"Portugal? Não aceito qualquer convite, por muitas saudades que tenha..."

Ricardo Pereira tem nome de craque e, curiosamente, também brilha entre as balizas, à semelhança do conhecido ex-guardião da seleção nacional. Em entrevista ao Desporto ao Minuto, o técnico de guarda-redes do Real Valladolid detalhou as suas aventuras na Europa, na Ásia e na América do Sul, tendo ainda abordado a passagem pelo Benfica e um possível regresso a Portugal.

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Miguel Simões
28/12/2023 08:01 ‧ 28/12/2023 por Miguel Simões

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Quem diria que um guarda-redes com uma carreira entre equipas amadoras poderia dar nas vistas em vários cantos do mundo ao desempenhar funções de treinador? Ricardo Pereira desafiou a lógica e, aos 49 anos, já tem dezenas de histórias para mais tarde recordar, sobretudo atendendo às passagens por Europa, Ásia e América do Sul.

Em entrevista ao Desporto ao Minuto, o treinador de guarda-redes do Real Valladolid contou como aconteceu a transição de jogador para técnico, acumulando as duas funções durante três anos, entre 2011 e 2014, já com a passagem pelo Benfica à mistura.

Em "tom de anedota", Ricardo Pereira revelou que chegou a ser confundido com o seu homónimo, o ex-guardião da seleção nacional (com trajetos de relevo no Sporting e no Boavista), acabando ainda por apontar nomes de grandes jogadores e treinadores com quem trabalhou diretamente desde 2011, aquando a sua aventura como técnico começou.

Após a 'rampa de lançamento' provocada pelo Benfica, o treinador de 49 anos foi para a Arábia Saudita, regressou à Europa e partiu depois para a América do Sul, onde pensou que "ia ensinar", mas acabou por sair bem mais enriquecido, com conquistas assinaláveis. Ricardo Pereira repetiu o trio de continentes num curto espaço de tempo e, atualmente, encontra-se no Real Valladolid, com o sonho de um dia chegar à La Liga, ainda que admita que o regresso a Portugal esteja em equação.

Joguei até onde consegui e confesso que, se pudesse, ainda lá andava dentro hoje. A paixão por jogar foi sempre muito grande, ao nível em que consegui

O Ricardo terminou a sua carreira como futebolista em 2013/14, com 40 anos, numa altura em que já era treinador de guarda-redes dos sub-17 do Benfica. Como conciliou as duas funções?

Já me andava a arrastar por lá [pelo campo]. Era quase a minha própria cobaia. Tinha uma paixão tremenda pela baliza. Joguei até onde consegui e confesso que, se pudesse, ainda lá andava dentro hoje. A paixão por jogar foi sempre muito grande, ao nível em que consegui. O meu último ano federado foi na Quinta do Conde [em 2013/14].

Sente pena de não ter pisado outros palcos maiores?

Não sei se o termo certo será "pena". É algo que eu tenho muito bem resolvido na minha cabeça. Acho que o futebol se encarrega, principalmente em carreiras tão longas, de ir fazendo justiça àquilo que é a nossa capacidade e as oportunidades que aproveitamos ou não. Cada vez mais os treinadores de guarda-redes estão a iniciar muito cedo. Encontramos jovens a começar aos 20 e poucos anos. Às vezes penso o que teria sido a minha vida se eu tivesse terminado a carreira mais cedo... Dez anos antes, por exemplo. Gostava de ter experimentado outros palcos e de ter vivido outras emoções, mas acho que aproveitei muito bem aquilo que a baliza nos dá em termos de vivências, experiências e sensações. Aproveito isso muito bem para aquilo que é a minha vida e carreira profissional.

Tem apenas mais dois anos por comparação ao conhecido guarda-redes Ricardo Pereira, seu homónimo, ex-internacional por Portugal. Quando jogava existiam brincadeiras ou comparações no balneário acerca disso?

