"No futebol de formação daquela altura, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) era a máquina de um comboio que puxava as carruagens dos clubes. Ao longo destes anos, estes foram aperfeiçoando-se e preparando cada vez melhor metodológica, técnica e cientificamente os seus departamentos de formação", frisou à agência Lusa o treinador.
A profissionalização da FPF, sob o signo de uma nova mentalidade coletiva, acelerou a maturação competitiva do talento nacional, responsável por converter idas ocasionais numa presença constante das várias seleções em fases finais de Europeus e Mundiais.
"Foi essa renovação e inovação contínua que pusemos a funcionar na FPF e que dá logo a presença nos Mundiais de sub-20 de 1993, 1995 e 1999 e a sucessiva base de atletas de elite do futebol nacional. A FPF trabalha hoje lado a lado com os clubes, que já são pequenas ou grandes máquinas a empurrar este comboio de forma coletiva", explicou.
Carlos Queiroz entrou nos quadros da FPF em 1987, movido pela ambição de projetar as seleções jovens na elite mundial "de forma constante", mas questionando como seria possível suplantar países que dispunham de suportes de recrutamento inalcançáveis.
"A formação sofria de enormes carências financeiras, técnicas, estruturais e também de conceito metodológico na forma de preparar os jogadores. Essa foi a grande viragem, porque foi preciso muito trabalho inovador e transformar dentro do campo, aplicando conceitos dirigidos às tendências evolutivas do jogo que líamos na altura", partilhou.
A consequente "luta fora das quatro linhas" originou "algumas divergências e dissabores pessoais", sinal do "quão difícil é chocar com acomodações e interesses", no intuito de que os talentos "evoluíssem em melhores condições, campeonatos e equipamentos".
"Nunca é fácil estar um passo à frente dos tempos, sabendo que somos os responsáveis pela mudança. Só que eu era o líder e a liderança não é um concurso de popularidade. Para se ser líder, é preciso tomar decisões que às vezes passam pelo sim, outras vezes pelo talvez e muitas vezes pelo não e é aqui que costumam existir conflitos", admitiu.
O célebre 'Projeto Queiroz' produziu nos meses anteriores ao Mundial de sub-20 da Arábia Saudita o primeiro título (1989) e uma final perdida (1988) no Europeu de sub-16, além da terceira presença no jogo decisivo e do segundo cetro continental de sub-18.
"Ouvíamos na Europa dizer que os portugueses tinham um jeito enorme para jogar à bola. O segredo do sucesso foi o imenso trabalho dirigido para transformar essas habilidades técnicas em competências coletivas e individuais dentro do campo. Tenho muitos ídolos pessoais de outros tempos, mas este conceito permitiu dar um passo em frente na mentalidade e tornou os atletas mais responsáveis e competentes", insistiu.
A inédita conquista de Riade seria revalidada dois anos depois em Lisboa, provando que "não foi um passo de mágica", até por estar intercalada com um ainda singular terceiro lugar no Mundial de sub-16 (1989) e nova final perdida do Europeu de sub-18 (1990).
"A praticamente três meses do Mundial de sub-20 de 1991, tive um convite excecional para poder trabalhar num dos melhores clubes portugueses e europeus. Como tínhamos proposto muitas mudanças e sacrifícios às pessoas, a FPF não esteve de acordo com a minha saída e eu fiquei conscientemente em dúvidas sobre se sair naquela altura não seria virar as costas à FPF em termos de compromisso. Isso pesou muito", rememorou.
Carlos Queiroz permaneceu e abraçou uma "aventura extraordinária" há exatos 30 anos, recusando reivindicar que a seleção "tivesse um super-homem à frente" na caminhada triunfal até à final com o Brasil (4-2 nos penáltis, após um 'nulo' no prolongamento).
"Fiz parte de uma equipa extraordinária de colaboradores, uns mais visíveis e outros menos, a quem chamávamos os 'carolas', como treinadores e dirigentes anónimos, que suportavam o futebol juvenil. O meu amigo, irmão e companheiro desta jornada Nelo Vingada definia de forma simples: ganhávamos pouco, mas divertia-nos à brava", atirou.
Definindo o eterno adjunto como "peça-chave fundamental neste processo", ao ter um "papel afetivo e emocional de dar mimos", o então selecionador de sub-20 "fazia-se por vezes de mauzão", equilibrando essa dupla técnica perante jovens dos 14 aos 22 anos.
"Eu era um bocado indisciplinado com as horas e, se às três ou quatro da manhã tivesse uma ideia de trabalho, não hesitava em ligar-lhe para dizer o que teríamos de fazer no dia seguinte. Como o Nelo tinha de descer as escadas para ir atender, montou na altura uma linha telefónica para ter no quarto e poder estar sempre pronto e disponível", gracejou.
Leia Também: Queiroz nada surpreso com treinadores advindos da 'geração de ouro'