meu desejo é que eles brilhem ao mais alto nível. Não quero cair num cliché, mas acredito mesmo que o Cristiano Ronaldo é um jogador fundamental para a seleção portuguesa! Por tudo o que representa… É um marcador de golos, é um líder dentro de campo, pode fazer a diferença a qualquer momento. Tem essa capacidade e acho que ele tem aqui um desafio extra. Muitos podem esperar que o Ronaldo se apague neste Europeu, mas eu tenho a plena convicção de que ele vai aparecer muito bem neste. É um jogador de desafios e vai ser a figura desta seleção. Quanto a surpresas, acho que não vai haver, porque a equipa vale muito pelo coletivo, pelo seu todo. Quando vemos o Cristiano Ronaldo a trabalhar para a equipa, é este o melhor exemplo que pode dar a todos os outros. Temos condições para fazer um grande Europeu, tenho a certeza.
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