Acho que temos vozes muito diferentes. O cabelo... (risos) O volume do cabelo era muito diferente. Lembro-me de uma coisa. Como eu me chamo Ricardo Pereira, diziam-me que eu não era tão engraçado como o Araújo [comediante Ricardo Araújo Pereira], não era tão bonito como o ator e não tinha tanta qualidade como o guardião da seleção nacional. Era eu próprio... Mas há outra coisa que posso contar em tom quase de anedota. Quando estava no Standard Liège, recebi várias cartas com fotografias para autografar. Quando abria, o Ricardo era um de cabelo curtinho, barba bem feita. Não tinha o contacto do Ricardo [guarda-redes da seleção nacional], mas falei com ele pelas redes sociais para lhe contar a história. Ele, no seu sentido de humor, disse-me para as pôr junto às formigas. Não servia para nada, podia guardar as fotografias. Ele achou piada. Eu também. Ele é que era o verdadeiro Ricardo Pereira. Não era eu quem as pessoas procuravam com aquelas fotografias enviadas.

Notícias ao Minuto Ricardo Pereira cruzou-se com Fernando Chalana nos juvenis do Benfica e não esquece os guarda-redes que ajudou a evoluir.© DR  

Como aconteceu a transição do Real para o Benfica em 2012?

A minha história é um bocadinho diferenciada. Sou formado em educação de infância. Tive de estudar para sustentar a família. O futebol era a paixão da minha vida, mas não deixava de ser um 'hobby', para alguém que cresceu, já era casado e tinha filhas. O meu 'ganha-pão' foi a educação de infância e a psicologia clínica. Estava a preparar-me para pendurar as luvas e parece que já sentia falta deste 'bichinho'. Sou de convicções e de paixões. Dois dias antes de nascer a minha filha [há 13 anos] resolvi despedir-me da KidZania, em Lisboa. Era diretor pedagógico e decidi sair em busca desta paixão. Comecei por fazer um curso e, a partir daí, furei por tudo quanto era lado. Procurei escolas de guarda-redes em Portugal, fui a congressos e fiz cursos na Escócia. Tentei tudo. Há cerca de dez anos não havia o que há hoje, do ponto de vista de cursos e informação. Eu tinha plena consciência de que aquilo que tinha aprendido como guarda-redes, mesmo com escasso treino no nível em que joguei, não me servia para fazer a diferença. Considero que vivo atualmente um sonho. Uma carreira que eu não pude viver como jogador de futebol, mas que vivo-a como treinador de guarda-redes. Nós aprendemos a treinar, treinando. Por mais livros, cursos e sítios que visitemos, precisamos de 'meter a mão na massa'. É preciso estabelecer uma relação com os guarda-redes, a gestão das cargas, as experiências, a dificuldade em controlar uma bola... Quem me deu a oportunidade foi o Real SC. Estive seis meses nos juvenis e apareceu o Hugo Oliveira [treinador de guarda-redes], com uma proposta de estágio no Benfica. Com quase 40 anos, estive nos sub-13 do Benfica, sem receber nada, mas foi-me dada uma oportunidade. Agarrei-a como se tivesse quatro mãos, com umas mãos verdadeiras de guarda-redes. As coisas a partir daí foram acontecendo. Seis meses depois, já o Benfica estava a propor-me um contrato para os sub-17. Três anos depois, fui para a equipa B.

Esteve na equipa técnica de Renato Paiva até que, em 2015/16, subiu ao Benfica B com Hélder Cristóvão. Essa mudança estava planeada?

Não estava planeada. Aconteceu a saída do Fernando Ferreira [atual treinador de guarda-redes do Benfica] para Angola, tendo sido esse o momento de escolher alguém da estrutura ou contratar alguém. O Hugo Oliveira convidou-me e uma pessoa sente o peso da responsabilidade de estar a chegar ao futebol profissional, sendo oriundo dos juvenis. Trabalhei com dois antigos jogadores do Benfica como Hélder Cristóvão e Nélson Veríssimo. Não posso dizer que não fiquei feliz. Considerei mais uma etapa do caminho que estava a fazer no Benfica. Foi um ano de grande aprendizagem. Só nos salvámos da descida [à terceira divisão] na última jornada. Para o projeto, seria uma 'punhalada' forte. Felizmente, o Benfica continua a aproveitar este patamar para desenvolver jovens. Para mim, foi um passo importante, na aproximação do futebol profissional, percebendo ali que poderia fazer carreira e ir por aí fora.

Sá Pinto? Encontrámo-nos quase ao estilo de uma entrevista de emprego e disse-me que eu estava contratado se quisesse trabalhar com ele

Por que motivo saiu da equipa B do Benfica para uma experiência na Arábia Saudita, em 2016, no Al Fateh? Foi a pedido de Ricardo Sá Pinto?

Já tinha sido convidado a renovar, de forma a continuar a ser o treinador de guarda-redes da equipa B, numa altura em que o Nuno Gomes já era o diretor de futebol de formação. Depois daquele ano, sentia que queria mais. Queria outro tipo de experiências. Estar no Benfica protege-te e ajuda-te a desenvolver, mas eu mesmo sabendo que só faltava um passo para aquilo que era um grande sonho [chegar à equipa principal], sabia que o Hugo Oliveira estava a fazer um trabalho notável na equipa principal, acabando por sair nesse verão [de 2016], tal como eu, dando lugar ao Luís Esteves. O convite [para o Al Fateh] foi feito pelo Ricardo Sá Pinto. Ele tinha na equipa técnica um adjunto que tinha trabalhado comigo nos juvenis no Benfica e que lhe deu as melhores referências do meu trabalho. Encontrámo-nos quase ao estilo de uma entrevista de emprego e, no final, o Ricardo Sá Pinto disse que eu estava contratado se quisesse trabalhar com ele. As condições eram muito superiores às que tinha no Benfica. Decidi arriscar e aventurar-me numa experiência completamente diferente. Saí pela primeira vez do país para trabalhar fora.

Acompanhou Sá Pinto para a Bélgica (Standard Liège, em 2017/18) e Polónia (Legia Varsóvia, em 2018/19). Essas experiências foram cruciais que para adquirir mais conhecimento futebolístico a partir de outras realidades?

Qualquer uma delas. Quando chegámos ao Standard Liège, deparámo-nos com o Jean-François Gillet, que contava com muitos anos no futebol italiano, com o 'miúdo' Arnaud Bodar, atualmente titular e já na seleção [da Bélgica], sendo que ainda contratámos Guillermo Ochoa. Aí já eram dois cabelos muito volumosos a entrar dentro do campo (risos). Eram monstros da baliza e eu tinha pouca experiência. Andei para a frente, testei coisas, senti-os e tive a humildade de lhes perguntar coisas. Naquele cenário, tive de lidar com as relações humanas daqueles três nomes. Começaram com rivalidades e acabaram como uma família de três - comigo quatro - a trabalhar para o mesmo propósito. Tudo se foi construindo com o exercício, com o que proporcionamos a cada um e com a forma como está tudo a ser trabalho. Estavam a evoluir, eram palavras dos próprios. Foi uma época muito intensa, recheada de críticas à equipa técnica e marcada por pressão exterior, mas foi fundamental para o meu crescimento como treinador de guarda-redes. Na Polónia tive outra grande experiência. O guarda-redes titular era capitão de equipa e deixou de jogar por nossa opção, passando a jogar o segundo guarda-redes, que se lesionou, permitindo a entrada de um jovem de 18 ou 19 anos na altura.

Notícias ao MinutoRicardo Pereira cruzou-se com nomes sonantes do mundo das balizas, entre os quais o de Guillermo Ochoa.© DR  

Em 2019/20, experimentou a sensação de estar por dentro daquele que é considerado, por muitos, o futebol mais apaixonante do mundo: o inglês. Que funções exerceu no Nottingham Forest e como correu essa experiência?

Não estive na equipa principal do Nottingham Forest. Fui coordenador de todo o treino de guarda-redes do clube, sendo que estive nos juniores e na equipa B. Deu-me muito gozo e deixou-me este 'bichinho' do futebol inglês. Quem sabe se algum dia posso voltar. Foi uma escola totalmente diferente. Consegui compreender um bocadinho o motivo do sucesso dos portugueses em Inglaterra. A nossa paixão, o nosso entusiasmo e a nossa dedicação cai muito bem naquele povo, que também quer aprender. Estão muito abertos a perceber como vemos o jogo taticamente, para além daquilo que são as dimensões físicas e técnicas. Senti-me muito acarinhado e respeitado pelas equipa técnicas no futebol inglês. Estavam curiosos para saber como tinha sido a minha experiência na formação do Benfica. Ao longo da minha carreira, tem sido fácil chegar aos guarda-redes. Eles sabem que somos alguém na sombra deles, mas muito focados em motivá-los. O motor de desenvolvimento são eles. Não é o nosso protagonismo.

O Ricardo aventurou-se num novo continente e foi para o Independiente del Valle, onde conquistou vários títulos. Na primeira época esteve com Miguel Ángel Ramírez e, depois, novamente com Renato Paiva. Teve influência nesta mudança no clube equatoriano?

Tenho alguma [influência]... (risos) As vidas vão-se cruzando. Quando as pessoas nos reconhecem competência, vão sugerindo o nosso nome. O Miguel Ángel Ramírez é atualmente meu adversário, estando no Sporting Gijón, a discutir com o [Real] Valladolid uma vaga no regresso à La Liga. Foi ele a ter influência por duas vezes para que eu viesse para Espanha. A primeira aconteceu quando me tentou tirar do Independiente del Valle, na minha segunda passagem, de forma a juntar-me ao Sporting Gijón. Já a segunda surgiu quando o Valladolid ainda estava na La Liga, perante a intenção de trocar de treinador de guarda-redes, perguntaram ao Miguel por um nome e ele não deu o de nenhum argentino ou espanhol, mas sim de um português com quem tinha trabalhado no Independiente del Valle - num ano em que não ganhámos nada, mas jogámos mesmo muito bem. Arrisco-me a dizer que foi o melhor plantel do Independiente, entre os três em que estive, a jogar futebol. O que melhor defendeu, atacando bem de igual forma, foi o do Renato Paiva, que deixou coisas incríveis do ponto de vista da organização coletiva, tanto ofensiva, como defensiva. Ficaram as sementes todas. O último, talvez mais completo, que 'bebeu' um pouco destes dois, foi este último do Martín Anselmi, em que tivemos a felicidade de conquistar vários troféus.

Voltando à questão, o Miguel [Ángel Ramírez] saiu para o Internacional de Porto Alegre, para onde me tentaram levar, mas não foi possível. O Independiente, aí, procurava por um treinador. É um clube que tem muito claro o perfil que pretende, bem como o processo de contratação do treinador, que passa por uma profunda análise do scouting. Eles 'varreram' os jogos todos da equipa B do Benfica, liderada pelo Renato Paiva, assim como na Youth League, sendo que também fizeram isso com mais dois treinadores em equação. Mesmo só estando no clube há um ano, a confiança que toda a direção tinha em mim levou a que me dessem a oportunidade de sugerir um nome. Pensei logo nele, com quem tinha trabalhado muito bem, embora não tivesse experiência no futebol profissional, excetuando a dos bês do Benfica. Foi feito todo um processo com várias entrevistas. O mérito depois partiu todo do Renato [Paiva], que passou por todas as fases até ser ele o escolhido, deixando o Benfica ao fim de mais de dez anos, creio. Tive, pelo menos, o peso de dar o nome de alguém que eu conhecia e confiava muito. É um processo que eu gostava que se passasse em tantos outros clubes. Mesmo aqui em Espanha, já vou vendo coisas muito criticadas em Portugal, quando se contrata alguém com um perfil específico para um plantel e ao fim de alguns jogos há um despedimento, contratando-se um novo treinador com um perfil oposto.

O campeonato do Equador (2021) foi a sua primeira grande conquista no futebol sénior?

Há dois títulos de sub-17 [no Benfica] que destaco, um da geração de 1996 e o outro creio que de 1998. É daqueles que nos deixa mais orgulhosos, perante uma geração com as suas lacunas. Conquistámos a Taça da Bélgica, onde fomos vice-campeões com o Ricardo Sá Pinto [no Standard Liège]. Fomos também vice-campeões na Polónia, onde não terminámos a época no Legia Varsóvia. Há ainda um título de sub-23 [no Nottingham Forest] em Inglaterra. No campeonato do Equador de 2021, eu saí a meio da época para o Legia Varsóvia, mas o mérito pertence a quem fez a segunda metade da época com o Renato [Paiva], sobretudo pela forma como é disputada a prova. Fui responsável na primeira etapa da conquista do [campeonato do] Independiente del Valle, que os apurou para a fase final. Ganhámos a Taça Sul-americana, a Recopa Sul-americana, a Supertaça do Equador e a Taça do Equador Quatro títulos e meio, como eu costumo dizer. Além disso, chegámos aos 'oitavos' da Libertadores. 

Quando deixei o Equador, não foi por não me sentir feliz, até porque me sentia bem por estar a trabalhar com uma equipa técnica portuguesa, sendo que tive a minha parte de responsabilidade para que o Renato Paiva estivesse ali. Na brincadeira, até já lhe dizia 'Agora que estás adaptado, já me posso pirar'. Fui embora e ele até foi campeão

Após dois anos no Equador, o Ricardo soma nova passagem pelo Legia Varsóvia (num plantel recheado de portugueses) e depois segue para o Al Taawon do José Gomes. Como tudo isto aconteceu?

A experiência no Equador foi das mais bonitas na minha vida, mas também uma daquelas que colocou à prova a minha resistência em torno da família. Cheguei ao Equador e, ao fim de um mês, estava fechado em casa por causa da pandemia [da Covid-19], sem a minha família que não poderia viajar para me visitar. Foi muito difícil estar tão longe. Quando deixei o Equador, não foi por não me sentir feliz, até porque me sentia bem por estar a trabalhar com uma equipa técnica portuguesa, sendo que tive a minha parte de responsabilidade para que o Renato Paiva estivesse ali. A verdade é que, na brincadeira, até já lhe dizia 'Agora que estás adaptado, já me posso pirar'. Fui embora e ele até foi campeão. Decidi regressar ao Legia Varsóvia através do convite do presidente, ele que não desistiu de me ter de volta ao longo dos últimos anos. Aceitei o projeto porque queria voltar para a Europa, mas percebi que se olhava muito para o resultado final. O Legia queria muito voltar às competições europeias e até estivemos perto de garantir a Liga dos Campeões, mas caímos para a Liga Europa. Os resultados ficaram aquém e as coisas começaram a enviesar um bocadinho.

No regresso ao Equador, qual foi a sensação de ajudar o Independiente del Valle a bater o Flamengo, treinado pelo português Vítor Pereira, na final da Recopa Sul-americana? O convite do Flamengo surgiu antes ou depois da conquista do passado mês de março?

O convite apareceu depois. Foi uma surpresa quando apareceu. Julgava que era brincadeira. A equipa do [Jorge] Sampaoli procurou, pelos mais diversos lugares, o meu contacto telefónico. Queriam um perfil para treinador de guarda-redes como o meu. Quase em jeito de anedota, foi o roupeiro do Independiente a dizer-me que lhe ligaram por minha causa. Eu perguntei se era para rir e disse-lhe para se deixar de brincadeiras. Ligou-me um agente. As coisas decorreram. Falei com quase toda a gente da equipa técnica do mister [Jorge] Sampaoli, mas as conversas passaram depois para o Flamengo. Eles queriam que eu fosse responsável pelo treino de guarda-redes do clube, não da equipa técnica do Sampaoli. Na altura até pensei que ia para o Flamengo, enquanto recordava alguns dos cânticos naquele balneário, na Recopa. Até se podia virar contra mim, mas claro que serviria o Flamengo com o máximo de profissionalismo. Lembro-me que foi uma Recopa conquistada com muito esforço, decidida nas grandes penalidades. O Flamengo foi superior e apresentou-se muito preparado pelo Vítor Pereira, mas não tiveram a 'estrelinha'. Tivemos a sorte de ter um guarda-redes em destaque nos dois jogos de um troféu muito importante na América do Sul. Apareceu o convite e, depois de muito pensar e analisar o timing em que estaria a sair de um clube que me estava a dar tanto, resolvi recusar. Não sei se sou louco e se alguma vez na vida terei uma oferta desta dimensão na minha carreira, mas ponderei os prós e os contras da minha decisão.

Notícias ao Minuto Treinador de guarda-redes, de 49 anos, desempenhou um papel importante na conquista da Recopa Sul-americana.© DR  

O que o levou a aceitar treinar os guarda-redes do Real Valladolid, esta época, precisamente após a queda para a segunda divisão espanhola? 

Há um desejo da minha parte, depois de tantos anos no estrangeiro, de aproximar-me dos meus. Espero que seja desta. Desde que cheguei aqui, já tive convites para voltar a cruzar o [Oceano] Atlântico e foram recusados. Gostava de continuar aqui [no Real Valladolid] até ao fim, até porque tenho contrato de dois anos. O facto de estar tão longe da família fez-me pensar. Tem havido convites do campeonato português, assim como da Bélgica, além desta proposta algo surpreendente de Espanha. Quando o convite apareceu, o Real Valladolid ainda estava na primeira divisão [de Espanha], depois é que desceu. Ponderei muito bem. Tive uma conversa com a equipa técnica [do Independiente del Valle]. Acho que isso é um aspeto importante. Para quem anda 'sozinho', sem equipa técnica, posso dizer que eu continuo a conseguir dormir bem assim. Seria fácil seguir com a equipa técnica que tinha no Equador para o México, até porque vínhamos de um percurso de enorme sucesso. Para mim é muito importante aquilo que eu sinto e também onde me sinto bem. Tento não tomar decisões impulsivas e pondero-as muito bem

O Real Valladolid dava-me o regresso ao futebol europeu, com a entrada numa das melhores Ligas do mundo, apesar de ser pela porta da segunda divisão. Dava-me a proximidade da família. Nenhum contrato árabe me paga isso. Tenho a possibilidade de, em pouco tempo, apanhar um avião e viajar para Portugal para estar com as minhas filhas. Também a minha mulher consegue apanhar um avião para aqui mais rápido. O contrato [com o Real Valladolid] é um dos melhores que já tive, até porque o clube tinha o desejo de me ter cá. Decidi aceitar. Há o pensamento de conseguirmos subir de divisão, mas temos plena consciência que será extremamente difícil. A Liga é competitiva e estas dificuldades fazem-me evoluir. Tenho feito coisas que, do ponto de vista do meu trabalho de análise, não tinha feito em nenhum dos outros clubes, mesmo sem ninguém me exigir. É um trabalho virado para preparar melhor o meu guarda-redes. Se eu sentisse que estava aqui sem evoluir, provavelmente estaria a pensar para onde ir a seguir. Tenho exigido muito de mim. Não sei se não trabalho muito mais horas do que em outros contextos, precisamente por exigir coisas a mim mesmo. Sinto que são importantes para ajudar o meu guarda-redes a estar preparado no dia do jogo.

Como treinador de guarda-redes, tem algum jogador de sonho que gostasse de treinar?

Há uma coisa que eu gosto muito, que é pegar nos jovens e ajudá-los a melhorar a vida pessoal e profissional. Isso deixa-me feliz. Depois há o sonho de ajudar a construir, em que tenho lá uma semente algures, nuns casos mais, noutros menos. Dou um feedback aqui, mostro um vídeo ali, questiono se viu um golo qualquer. Olhando para a sua posição base, num guarda-redes com 30 e tal anos, pode haver uma flexãozinha do tronco a dar mais sucesso, por exemplo. É possível 'pegar' num guarda-redes experiente e ele 'agarrar' isso, ajudando ao seu próprio jogo. Dá-me gozo quando olhamos para grandes talentos e pensamos que há de se interessante melhorá-lo. Em Portugal temos um Diogo Costa. Com todo o respeito por qualquer pessoa que trabalhe com ele ou outro guardião, a forma como os treinadores de guarda-redes olham para as coisas são diferentes. Aquilo que é pedido ao Diogo Costa, eu pedia o mesmo, mas em alguns casos poderia dizer 'Diogo, e se experimentasses esta adaptação na tua posição? Se baixasses o tronco aqui nesta situação para teres prontidão mais rápido? Vê lá como se sentes' ou 'Já experimentaste esta linha de passe diferente da habitual?'. É algo que eu faço no meu contexto. Tenho um miúdo [Arnau Rafús], aqui no Valladolid, com 20 anos, que esteve na equipa B e foi chamado, já com oito anos de Barcelona, mas com coisas que podíamos mudar no capítulo defensivo. Ao fim de seis meses, vi que houve adaptações para melhorar o rendimento e ele sentiu-se mais confortável, como sendo uma coisa mais natural. Depois eu posso ir embora, chega alguém a seguir e poderá acrescentar outra coisa. Os guarda-redes vão recebendo sementes dos vários lados, até que tenham a forma de jogar deles próprios.

Gosto muito pouco que o guarda-redes suplente e que o terceiro guardião sintam que estão a perder tempo nas suas carreiras. Não estão a jogar, mas têm de trabalhar para poder jogar, seja ali ou noutro lado qualquer. A minha dedicação consegue ser igual ou superior a quem não joga

Que guarda-redes sente que ajudou muito a crescer para poderem brilhar entre os postes atualmente?

Acho que fui importante para o João Virgínia, no reforço da autoestima. Ele levou grandes 'coças' comigo na equipa de sub-17 do Benfica. Gosto muito do João [Virgínia]. Acho que tive um papel muito importante para o André Ferreira. Foram vários anos, jogando e não jogando. Na equipa B não jogou, jogava o Miguel Santos. Gosto muito pouco que o guarda-redes suplente e que o terceiro guardião sintam que estão a perder tempo nas suas carreiras. Não estão a jogar, mas têm de trabalhar para poder jogar, seja ali ou noutro lado qualquer. A minha dedicação consegue ser igual ou superior a quem não joga do que aquela que tenho a quem joga. O trabalho é de muito detalhe, de preparação para o jogo. O futebol está num nível tão elevado do ponto de vista do detalhe e da estratégia, que considero que o guarda-redes deve ter o conhecimento de como o vão pressionar, de como a equipa vai estar posicionada defensivamente, de como é que um bloco baixo pode ou não estar mais exposto a cruzamentos... Ninguém sabe o que vai acontecer, mas tudo isto faz com que trabalhemos muito em cima do detalhe.

O guarda-redes que não joga não é o que vai estar lá [no jogo] para a estratégia. Tem de haver um plano desenvolvimento individual para cada um dos rapazes. Na formação, isto está muito presente. Havia um plano de carreira para o João Virgínia, que depois decidiu sair do Benfica, assim como para outros guarda-redes. A relação com estes rapazes é para toda a vida. Dou por mim a responder a uma mensagem de um guarda-redes em francês e depois já estou noutra conversa em inglês. Sabemos que temos uma pequenina semente em alguns destes rapazes. Um dos guarda-redes do Benfica, nos sub-17, foi o Rafael Lopes, muito profissional, mas que já não joga. O meu maior orgulho é ver que o Rafael se formou em educação física e vai constituir família, provavelmente, em breve. Temos de ter consciência que somos modelos de formação. O futebol está tão desvirtuado em relação à motivação intrínseca que as pessoas tinham para estar no futebol, que agora tudo se centra nas redes sociais e na forma do que pensam sobre nós. Combato muito isso com os meus guarda-redes. Dou-lhes muito conselhos e falo muitas vezes sobre o que vejo, porque isso chega a ter uma influência nefasta na nossa realidade. Estão mil pessoas a dizer que fizeste algo, mas o que eu preciso de saber é o que sentiste no momento daquele remate, trazendo as pessoas 'à terra'. Quando há um erro de um jogador de campo, a equipa perdeu o jogo, mas quando a equipa perde por causa de um erro de um guarda-redes, parece que já foi só ele a perder. Isto é daquelas coisas que temos de preparar os guarda-redes desde bem cedo. O futebol não é só TikTok, Instagram ou vídeos de quando ganhamos.

Com que treinadores mais gostou de trabalhar entre todas as experiências que teve?

Foram três anos com o Renato Paiva [no Benfica, mais meio ano no Equador, em que foi muito importante trabalhar do ponto de vista tático. Entrei noutro patamar ao trabalhar com ex-jogadores, que dão uma experiência, um conhecimento e uma vivência de balneário que eu não tinha. Devo-o muito ao Hélder [Cristóvão], ao [Nélson] Veríssimo e ao Ricardo Sá Pinto, pela raça e o conhecimento. Às vezes acha-se que as oportunidades vão aparecer para um ex-jogador só por ter sido jogador. Não creio. Os ex-jogadores percebem rapidamente que há todo um conhecimento de jogo em constante evolução que têm de adquirir. No caso do Sá Pinto, tanto foi fora de campo, como dentro de campo, perante a sua capacidade de trabalho. Tanto na Bélgica, como na Polónia, não havia grupo, mas terminámos a época com uma cidade em torno do Ricardo [Sá Pinto], visto como um herói em Liège. A minha chegada ao Independiente [del Valle] tornou-me um treinador de guarda-redes muito mais capaz, sobretudo no que toca ao jogo ofensivo. Cheguei ao Equador a pensar que ia só ensinar, mas saí de lá dez vezes melhor, não sei se por ter estado com um treinador espanhol, outro argentino, tendo em conta a forma de ver o jogo. Aprendi muito com os meus treinadores. Eu quero mais do que aquilo que o guarda-redes está a fazer, sobretudo porque vivi outros contextos. Olhando para esta equipa técnica [com o Paulo Pezzolano], nunca tinha treinado com uruguaios, mas eles têm muita coisa parecida com os portugueses. Há muito tempo que não tenho equipa técnica, mas graças a Deus não deixei de trabalhar nos últimos anos.

Regresso a Portugal? Já recusei propostas da nossa Liga porque senti que não se juntou tudo (...) Não aceito qualquer convite, por muitas saudades que tenha de trabalhar com uma equipa técnica portuguesa

Aos 49 anos, já com tanta experiência na bagagem, qual considera ser o seu principal objetivo/sonho de carreira?

Pela dificuldade que estou a sentir, desde que aqui cheguei, alcançar esta subida de divisão e poder cá continuar para jogar uma das melhores Liga dos mundo, para isso, seria muito importante. Já esteve próximo de acontecer através de pessoas com quem trabalhei. Passa por poder testar a minha capacidade como treinador de guarda-redes numa dessas Ligas. Olho cada vez mais para o guarda-redes como um elemento claramente da equipa, sendo que isso faz com que eu tenha de olhar muito para o jogo, mais do que quando comecei a minha carreira, do que estar focado exclusivamente no guarda-redes. Isso é bom para que eu possa dar um pequeno feedback coletivamente, seja para quando temos a bola, seja para quando estamos a defender, ou até correções ao intervalo. Isto faz com que queiramos testar o nosso conhecimento ao mais alto nível.

Não quer dizer que não queira regressar [a Portugal]. Já recusei propostas da nossa Liga porque senti que não se juntou tudo. Acho que a carreira de guarda-redes deve ser reconhecida. Não podemos ser o último elo da carreira. Temos muitos treinadores que convidam o seu treinador de guarda-redes e a distribuição do bolo é igual entre os vários adjuntos, mas ainda há a visão de que o técnico de guarda-redes pode ser o mais mal pago. Enquanto eu não sentir que um convite é acompanhado pela valorização desportiva, do projeto e financeira, não aceito qualquer convite, por muitas saudades que tenha de trabalhar com uma equipa técnica portuguesa. Não quero ser só mais um português na equipa técnica. Sinto que posso continuar a desenvolver o meu trabalho, com qualidade, mas gostava de ajudar no desenvolvimento do guarda-redes português. Estaria feliz se estivesse num clube [português] que tivesse um projeto para o seu departamento de guarda-redes, não só como treinador da equipa principal, mas também pensando no desenvolvimento desde a formação. É algo em que eu sinto que adquiri muita experiência ao longo nos últimos anos. Fiz isso no Nottingham Forest, no Legia [Varsóvia], no Independiente [del Valle] e provavelmente farei o mesmo no [Real] Valladolid. É algo importante, não pode ser visto como isolado. 

Qual o sentimento de poder eventualmente regressar a Portugal?

Acho que temos vários clubes em Portugal onde eu me sentiria bem. Já houve mais que um [clube a querer]. Senti que não era momento e acabei por ir para o país vizinho. Tendo família em Portugal, torna-se difícil para mim continuar no estrangeiro. Sem querer colocar-me em 'biquinhos' de pés, acredito ter capacidade para ajudar ao desenvolvimento do jovem guarda-redes português, seja num clube com um projeto, seja nas seleções. Não gosto de me arrastar. Ao contrário de outros membros de uma equipa técnica, o nosso trabalho é muito físico. Um treino de guarda-redes não é só chutar, é preciso pressionar, fintar no um contra um, rematar com o pé esquerdo, depois com o pé direito. O desgaste físico é muito. Gostava muito de acabar a minha carreira na plenitude das minhas capacidades físicas. Não sei se ainda vou fazer mais qualquer coisa depois de ter vivido esta carreira bonita. Não me vejo a andar tantos anos mais. Até lá, gostaria de passar esta experiência em Portugal. Sou português. Mesmo estando muito adaptado a viver no estrangeiro, há momentos em que tenho muitas saudades do meu país. Seria bonito voltar a Portugal, sobretudo para ajudar a crescer o jovem guardião português.

Notícias ao Minuto O sonho de Ricardo Pereira em chegar à La Liga existe, mas o objetivo de voltar, um dia, a Portugal... também está em cima da mesa.© DR  

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11Rio Ave1416
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